Elias Inácio de Moraes
Já existe um entendimento no campo da Sociologia no sentido de que nosso sistema penal se baseia na VINGANÇA. A Sociedade, mediante o seu sistema penal, se vinga das pessoas que assumem um comportamento divergente do padrão estabelecido como “normal”. Assim sendo, a prisão serve de punição, de castigo a quem comete um crime do ponto de vista das leis humanas, que são feitas pelos “mais fortes”, que as fazem “para si”, sempre em detrimento dos mais fracos, como reconhecem os Espíritos na questão 795 de O Livro dos Espíritos.
Também em Filosofia do Direito há um entendimento de que as leis não têm poder suficiente para evitar que o mal aconteça; ao contrário, seu objetivo é única e exclusivamente punir o criminoso depois que o mal já foi praticado. E neste caso o “criminoso” é sempre a parte mais frágil nas relações de dominação, no caso do aborto, as mulheres, que são historicamente subjugadas pelos homens.
Os homens, por sua vez, são quem historicamente têm decidido a respeito do que as mulheres podem ou não fazer. Muito embora toda gravidez seja fruto de uma união entre um homem e uma mulher, os homens é que têm decidido que é a mulher que deve ser punida em caso de aborto. Eles fazem vista grossa ao crime praticado pelo homem que também gerou o filho. Este, em grande número de casos, é quem abandona mulher e bebê quando a descobre grávida, induzindo-a emocionalmente ao ato de desespero. Isso quando ele não exerce sobre ela violência psicológica ou até mesmo física para que ela realize o aborto.
Analisando a atual legislação que regula o assunto, sob o ponto de vista doutrinário, podemos recorrer ao diálogo que Kardec estabelece com o espírito de um ex-médico ateu, a quem ele chama de Dr. Xavier, que segue transcrito a seguir:
357. Que conseqüências tem para o Espírito o aborto?
“É uma existência nulificada e que ele terá de recomeçar.”
358. Constitui crime a provocação do aborto, em qualquer período da gestação?
“Há crime sempre que transgredis a lei de Deus. Uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá crime sempre que tirar a vida a uma criança antes do seu nascimento, por isso que impede uma alma de passar pelas provas a que serviria de instrumento o corpo que se estava formando.”
Interessante notar que "Dr. Xavier" se refere a “crime” perante as leis de Deus, sem opinar quanto ao modo que isso deveria ser tratado nas leis humanas. E o lado danoso do ato reside em “impedir uma alma de passar pelas provas a que serviria de instrumento o corpo que estava sendo formado.”
Na época de Allan Kardec havia uma discussão a respeito da legalização do aborto terapêutico, que a Igreja Católica combatia ferreamente sob a alegação de que somente a Deus, e não aos médicos, cabia decidir a respeito de quem deve viver e quem deve morrer. Não foi sem motivo que Kardec formulou a questão 359 aos Espíritos:
359. Dado o caso que o nascimento da criança pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em sacrificar--se a primeira para salvar a segunda?
“Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”
Aqui a resposta do Espírito deveria ser considerada por muitos críticos como um absurdo doutrinário, já que ele se refere ao espírito reencarnante como um ser “que ainda não existe”, e à mulher como um ser “que já existe”. Nossas discussões, na atualidade, desconsideram inteiramente a mulher, o “ser que já existe”, seus sentimentos, seus conflitos interiores, e a reduzem a um útero a serviço de um terceiro, o “ser que ainda não existe”, ou a serviço da sociedade, sem vez e sem voz.
Um pouco mais à frente, na questão 760, ao analisar a questão da pena de morte, Kardec insere uma questão que contém uma afirmação reveladora: o Espírito afirma que haverá um dia, no futuro, em que “Não mais precisarão os homens de ser julgados pelos homens”, sinalizando para uma situação em que as sociedades humanas aplicariam na plenitude o preceito cristão do “Não Julgueis”.
O homem julga necessária uma coisa, sempre que não descobre outra melhor. À proporção que se instrui, vai compreendendo melhormente o que é justo e o que é injusto e repudia os excessos cometidos, nos tempos de ignorância, em nome da justiça.
E acrescenta: “A pena de talião é a justiça de Deus. É Deus quem a aplica. Todos vós sofreis essa pena a cada instante, pois que sois punidos naquilo em que haveis pecado, nesta existência ou em outra.” (764)
Na perspectiva apresentada pelo Espírito, no afã de fazer justiça muitas vezes o homem “toma o lugar de Deus”; e continua: “Os que assim procedem mostram quão longe estão de compreender Deus e que muito ainda têm que expiar.” (765) Donde se conclui que “Assim é que o que pareceu justo, numa época, parece bárbaro em outra. Só as leis divinas são eternas; as humanas mudam com o progresso”. (763)
Mais à frente, no capítulo VIII, analisando a Lei do Progresso, Kardec comenta:
Sendo o progresso uma condição da natureza humana, não está no poder do homem opor-se-lhe. É uma força viva, cuja ação pode ser retardada, porém não anulada, por leis humanas más. Quando estas se tornam incompatíveis com ele, despedaça-as juntamente com os que se esforcem por mantê-las. Assim será, até que o homem tenha posto suas leis em concordância com a justiça divina, que quer que todos participem do bem e não a vigência de leis feitas pelo forte em detrimento do fraco.
O ponto talvez mais importante desta análise, entretanto, está na discussão que Kardec faz da "Lei de Justiça" que, para ele, não como ser tratada sem levar em conta o amor e a caridade:
879. Qual seria o caráter do homem que praticasse a justiça em toda a sua pureza?
“O do verdadeiro justo, a exemplo de Jesus, porquanto praticaria também o amor do próximo e a caridade, sem os quais não há verdadeira justiça.”
Na questão 917 o filósofo Fénelon, em espírito, apresentará o que pode ser a chave para a superação das mazelas da nossa sociedade atual:
Sirva de base às instituições sociais, às relações legais de povo a povo e de homem a homem o princípio da caridade e da fraternidade e cada um pensará menos na sua pessoa, assim veja que outros nela pensaram. Todos experimentarão a influência moralizadora do exemplo e do contacto.
Mais à frente, analisando as características do Homem de Bem (918), Kardec tece algumas considerações que merecem reflexão quando se discute comportamento alheio, que é o que acontece no caso do aborto:
(O homem de bem) É indulgente para com as fraquezas alheias, porque sabe que também precisa da indulgência dos outros e se lembra destas palavras do Cristo: Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado.
Não é vingativo. A exemplo de Jesus, perdoa as ofensas, para só se lembrar dos benefícios, pois não ignora que, como houver perdoado, assim perdoado lhe será.
Portanto, não há que se atribuir aos espíritos qualquer tipo de aprovação a leis bárbaras, baseadas em sistemas punitivos e processos de encarceramento, como se dá com a lei atualmente vigente, que pune com pena de 1 a 3 anos de detenção uma mulher que tenha cometido o aborto, independente das razões que possam tê-la levado a esse ato.
Há movimentos de mulheres que defendem a legalização do aborto como um ato de respeito à sua autonomia em relação ao próprio corpo, ao seu livre-arbítrio. Há quem entenda que, durante a gravidez, há duas vidas em jogo e que ambas merecem consideração. Entre essas duas posições existe uma grande lista de possibilidades e, com certeza, em se desarmando os espíritos, é possível propor maneiras mais coerentes e efetivas de se lidar com essa grave questão social.
Um argumento que não pode ser ignorado se assenta na ineficácia da legislação atual em evitar os meio milhão de abortos anuais que acontecem clandestinamente no Brasil, à revelia da lei, sem qualquer forma de controle e sem qualquer ação preventiva. Some-se a isto o fato de a mulher ser absolutamente desconsiderada na legislação vigente, que não leva em conta suas angústias, seu sofrimento moral, uma vez que muito dificilmente uma decisão a respeito de um aborto tem como ser tomada sem uma elevada dose de conflito. Como regra, nenhuma mulher aborta sem antes viver um profundo conflito emocional.
Manter o aborto na esfera criminal é reconhecer a falência moral da sociedade, é desistir dos processos de prevenção, do acolhimento e da educação para a vida. Uma sociedade baseada no Evangelho precisa encontrar maneiras mais eficazes de evitar as mortes maternas decorrentes de aborto, e que só podem ser evitadas se forem afastadas as barreiras que impedem que uma moça, uma menina, uma mulher, possa buscar orientação adequada quando se encontrar diante de uma gravidez indesejada.
Atualmente, mediante a ameaça de detenção, essa garota simplesmente digita uma consulta no navegador do seu celular e já tem à sua disposição centenas de sites que orientam a melhor maneira de se proceder um “aborto seguro”. Os sites trazem todas as recomendações, nomes de medicamentos, naturais ou químicos, suas formas de uso e até mesmo o modo de serem adquiridos sem o risco de se exporem. Um motoboy faz a entrega em total discrição e todas as orientações transitam por WhatsApp.
Cientistas sociais que criticam a legislação atual argumentam que ela alcança tão somente as meninas, moças e mulheres das camadas menos favorecidas, e que as das classes média e alta recebem toda a assistência de uma medicina clandestina que todos sabem que existe, mas que não é alcançada pelas leis humanas, validando uma hipocrisia social que faz recair, mais uma vez, apenas sobre os pobres o peso da lei.
Quando se analisa o discurso dos que defendem a atual política de criminalização, verifica-se que eles próprios reconhecem a ineficácia da lei. Conforme consta em um dos manifestos levados a público, “as pessoas estão abortando usando a pílula do dia seguinte, que é abortiva”. Mesmo sabendo-a ineficaz, essas pessoas defendem que a legislação atual deve ser mantida. Ou seja, vidas não importam; o que importa é o simbolismo da lei.
No lado oposto, propõe-se que sejam adotadas pelo Estado políticas públicas que universalizem o atendimento às mulheres que se vejam diante de uma gravidez indesejada, de modo a possibilitar à sociedade alguma ação no sentido de evitar o aborto quando isto seja possível, mas sem agredir o livre-arbítrio da mulher. A experiência de outros países mostra que, ao se sentirem protegidas e seguras, algumas mulheres desistem de abortar.
É nesse sentido que o filósofo Fénelon, em mensagem incluída em O Evangelho Segundo o Espiritismo como sendo o item 11 do cap. XI, Amar ao próximo como a si mesmo, alerta: “Não acrediteis na esterilidade e no endurecimento do coração humano; ao amor verdadeiro, ele, a seu mau grado, cede.”
E Isabel de França complementa, no item 14: “Considerai que sois mais repreensíveis, mais culpados do que aqueles a quem negardes perdão e comiseração, pois, as mais das vezes, eles não conhecem Deus como o conheceis, e muito menos lhes será pedido do que a vós.” É como se esses Espíritos ecoassem a advertência de Jesus quando afirmava que “se a vossa justiça não for mais abundante que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus.” (S. MATEUS, 5:20.)
A mais expressiva passagem dos Evangelhos, que pode ser relacionada a esse tema, é aquela da mulher surpreendida em adultério. Na época de Jesus o crime era o adultério, e a pena, a morte. O aborto não encontrava nenhuma restrição desde que fosse uma decisão exercida pelo homem, de vez que o filho era uma "propriedade" do seu senhor, o seu marido.
A narrativa evangélica é interessante:
12. Então, os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher que fora surpreendida em adultério e, pondo-a de pé no meio do povo, – disseram a Jesus: “Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em adultério; – ora, Moisés, pela lei, ordena que se lapidem as adúlteras. Qual sobre isso a tua opinião?” – Diziam isto para o tentarem e terem de que o acusar. Jesus, porém, abaixando-se, entrou a escrever na terra com o dedo. – Como continuassem a interrogá-lo, ele se levantou e disse: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra.” – Em seguida, abaixando-se de novo, continuou a escrever no chão. – Quanto aos que o interrogavam, esses, ouvindo-o falar daquele modo, se retiraram, um após outro, afastando-se primeiro os velhos. Ficou, pois, Jesus a sós com a mulher, colocada no meio da praça.
Então, levantando-se, perguntou-lhe Jesus: “Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou?” – Ela respondeu: “Não, Senhor.” Disse-lhe Jesus: “Também eu não te condenarei. Vai-te e de futuro não tornes a pecar.” (S. JOÃO, 8:3 a 11.)
Ao recomendar “Não julgueis a fim que não sejais julgados”, Jesus apresentava um princípio de conduta social que até o presente momento nós não alcançamos enquanto sociedade. Sob os mais variados pretextos, sobretudo o de reprimir o mal, nos arvoramos ainda em juízes uns dos outros, estabelecendo para os outros penas que jamais aceitaríamos que fossem aplicadas a nós próprios ou aos nossos.
Em uma pesquisa realizada em 2016 junto a pessoas espíritas, era-lhes apresentada a possibilidade de uma filha, irmã ou pessoa próxima do entrevistado vir a praticar um aborto sem que a família tomasse conhecimento. Em seguida se indagava se ela teria coragem de denunciá-la aos órgãos da lei. Dentre os 69 entrevistados, 67 responderam que não; apenas 2 afirmaram que o fariam. O que não significa que o fariam numa situação concreta.
Palestrantes espíritas, indagados a respeito de denunciar ou não uma pessoa que praticasse um aborto, tem sido unânimes em afirmar que a Deus compete fazer justiça, e não a nós homens. Mas quando chamados a opinar publicamente a respeito da conveni|ência ou não da criminalização do aborto, preferem a posição cômoda da omissão mediante uma divagação evasiva em torno das questões espirituais envolvidas.
Faz sentido, portanto, enquanto comunidade espírita, apoiar essa lei absurda que manda prender uma mulher que comete o aborto? Isso não representa uma violação do princípio de Jesus que nos recomenda “fazer aos outros como gostaríamos que nos fizessem”?
Numa perspectiva sintonizada com os Evangelhos, Kardec pondera que a sentença "atire-lhe a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado – faz da indulgência um dever para nós outros, porque ninguém há que não necessite, para si próprio, de indulgência.” E comenta:
A indulgência jamais se ocupa com os maus atos de outrem, a menos que seja para prestar um serviço; mas, mesmo neste caso, tem o cuidado de os atenuar tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, não tem nos lábios censuras; apenas conselhos e, as mais das vezes, velados.
Uma mensagem assinada por "José, Espírito protetor", adverte no capítulo X, que leva como título “Bem aventurados os que são misericordiosos”:
Sede, pois, severos para convosco, indulgentes para com os outros. Lembrai-vos daquele que julga em última instância, que vê os pensamentos íntimos de cada coração e que, por conseguinte, desculpa muitas vezes as faltas que censurais, ou condena o que relevais, porque conhece o móvel de todos os atos. Lembrai-vos de que vós, que clamais em altas vozes: anátema! tereis, quiçá, cometido faltas mais graves. (item 16)
Isso não significa ignorar a violência contra o espírito que deseja renascer; não é uma mudança de postura por parte das leis humanas que irá modificar a natureza do ato. Cada pessoa continua respondendo espiritualmente pelas consequências mais ou menos danosas das suas atitudes, seja o homem, seja a mulher. Mas reconhecer o mal contido em um ato não significa atribuir-se o direito de acusar ou de propor punição, de marcar a pessoa que o comete com o estigma de “criminosa”, com todo o peso que essa palavra carrega diante dos precários preceitos humanos. A esse tipo de argumento o sábio Espírito São Luiz responde:
Tudo depende da intenção. Decerto, a ninguém é defeso ver o mal, quando ele existe. Fora mesmo inconveniente ver em toda a parte só o bem. Semelhante ilusão prejudicaria o progresso. O erro está no fazer-se que a observação redunde em detrimento do próximo, desacreditando-o, sem necessidade, na opinião geral. (item 20)
Humberto de Campos, numa belíssima crônica psicografada por Chico Xavier, nos alerta no livro Estante da Vida que “a evangelização é empresa de amor. Como reclamar virtudes alheias sem ajudar a levantá-las?” Indagado por Nicodemos a respeito do ladrão a quem Jesus havia prometido o acesso ao paraíso, Jesus lhe adverte: “Como podes julgar apressadamente a tragédia de criaturas cuja história não conheces desde o princípio?” Prosseguindo o diálogo Jesus lhe esclarece:
– Não anulei a responsabilidade em tempo algum... Roguei, algemado à cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem...” Com isso, não asseverei que os nossos adversários gratuitos estivessem fazendo o que deviam fazer... Esclareci, tão-só, que eles não sabiam o que estavam fazendo e, por isso mesmo, se revelavam dignos da maior compaixão!...
(...)
– Nicodemos, na hora do Juízo Divino, muitas dessas mesmas desventuradas mulheres, que censuras, ressurgirão do lodo da angústia, limpas e brilhantes, lavadas pelo pranto e pelo suor que derramarem, enquanto que aparecerão pejados de sombra e lama aqueles que lhes prostituíram a existência, depois de lhes abusarem da confiança, lançando-as à condenação e à enfermidade.
Segundo a narrativa de Humberto de Campos, Nicodemos explica que só então compreendeu as palavras de Jesus narradas por Mateus, no versículo 13 do capítulo 9 do seu Evangelho de Luz: “Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento.”
É comum ouvir dos que defendem a legislação atual que “não nos cabe condenar a pessoa, mas a prática equivocada”, mas essas pessoas fecham os olhos ao fato de que o que está sendo condenado é a pessoa, a mulher, e não a prática do aborto, que continua acontecendo na clandestinidade e à revelia de qualquer ação social no sentido da prevenção.
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