Elias Inácio de Moraes
Uma leitura descontextualizada da obra kardequiana pode conduzir o leitor a equívocos que convém prevenir. Termos e expressões que naquela época faziam parte do senso comum são hoje objetos de outro olhar, requerendo do leitor uma compreensão clara do contexto em que a obra foi escrita. Inserido em outra cultura, a da Europa, que era o centro do mundo no século XIX, Kardec utilizava termos e conceitos que nem sempre se aplicam mais na atualidade, quando já se vão mais de 160 anos desde que seus livros foram publicados pela primeira vez.
No ano de 2006 alguns movimentos negros da Bahia pleitearam junto ao Ministério Público Federal da Banhia a proibição da publicação dos livros de Kardec pelo fato de eles apresentarem termos, argumentos e teorias de conteúdo racista. Em sua petição eles apontaram 106 pontos que continham expressões ou trechos inteiros que eles consideraram preconceituosos à luz dos entendimentos atuais.
Convém se afirme, como ponto de partida, que essas expressões ou comentários feitos por Kardec, ou mesmo por alguns espíritos que motivaram suas afirmações, não eram sequer percebidos como racistas à época em que foram escritos. Aliás, até o final do século XIX o termo “racismo” nem sequer havia sido inventado. O articulista Sérgio Rodrigues, da revista Veja, esclarece que essa expressão foi criada em 1902, na França, e vulgarizada em 1936 na Inglaterra. Até a metade do século passado o racismo sequer era discutido no Brasil. Nossa literatura da época, inclusive a espírita, traz vários exemplos de racismo implícito ou explícito que só mais tarde passaram a ser objetos de questionamento.1
Atualmente, em razão de um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta – firmado à época, todas as editoras que publicam obras de Kardec são obrigadas a fazer referência, em cada um dos 106 pontos que foram objeto do acordo, a uma Nota Explicativa que vai impressa no final de cada livro.
Essa ocorrência já deveria servir de alerta para que se coloquem notas explicativas de rodapé em todos os livros espíritas que, em razão de darem seguimento às ideias constantes na obra de Allan Kardec, também apresentam elementos que podem hoje, com razão, serem considerados preconceituosos ou racistas – e eles existem –, inserindo notas explicativas que esclareçam o leitor com relação ao contexto em que eles foram produzidos e advertindo palestrantes e coordenadores de estudos a não repetirem esses argumentos em palestras ou estudos espíritas, o que pode causar problemas futuros para os menos avisados tendo em vista que racismo hoje é crime.
Neste breve artigo discutiremos o caso da teoria da “raça adâmica” contida no livro A Gênese, que é um dos casos mais emblemáticos do ponto de vista do racismo estrutural.
Por racismo estrutural se entende aquele racismo não explícito, até mesmo inconsciente, mas que está enraizado nos elementos que alimentam e mantém a estrutura da vida social na atualidade.
Conforme argumenta Kardec, a “raça adâmica” seria a representação de um dos agrupamentos humanos da Terra, constituída por espíritos com evidente “superioridade intelectual”, que vieram de um mundo mais desenvolvido na condição de “exilados” ou “degredados” com a missão de ajudar no progresso do planeta Terra, até então habitado por “homens primitivos, mergulhados na ignorância e na barbárie”. Ela seria constituída de “homens essencialmente inteligentes”, brancos, e que traziam consigo “as luzes de uma inteligência já desenvolvida”.2 Neste caso ele está se referindo ao povo europeu, do qual ele mesmo fazia parte, e que não não possuem o nariz chato e nem os cabelos “crespos e lanosos” dos negros; ao contrário, seus cabelos são “longos e sedosos”.3 Em um texto sobre a “teoria da beleza”, que só foi publicado após a sua morte em Obras Póstumas, ele entende que os europeus são “mais belos do que os negros e os hotentotes.”4
E quem seriam aqueles “homens primitivos, mergulhados na ignorância e na barbárie”? O desenvolvimento do texto deixa claro que ele se refere aos negros africanos, aos indígenas brasileiros – da “Nova Holanda”, hoje Estado de Pernambuco – e a outros povos “mais atrasados” que viviam nas outras partes do mundo, como eram entendidos a Índia e a China.
Essa teoria foi apresentada pela primeira vez em 1862 em um “Ensaio de Interpretação sobre a Doutrina dos Anjos Decaídos” publicado na Revista Espírita. O próprio título já diz muito. Primeiro, que se trata de um “ensaio”, ou, como ele mesmo explica, uma “opinião pessoal que parece concordar com a razão e a lógica, o que, aos nossos olhos (dele, Kardec), lhe dá certo grau de probabilidade”, e tem como propósito reaproximar da Igreja “os que dela se afastaram.” Segundo, demonstra uma intenção de apresentar explicações que viessem ao encontro do pensamento católico do seu tempo, daí uma abordagem que procura dar um sentido racional aos mitos dos anjos decaídos, do paraíso perdido, do pecado original e da própria figura de Adão.5
Décadas mais tarde, Chico Xavier e Emmanuel escreveram, com base nessa teoria, o livro Evolução em Dois Mundos. Agora Chico e Emmanuel são mais específicos, e apresentam a “raça adâmica” como composta de espíritos que teriam vindo de um planeta que comporia o sistema de Capela, uma estrela observável na constelação do Cocheiro. Em sintonia com a teoria de Kardec eles explicam que esse planeta teria alcançado “a culminância de um dos seus extraordinários ciclos evolutivos”, tal como estaria ocorrendo no planeta Terra “relativamente às transições esperadas no século XX, neste crepúsculo de civilização.”
Segundo Chico e Emmanuel, com a reencarnação desses espíritos no ambiente terreno, “estabeleciam-se fatores definitivos na história etnológica dos seres”, dando ocasião ao “surgimento das raças brancas.” Reafirmando a teoria de Kardec eles associam esse grupo de espíritos vindos de Capela a quatro grandes grupos, a saber: “o grupo dos árias, a civilização do Egito, o povo de Israel e as castas da Índia.” Fiel à sua tradição católica, eles dão um destaque à contribuição do povo judeu que, em alimentando o sentimento de um “paraíso perdido”, contaria sua história mediante as tradições que seriam, mais tarde, gravadas nas páginas da Bíblia. Teriam sido esses grupos de Espíritos que estabeleceram “os pródromos de toda a organização das civilizações futuras, introduzindo os mais largos benefícios no seio da raça amarela e da raça negra, que já existiam.”6
Em que pese a beleza e a transcendência do texto, o livro A Caminho da Luz requer hoje uma análise cuidadosa em relação a alguns aspectos. Escrito em 1938, um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial, o texto alimenta a ideia de uma “raça ariana”, referindo-se aos “povos arianos, que floresceram na Europa e hoje atingem um dos mais agudos períodos de transição na sua marcha evolutiva.” Foi com base nessa perspectiva de supremacismo branco que Adolf Hitler cometeu o maior genocídio da história, assassinando 6 milhões de judeus nas câmaras de gás do nazismo.
Cabe esclarecer que quando Chico e Emmanuel escreveram seu livro ainda não haviam se consolidado as atuais discussões que atribuem ao termo “raça” um significado eurocêntrico, fruto de um processo de dominação do povo europeu sobre os demais continentes. Não se sabia, ainda, que a espécie Homo Sapiens Sapiens tinha sua origem na África e que, portanto, os primeiros seres humanos, com toda certeza, teriam sido negros. Nem a história havia registrado ainda a exuberância e a riqueza da África antiga e, portanto, dos povos negros, antes de terem sido devastados pelo colonialismo europeu. Também não haviam sido realizados os estudos de genética que demonstraram a inexistência de qualquer elemento de diferenciação, no nível dos genes, entre quaisquer grupos de seres humanos em qualquer localidade da Terra. Só na segunda metade do século XX é que ficou claro que não faz o menor sentido atribuir o conceito de raça a qualquer agrupamento humano, seja em virtude de cor, etnia, estatura ou qualquer outra característica que possa ser tomada como fator de diferenciação.
Com base nas teses de Kardec e de Emmanuel surgiu também o livro Os Exilados da Capela, de Edgard Armond, escrito em 1949 “com o auxílio da inspiração”, no qual ele procura dar novos desenvolvimentos a essa teoria tendo em vista o “mundo renovado do Terceiro Milênio que tão rapidamente se aproxima.” Ampliando a tese de Kardec, Edgard Armond estabelece correlações inclusive com outros mitos surgidos entre diversos povos ao longo da história, enriquecendo a teoria com informações de conteúdo esotérico, retiradas tanto de análises da Bíblia quanto dos conhecimentos da Teosofia. Ele associa ainda informações obtidas por via mediúnica segundo as quais Jesus teria vindo à Terra sob diversos personagens, entre os quais Krishna e Budha, na Índia. Na versão que ele apresenta, Atlântida deixa de ser um elemento didático adotado por Platão para explicar sua teoria política e passa a ser um continente que teria submergido em decorrência de “terrível corrupção psíquica” dos seus habitantes.7
Também o livro de Edgard Armond deve ser lido com cuidado redobrado porque ele apresenta a mesma ideia de supremacia branca, oferecendo elementos à ideologia do "branqueamento social", inaceitável atualmente. Ele associa os povos negros a “conquistadores violentos e aguerridos, que abrigavam suas hordas sob o estandarte do Touro, símbolo da força bruta e da violência.” No seu texto os “poderes espirituais do Alto” tudo fazem para preservar aqueles valiosos espécimes brancos, portadores de uma civilização mais avançada e tão laboriosamente selecionados” dos quais somos, “todos os homens brancos, os atuais descendentes e herdeiros.” Ele acrescenta ainda uma complicada profecia que prevê à extinção das “raças anteriores em vias de desaparecimento, nos próximos cataclismos evolutivos”. Além disso, há nele um negacionismo científico totalmente contrário à proposta de Kardec.8
Como se pode observar, há na teoria da “raça adâmica”, desde a sua origem, um elemento de racismo estrutural que faz parte da cultura da época, e que sobrevive ainda nos dias de hoje. Anterior a Kardec, essa teoria não é mais aceita no mundo científico, o que implica na necessidade de uma inteira revisão da sua presença no imaginário espírita.
Por exemplo, não se pode incorrer no equívoco de considerar os descendentes dos europeus, no Brasil, espiritualmente superiores às populações indígenas que aqui viviam e ainda vivem, e que quase foram extintas em razão da brutalidade do processo de colonização. Ou que os povos negros ou asiáticos sejam mais “atrasados” por não terem desenvolvido uma filosofia, uma ciência e uma tecnologia semelhantes ou na mesma direção utilitarista e materialista que os europeus brancos. Uma visão mais orientada para o espírito e menos para o corpo físico deve admitir que, ainda que se considere o surgimento da atual espécie humana de algum modo associado à vinda de espíritos de outros planetas, nada impede que eles tenham se encarnado nos nossos ancestrais que viviam na África e constituído as primeiras sociedades humanas – negras, e não brancas, como se pensava.
Hoje a Antropologia questiona se o desenvolvimento tecnológico pode mesmo representar uma medida de progresso, como pensavam os estudiosos do tempo de Kardec, e como pensam muitos religiosos ainda hoje, especialmente quando já se sabe que é exatamente esse desenvolvimento tecnológico que está colocando em risco, pela primeira vez na história, a sobrevivência humana no planeta Terra. Sem contar que essa visão de progresso não leva em conta o que Kardec considera como “progresso moral”, que teria mais a ver com a ética nas relações humanas observadas em um determinado povo do que com o desenvolvimento de tecnologias belicistas, descomprometidas com a preservação da vida e das condições de vida na nossa casa planetária.
Nestes dias em que graves acontecimentos trazem novamente à tona a questão do racismo estrutural, é importante que palestrantes e coordenadores de estudos se inteirem dessa discussão, exatamente porque ela interessa diretamente ao Espiritismo no que ele possui de mais caro, que é o seu propósito de cooperar para a construção de uma sociedade mais justa e solidária, sem qualquer traço de discriminação ou preconceito, de gênero, de cor de pele, de etnia, de condição cultural ou social, contra qualquer ser humano. Até porque a falta dessa consciência é o que alimenta o atual estado da nossa sociedade, tão castigada por diferentes tipos de preconceito, que tanto sofrimento e mortes têm causado ainda em nossos dias.
1- Disponível em 27/11/2020 em https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/racismo-a-palavra-nasceu-no-seculo-20/
2- Kardec, Allan. A Gênese, cap. XI item 38 pag. 174-175, Ed. CELD, Rio de Janeiro/RJ. Guillon Ribeiro traduz a expressão referente aos cabelos dos negros como “lanzudo e encarapinhado”.
3- Kardec, Allan. Revista Espírita, jan/1862 pag. 24. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
4- Kardec, Allan. Obras Póstumas, Teoria da Beleza, pag. 206. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ (2005).
5- Kardec, Allan. Revista Espírita, jan/1862 pag. 15. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
6- Xavier, Chico. A Caminho da Luz, pelo espírito Emmanuel, cap. III. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
7- Armond, Edgard. Os Exilados da Capela. Ed. Pensamento, São Paulo/SP.
8- Idem, ibidem, cap. 16. - No cap. 22 Edgard Armond apresenta como fatos, sem a menor tentativa de comprovação, a existência do continente perdido de Atlântida, uma inversão do sentido do giro da Terra em torno do próprio eixo, além da certeza do cumprimento de profecias que se referem a mudanças astronômicas traduzidas como “alterações do funcionamento do sol e da lua.”
mas se não me engano, no espiritismo fica claro tambem que se trata de uma doutrina que acompanha o conhecimento...nesse caso o espiritismo nao se comprometeu a abandonar alguns conceito, se fossem provados que se enganara em um ou outro ponto..acompanhando dessa forma o progresso do conhecimento cientifico:?esse posicionamento de kardec em abandonarmos conceitos ultrapassados pelo o novo, como progressista que é a doutrina..
ResponderExcluirExatamente. Mesmo assim observa-se muita resistência em abandonar esses conceitos que sofreram mudança no âmbito da ciência. Daí a importância de estabelecermos diálogos a esse respeito no ambiente das casas espíritas. Obrigado pelo feedback. Vamos juntos.
ResponderExcluirMuito bom texto, parabéns! Gostei também de como descreve as obras de Chico como sendo livros de Emmanuel, pois o são. Chico "apenas" psicografou.
ResponderExcluirEmmanuel deixa claro em alguns trechos do livro Caminho da Luz que ele próprio não tem pleno domínio sobre o assunto, que relata o que foi informado pelos níveis superiores com permissão, e que o livro não se propõe a ser histórico.
Para colaborar compartilho esse artigo e figura ilustrativa do que a ciência moderna sabe sobre evolução das espécies a partir de análise genética:
https://arqueologiaeprehistoria.files.wordpress.com/2018/08/evluc3a7c3a3o-humana.gif?w=723
https://arqueologiaeprehistoria.com/quem-sao-os-ancestrais-dos-seres-humanos-atuais-um-pequeno-catalogo/
cara, não existiu uma única raça Adâmica. Foram várias e elas são os descendentes dos capelinos: os árias, os hindus, os hebreus e os egípcios. Porém, isso aconteceu na época em que a humanidade ainda era coletora-caçadora, OU SEJA, quando ainda convivíamos com outras espécies Homo, como os Homo habilis, Homo erectus, neandertais, etc. PORÉM, houveram inúmeras migrações de outros planetas superiores, que foram exiladas para a Terra, que deram origem a outras raças humanas, posteriormente. E quando os primeiros adâmicos encarnaram na Terra, deram origem aos primeiros Homo sapiens. E sabemos que os Homo sapiens eram superiores, sim, as outras espécies humanas. Hoje já se sabe que outras raças alienígenas vieram pra Terra, como os siriús, órions, etc. Então, esse preconceito com a doutrina espírita não passa de erro de interpretação!
ResponderExcluirEssa teoria já caiu por terra no meio científico. E, quanto à informação dos capelinos, trata-se de uma informação mediúnica e que não encontra mais respaldo nos conhecimentos atuais.
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ResponderExcluirAutores: DEVE TER ESCAPADO AO ARTICULISTA, O FATO QUE O LIVRO EVOLUÇÃO EM DOIS MUNDOS TEM COMO AUTORES , WALDO VIEIRA E CHICO XAVIER
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