ESPIRITISMO, CAPITALISMO, SOCIALISMO, COMUNISMO...

Elias Inácio de Moraes

Nestes dias em que os temas políticos têm ganhado destaque é importante refletir a respeito do significado de algumas expressões que têm circulado nas redes sociais de maneira muito superficial, de modo a evitar distorções e equívocos que possam comprometer a imagem do Espiritismo entre as pessoas mais esclarecidas.

Socialismo - Embora o termo “Socialismo” tenha sido criado somente no início do século XIX, trata-se de um movimento cujas origens remontam à antiguidade, passando pelos filósofos da antiga Grécia, e que questiona as desigualdades sociais e as condições de vida dos seres humanos numa busca de maior justiça social. Fortemente impulsionado pela consolidação do capitalismo, no século XVIII, seus defensores propunham que o interesse coletivo (social) fosse prioritário em relação aos interesses dos indivíduos.

Robert Owen, Arthur Connan Doyle e Léon Denis, o principal continuador de Kardec, eram socialistas, assim como muitos outros nomes importantes do Espiritismo. Kardec, que era filho de magistrados, escritor, educador e empresário, manteve uma certa neutralidade em relação a esses movimentos, mas tinha conhecimento das discussões que se travavam. Em 1857, ao publicar O Livro dos Espíritos, ele abordou diversos temas da pauta socialista, como a desigualdade das riquezas, a miséria, o uso social da propriedade, a igualdade dos direitos do homem e da mulher, a igualdade entre os seres humanos e a transformação social.

Connan Doyle entendia que “para reinar a ordem social o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se as mãos; do Espiritismo pode nascer o socialismo idealista”. Assim também Léon Denis compreendia que o Espiritismo é o complemento que faltava ao Socialismo, destino inevitável de uma sociedade humana mais fraterna e solidária. Em 1941, ao escrever O Consolador, Emmanuel/Chico abraçam a ideia de um "socialismo cristão", de vez que a social-democracia estava promovendo grande melhoria nas condições de vida e de bem-estar em diversos países da Europa mediante a participação das classes trabalhadoras na política dos seus países.

Comunismo - O termo “comunismo” ganhou força com o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, lançado em Londres em 1848, no qual acusavam os socialistas de serem “utópicos” por acreditarem em uma transformação social paulatina, baseada no esclarecimento. Segundo seus autores, a exploração capitalista chegaria a tal ponto que induziria os operários a uma revolução, colocando fim ao capitalismo e inaugurando um novo modelo baseado na propriedade coletiva dos meios de produção, uma sociedade comunal onde o resultado do trabalho seria compartilhado entre todos, sem a exploração de um ser humano por outro ser humano. Embora provida agora de uma roupagem científica, essa ideia também remonta à antiguidade. Um exemplo de sociedade comunal planejada é a Casa do Caminho, criada pelos seguidores de Jesus, como consta em Atos dos Apóstolos. Ao longo do século XX vários países tentaram implementar modelos inspirados nas propostas de Karl Marx, mas que têm encontrado dificuldade na sua aplicação, tanto pelas dificuldades internas quanto pela forte oposição, até mesmo armada, dos países capitalistas.

Se, por um lado, esse modelo transformou a atrasada Rússia czarista na maior potência militar, científica e cultural do planeta em menos de 50 anos, isto se deu com a reprodução de muitas das mazelas do capitalismo, inclusive a subjugação do proletariado pelo Estado e o assassinato de muitos opositores do regime. Visando opor-se à pressão ideológica externa esses países limitaram o acesso da sociedade à comunicação com o mundo exterior, pelo que têm sido severamente criticados.

Há um dado curioso na literatura espírita: o livro Nosso Lar, de autoria de André Luiz/Chico Xavier, relata em detalhes uma experiência de coletivismo muito semelhante ao modelo proposto por Karl Marx. Lá a propriedade é coletiva e não se transmite herança; o “bônus-hora” não serve para acumular riqueza e não existe o conceito de lucro; há um governo central que coordena todas as atividades; o trabalho, a produção e a distribuição visam o bem estar de todos, e obedecem ao preceito marxista “de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades”.[1] Se para Kardec o mundo material é um reflexo do espiritual, Nosso Lar seria um modelo a ser copiado?

Capitalismo - Muitas pessoas no meio espírita falam do capitalismo como se fosse um sistema “natural”, algo criado junto com o mundo, fazendo parte da “natureza humana”. Ledo engano. O capitalismo se estabeleceu como modelo com o declínio do feudalismo e a Revolução Industrial, ao longo do século XVIII. Também tem raízes na antiguidade, mas é um sistema econômico criado pelo ser humano, como qualquer outro. Trata-se de um modelo centrado no capital, ou seja, no conjunto das riquezas acumuladas por um indivíduo. Tem por base a competição entre os indivíduos, a ambição pelo lucro e o desejo de acumular riquezas. Uma das suas virtudes é a liberdade de iniciativa, mas se ancora em uma brutal exploração do trabalho humano, o que tem promovido uma acumulação de riqueza sem precedentes na história, permitindo que 1% da população detenha metade de toda a riqueza produzida no mundo, enquanto os outros 99% disputam, em uma competição desigual, a outra metade.[2]

Outro ponto controvertido do capitalismo é que ele transformou o mundo em um grande mercado regido pelo consumismo, que destrói e degrada o planeta a passos largos. Substituindo a lógica da solidariedade pela competição ele considera a desigualdade social como necessária ao equilíbrio do sistema. Mediante a autoridade do Estado o capitalismo protege os interesses dos detentores do capital e mantém grande parte da sociedade na pobreza, obrigando-a a vender o seu trabalho na condição de operários ou a trabalhar como "livres empreendedores" na ponta do sistema, do que resulta a falta do mínimo necessário à sobrevivência para uma parcela significativa da população.

Todas as guerras da atualidade são motivadas pela intenção de domínio sobre os recursos naturais, quaisquer que sejam os países onde se encontrem, e pela imposição das condições de “livre-mercado” em todo o planeta, ou seja, pelo capitalismo. Qualquer país que tente proteger-se da exploração capitalista torna-se alvo de ataques midiáticos, a princípio; políticos, em seguida; de “apoio” militar se necessário ou, em último caso, de invasão armada. Vende-se a ilusão de que a guerra é em “defesa da democracia”, como se capitalismo e democracia fossem sinônimos, mas um exemplo foi a “guerra do ópio”, da época de Kardec, quando a Inglaterra obrigou a China a suspender o embargo a essa droga que estava destruindo a sua população. Guerras recentes, como a do Kwait, do Iraque, ou situações de conflito como na Venezuela, Síria, o bloqueio econômico a Cuba, ou a recente atuação da CIA no Brasil, tem a ver com o petróleo, e não com a economia ou com a democracia, como se tenta fazer parecer. A brutalidade da dominação capitalista criou as condições sociais favoráveis ao florescimento dos ideais socialistas e comunistas no século XIX e mantém cada vez mais vivas essas ideologias que defendem uma maior igualdade e justiça social.

O Espiritismo diante disso - Diante do atual cenário político algumas pessoas têm forçado uma associação entre o Espiritismo e o capitalismo, e uma condenação expressa ao socialismo, ao comunismo e ao “marxismo”, como se estes fossem materialistas e o capitalismo fosse um modelo de espiritualidade. Nesse tipo de distorção ideologizada o “marxismo” tem sido caricaturizado como sendo a defesa do ateísmo, do aborto, da destruição da família (casamentos homoafetivos), ignorando-se o endeusamento das riquezas materiais, o comércio clandestino de células tronco, e as jornadas de trabalho de 10, 12 e até 16 horas diárias, estas, sim, destruidoras da alegria e da vida familiar.

Kardec soube colocar-se acima desse nível superficial de discussão. Os espíritos lhe explicaram que a desigualdade social “é obra dos homens, e não de Deus”, e “desaparecerá quando o egoísmo e o orgulho deixarem de predominar”. Ao mesmo tempo em que admitiua uma utilidade social para a riqueza e a propriedade privada, ele também reafirmou que toda propriedade material é temporária, um empréstimo de Deus cujo melhor emprego é “socorrer os seus semelhantes” e praticar “a lei de amor e caridade”. O homem é apenas o seu “usufrutuário, o administrador mais ou menos íntegro e inteligente desses bens.” A acumulação de riquezas só se justifica se for feita de modo coletivo, “como a abelha”, sem causar prejuízo e sem a exploração de quem quer que seja. 

Ele reconhecia que “até agora os bens da Terra são açambarcados pelos violentos, em prejuízo dos que são brandos e pacíficos; que a estes falta muitas vezes o necessário, ao passo que outros têm o supérfluo”. Atualmente isso acontece mediante o corporativismo das elites econômicas, que dominam o Estado e manipulam as leis em seu favor, apossando-se de grande parcela da riqueza coletivamente produzida e deixando parte da sociedade em falta até mesmo do necessário à subsistência, o que promove a miséria, a fome e a morte. Numa perspectiva evolucionista Kardec prevê que “quando a Humanidade se submeter à lei de amor e de caridade, deixará de haver egoísmo; o fraco e o pacífico já não serão explorados, nem esmagados pelo forte e pelo violento.”

Em uma visão comprometida com as transformações sociais os espíritos dizem que “todos devem concorrer para o progresso auxiliando-se mutuamente”, porque, quando as leis humanas se tornam incompatíveis, o progresso “as despedaça. (...) Assim será, até que o homem tenha posto suas leis em concordância com a justiça divina, que quer que todos participem do bem e não a vigência de leis feitas pelo forte em detrimento do fraco.”[3]

É a essa transformação social que Jesus conclama quando sinaliza para a construção de um mundo de paz baseado na solidariedade, no amor ao próximo e na justiça, que ele chama de "Reino dos Céus". Um "Nosso Lar" na Terra, na linguagem de Chico Xavier/André Luiz, ou o "Mundo de Regeneração" de que falavam os espíritos a Kardece, onde a competição cederá lugar à solidariedade, a ambição pelo lucro ao desejo do bem de todos, e a acumulação de riquezas ao desenvolvimento dos valores do espírito. Enfim, um mundo pautado no "socialismo cristão" de que falava Emmanuel, ou inspirado no espírito comunal da Casa do Caminho, sonho de igualdade social dos seguidores de Jesus.

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[1] Xavier, Francisco C. Nosso Lar, pelo espírito André Luiz. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

[2] Piketty, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro/RJ.

[3] Vide O Livro dos Espíritos questões 185, 767, 781, 808 a 816 e 880 a 885 e O Evangelho Segundo o Espiritismo cap. IX e XVI.