DIREITOS HUMANOS E
ESPIRITISMO
Temos observado no meio espírita alguns equívocos no
que se refere ao significado das políticas de Direitos Humanos. Trata-se de
questão que já estava posta à época de Kardec desde a Revolução Francesa,
ocorrida em 1789, e que ocupava as atenções de toda a sociedade civilizada do
século XIX.
Naquela época Kardec se apresentava, assim como todo o
meio intelectual, como claro defensor dos princípios preconizados pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que eram considerados um Marco
Civilizatório de uma nova ordem mundial. Daí sua posição firme a respeito da
igualdade dos direitos do homem e da mulher, da denúncia às desigualdades
sociais e do princípio de defesa do fraco contra o arbítrio dos fortes,
manifestada inclusive sob a forma de “caridade para com os criminosos”.[1]
Entre seus escritos há um texto no qual ele comenta os
pilares da Revolução Francesa, de onde surgiu o que é para nós hoje a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e que foi publicado em Obras Póstumas sobre o título
“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.[2]
Observa-se, entretanto, mesmo entre pessoas
declaradamente espíritas, uma crítica à atual política de Direitos Humanos sob
a alegação de que se trata de defesa dos direitos de pessoas que não mereceriam
esse tratamento, em particular os presidiários e as pessoas que vivem do
tráfico de drogas. Em uma linguagem pejorativa, dos "direitos dos manos".
Um dos argumentos mais utilizados é o de que deveriam
estar sendo defendidos os direitos do “cidadão de bem”, que muitas vezes se
torna refém do crime e da barbárie ainda presentes na nossa sociedade, como se
o crime e a barbárie não fosse uma decorrência da precariedade da nossa
estrutura social, pela qual somos coletivamente responsáveis.
A esse respeito, vale citar um interessante debate
ocorrido no Senado Federal em 2015, quando o senador Randolfe Rodrigues, em
resposta a uma crítica feita por um de seus pares à política de Direitos
Humanos, lembrou a todos que “Direitos Humanos são direitos de todos os seres
humanos”, sem exclusão de quem quer que seja e por qualquer motivo.
Normalmente o assunto vem à tona quando da atuação da
nossa polícia diante de pessoas tidas como “marginais”. O senador, em seu breve
discurso, lembra que “marginal é quem está à margem da sociedade, quem foi
discriminado pela sociedade”. Assim sendo, não se pode atribuir à polícia a
função de matar, de eliminar o marginalizado. A função do Sistema de Segurança
Pública é reprimir o ato delituoso e, mediante uso do aparato prisional,
ressocializar o ser humano marginalizado e trazê-lo de volta ao convívio social.
Fora disso – lembra o senador – teríamos a barbárie. E
foi para eliminar a barbárie que se instituiu há pouco mais de 200 anos um
Pacto Civilizatório, quando, durante a Revolução Francesa, se falou pela
primeira vez de Direitos Humanos. Ali se estabeleceu a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, visando colocar um fim à barbárie.
Até então o que prevalecia era o absolutismo, na
figura dos monarcas, com suas masmorras e um poder de vida e morte sobre os
seus “servos”. A partir daquele momento, com base nos princípios de “Igualdade,
Liberdade e Fraternidade”, estabeleceu-se um Pacto Civilizatório, que representa
as bases sobre as quais se assenta a civilização ocidental.
Este Pacto Civilizatório estabeleceu limites que devem
ser observados para a perfeita convivência entre os membros da sociedade, para
o que deve contribuir o Estado, investido do poder de governo nesse novo arranjo
estabelecido. Isto posto o senador alerta:
O Estado não tem que matar, não tem que
destruir, não tem que segregar. Não é este o seu papel. Não pode haver por
parte do Estado qualquer excesso contra quem quer que seja. Alguém que foi
preso está sob a guarda do Estado, e o Estado não pode cometer excessos.
Um agente do Estado, seja quem for, é uma pessoa que
foi selecionada mediante um concurso público e que goza de um conjunto de
prerrogativas de Estado para fazer com que este cumpra a sua função de
garantidor dos direitos de todos, sem nenhuma forma de discriminação. E é
preciso que ele faça “exclusivamente isso”, sem deixar a desejar e sem ir além,
sem colocar no cumprimento do seu papel as suas convicções de natureza pessoal.
Se alguém cometeu um delito e a lei determina que ele
seja preso, cabe ao Estado, através de seus agentes, fazer cumprir a lei,
mediante o julgamento justo. Se ele for condenado à prisão, cabe ao Estado
fazer com que ele cumpra a sua pena. E o senador ressalta: “única e
exclusivamente isto”. Nada menos e nada mais que isto.
É vedado aos agentes do Estado cometerem qualquer ato
de violência física ou psicológica contra qualquer cidadão que, por qualquer
motivo, se veja às voltas com a lei, e cumpre ao Estado defender tanto os
membros da sociedade quanto os seus agentes, que também são membros da
sociedade, quando esses direitos forem violados.
É por isso – lembra o senador – que os Direitos
Humanos estão consagrados na nossa Constituição Federal no seu art. 5º,
mediante 78 incisos que resumem os direitos de todos os cidadãos, estabelecendo
inclusive que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante”, assegurando às pessoas que porventura venham a ser detidas em
função de algum delito o “pleno respeito à sua integridade física e moral”.
Atualmente, no Brasil, observa-se uma cultura de
violência contra segmentos oprimidos da população, em particular contra os
pobres dos bairros de periferia. Execuções sumárias sem conta são praticadas todos
os dias por agentes do estado, verdadeiros criminosos vestidos de uma farda que
desonram, sob a cumplicidade silenciosa de uma sociedade que entende que
“bandido bom é bandido morto”.
Viana de Carvalho, através da psicografia de Divaldo
Pereira Franco, esclarece que o homem, “estimulado pela violência interior por
que se deixa conduzir, estabelece os códigos de justiça em caráter mais
punitivo do que correcional”, e apresenta o que deve ser considerado como um
princípio espírita: “Educação, pois, ao invés de punição”.[3]
Kardec já alertava que as leis humanas são feitas
pelos fortes em detrimento dos fracos, sinalizando na direção de um “progresso
da legislação humana”, de modo que ela atue em sintonia com a Justiça Divina,
traduzida na Lei de Justiça, de Amor e de Caridade. Nessa perspectiva, as
pessoas em situação de marginalidade deveriam ser alvo de mais educação e
assistência do que de punição.
Mais do que isso, todas as pessoas deveriam ter garantidos
os seus direitos sociais mínimos estabelecidos na Constituição Federal, de modo
a colocar fim a esse perverso regime de exclusão social estabelecido por uma
sociedade que elege o capital como a medida de todas as coisas, sem levar em
conta o interesse coletivo.
Allan Kardec já previa essas dificuldades, que eram
percebidas desde aquele tempo.
Sente-se, porém, que as bases sociais não estão sólidas; a cada
passo o solo treme, por isso que ainda não reinam a liberdade e a igualdade, sob
a égide da fraternidade, porque o orgulho e o egoísmo continuam empenhados em
fazer se malogrem os esforços dos homens de bem.[4]
É preciso ter muito cuidado ao fazer coro às vozes que
protestam contra as políticas de Direitos Humanos, porquanto muitas dessas
vozes nada mais defendem do que a continuidade da opressão dos fortes contra os
fracos, a manutenção de um sistema planejado para a perpetuação da desigualdade
social, no qual a Fraternidade está distante de ser um elemento norteador, como
propõe o Espiritismo.
Por motivos muito menores Jesus bradava contra os religiosos
do seu tempo chamando-os de hipócritas: “Sois semelhantes a sepulcros caiados,
que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão”.[5]
Não será de estranhar se, quando de nosso retorno ao
mundo espiritual, encontrarmos por lá, quem sabe, Dandara[6],
entre os espíritos iluminados que cuidam dos sofredores da Terra, como bons
Samaritanos[7],
enquanto nós, à semelhança de Irmão Jacob[8],
nos perceberemos sob total falta de luz própria por não termos introjetado em
nossos corações a mensagem de amor de Jesus, que já nos alertava: “Eu vos
asseguro que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus,
não entrareis no Reino dos Céus”.[9]
[1] A
propósito, este é o título do item 13 do cap. XI de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
[2]
Kardec, Allan. Obras Póstumas. Pag.
287 da Ed. Feb, Rio de Janeiro/RJ, 2005
[3] Franco,
Divaldo P. Sol de Esperança, cap. 34,
por diversos espíritos. Ed. Leal, Salvador/BA, 1978.
[4]
Kardec, Allan. Obras Póstumas. Pag.
291 da Ed. Feb, Rio de Janeiro/RJ, 2005.
[5]
Bíblia de Jerusalém. O Evangelho de
Mateus, cap. XXI vv.31.
[6]
Dandara Kethlen é o nome social da transsexual assassinada em 15/02/2017 em
Fortaleza/CE aos 42 anos de idade pelo simples fato de ter nascido Antônio Cleilson
Ferreira de Vasconcelos e, por não se ajustar a essa condição, ter assumido uma
identidade feminina.
[7]
Lembrando que os samaritanos eram tidos pelos judeus da época de Jesus como
sendo a escória social, razão pela qual Jesus os toma como exemplo da caridade
e do amor que ele se propunha demonstrar.
[8]
Referência ao personagem central do livro Voltei,
psicografado por Chico Xavier e assinado por Irmão Jacob. O livro relata a
experiência do ex-presidente da FEB Frederico Figner, que nos alerta que
afirmar-se espírita ou cristão não é o suficiente para nos garantir luz própria
quando do nosso retorno ao mundo espiritual.
[9]
Bíblia de Jerusalém. O Evangelho de Mateus,
Sermão da Montanha cap. 5 v.20. Ed. Paulus, São Paulo/SP.
Excelente Elias!!
ResponderExcluirEsta passando da hora de nós espíritas nos posicionarmos coerentemente com os ensinamentos do Cristo e doutrinários perante a violência e a injustiça social.
Importante entender que é na nossa atuação na sociedade como cidadãos que se posiciona e age em defesa do que acredita, que está a nossa prática cristã. Precisamos formar fileiras contra qualquer forma de opressão e violência a quem quer que seja, e a favor de uma sociedade mais justa e menos excludente.
Pra isso necessario se faz avaliar ate que ponto estamos sendo omissos ou mesmo levados por conceitos equivocados internalizados que permite flexibilizar nossa indignação diante da barbárie.
E mais, como espíritas e como cidadãos conscientes de nossa tarefa de contribuição na melhoria e transformação do nosso orbe, precisamos ocupar espaços politicos decisórios e promovermos toda forma de defesa aos direitos humanos, às políticas de proteção social, educação, saúde, meio ambiente.
O norte é o mundo de Regeneração.
Afinal em que mundo queremos chegar?
Excelente Elias!!
ResponderExcluirEsta passando da hora de nós espíritas nos posicionarmos coerentemente com os ensinamentos do Cristo e doutrinários perante a violência e a injustiça social.
Importante entender que é na nossa atuação na sociedade como cidadãos que se posiciona e age em defesa do que acredita, que está a nossa prática cristã. Precisamos formar fileiras contra qualquer forma de opressão e violência a quem quer que seja, e a favor de uma sociedade mais justa e menos excludente.
Pra isso necessario se faz avaliar ate que ponto estamos sendo omissos ou mesmo levados por conceitos equivocados internalizados que permite flexibilizar nossa indignação diante da barbárie.
E mais, como espíritas e como cidadãos conscientes de nossa tarefa de contribuição na melhoria e transformação do nosso orbe, precisamos ocupar espaços politicos decisórios e promovermos toda forma de defesa aos direitos humanos, às políticas de proteção social, educação, saúde, meio ambiente.
O norte é o mundo de Regeneração.
Afinal em que mundo queremos chegar?
Obrigado Elias e Jane, este foi a ajuda mais esclarecedora sobre o assunto que já recebi e estava em busca deste conteúdo... Permissão para compartilhar também o comentário brilhante dá confrade Jane....
ResponderExcluirConcordo em partes, exceto o pensamento comunista. E e as colocações contrárias ao direto atual é porque há problemas e excessos.
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