Elias Inácio de Moraes
Neste exato momento mais ou menos duas mil meninas, moças ou mulheres brasileiras estão vivendo um momento de profunda ansiedade. Elas deveriam se tornar mães, mas decidiram abortar, e o farão ainda hoje. Segundo uma pesquisa realizada em Salvador, Bahia, dois terços delas estão sob efeito de algum tipo de violência doméstica; as demais o fazem por deliberação própria.
Dessas duas mil meninas, moças ou mulheres, duzentas desistiriam se
tivessem alguém com quem pudessem conversar a respeito(*). Como seu ato terá
que ser realizado às escondidas, elas não poderão contar com ninguém neste
momento em que sua própria vida estará em risco.
Serão mais de 50.000 só este mês e em torno de 600 a 700 mil ao longo
de todo o ano, segundo as estimativas.
Pelo menos dez por cento desses dramas poderiam ser evitados não fosse
o dogmatismo e a indiferença social que cercam este assunto.
Dogmatismo porque foi em nome da religião que foi estabelecida a atual
política criminalizadora em 1940, e que apenas jogou para a clandestinidade um
ato que deveria ser objeto de ações na área da saúde pública e da educação.
E indiferença social porque, mesmo sabendo disso, poucos se manifestam
dispostos a buscarem uma alternativa melhor, que leve em conta as questões que
afetam essas meninas, moças e mulheres, mesmo sabendo que essa indiferença
culminará no ato final do aborto.
Conversávamos em família ontem, no dia das mães, a respeito de trabalhos
voluntários que desenvolvemos na comunidade que se situa próxima da nossa Casa
Espírita, e minha filha me perguntou:
- Pai, e o que você pode fazer para evitar que pelo menos uma dessas meninas
faça o aborto?
Pensei por alguns instantes e me dei conta de que não há nenhuma forma de
saber onde elas podem ser encontradas, ou que dor elas estão sentindo neste
momento, que as faz recorrer a recurso tão extremo, mesmo sabendo tratar-se de
um crime aos olhos de Deus e perante a lei dos homens, e que pode lhes custar até
mesmo a vida.
Depois de muito pensar eu respondi à minha filha que, se não vejo
formas de lutar para que pelo menos uma delas deixe de fazer o aborto hoje, então
eu vou lutar para que mais ou menos 50 ou 60 mil desistam deste ato todos os
anos, no futuro. Vou lutar para que elas percebam que existem outras possibilidades de solucionar o
problema que as aflige que não seja impedindo de nascer o espírito que lhes
bate às portas da vida desejando presenteá-las com o título de mãe.
Para que isso possa acontecer, um único obstáculo existe, embora muito
difícil de ser transposto: o dogmatismo e a indiferença social que ainda
vigoram no ambiente das religiões que se afirmam cristãs, mas que ainda hesitam
em aplicar os preceitos de Jesus nas situações mais relevantes da nossa vida
social, e que insistem na manutenção dessa política criminalizadora, que afasta
das possibilidades de auxílio qualquer mulher que esteja insegura diante dessa
situação.
Se nos fosse possível buscar Jesus ainda hoje e lhe pedíssemos orientação
para a elaboração de uma lei que reduzisse a quantidade de abortos no mundo, é
bem provável que ele nos desse como diretriz algo mais ou menos assim: “Vinde a
mim todas vós, meninas, moças, ou mulheres, que vos achais aflitas e sobrecarregadas
pelo dogmatismo, pela indiferença social e pelo preconceito, e eu vos
aliviarei”. O mais provável é que ele nos pedisse para lhes ouvir as angústias
e as dores, sem julgamentos ou censuras de qualquer natureza, e que lhes
oferecêssemos acolhimento e cuidados, para elas e seus futuros filhinhos, como
forma de convencê-las a deixá-los vir ao mundo.
Não tenho a menor dúvida de que, para aquelas que ainda assim persistissem
no seu intento, Jesus nos sugeriria respeitar-lhes a decisão, do mesmo modo que
ele fez com Judas no instante da traição: “Vá e faça o que você acha que deve
ser feito, mas lembre-se de que o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória”. E para aqueles de nós que as acusássemos, daria a mesma recomendação
feita aos que acusavam a mulher surpreendida em adultério: “Atire a primeira
pedra aquele que nunca tiver cometido pecado”.
Refletindo sobre essa questão em pleno dia das mães cheguei à
conclusão de que a nossa escolha por continuar enfrentando a questão do aborto
com base em políticas de criminalização evidencia o quanto ainda estamos
distantes de compreender o pensamento de Jesus que, com certeza, nos pediria
maior investimento em acolhimento, amparo e assistência do que em reprimendas, censuras
e ameaças de prisão.
Se aspiramos por um mundo melhor, esse mundo melhor começa por
mudarmos os nossos paradigmas e defendermos leis que nos aproximem mais do
modelo de vida social proposto por Jesus, e que tem como base valores como amor
ao próximo, compaixão, tolerância com a fraqueza alheia, e perdão para aqueles,
ou aquelas, que ainda não conseguem estabelecer no amor para com o outro o referencial
para as suas decisões a respeito da sua própria vida.
Por que o mal predomina na Terra? Pela omissão dos bons. Os maus são
ousados; os bons são tímidos. Quando estes quiserem, preponderarão. Para que o
amor prevaleça é preciso arregaçar as mangas e oferecer nosso rosto ao escárnio
de todos, mesmo daqueles que se afirmam cristãos, mas ainda se dão o direito de
censurar e de ameaçar com prisão uma mulher em sofrimento.
Com Jesus não foi diferente. Quem o crucificou não foram os políticos
ou os ateus da sua época; foram os seus próprios irmãos de religião, os judeus,
que, por não o compreenderem, o levaram ao martírio.
Nesses tempos obscuros o nosso maior desafio não será convencer os juristas
ou os cientistas; estes já estão convencidos. Nosso maior desafio será
convencer os nossos próprios colegas de religião ainda presos ao dogmatismo, ao
tradicionalismo, e que ainda não conseguiram compreender a delicadeza de
algumas nuances do Evangelho de Jesus.
Nosso maior desafio é convencê-los de que essa posição dogmática está
causando ainda maior sofrimento a pessoas que já estão sofrendo, e que a única
forma de tentar evitar esse sofrimento e essa perda é mediante acolhimento,
orientação e assistência. E que tudo isso só fará algum sentido se esse
acolhimento, orientação e assistência forem oferecidos no momento exato em que
a necessidade surge.
E qual é este momento? É o momento em que a mulher, sabendo-se
grávida, e sentindo-se angustiada, frágil, insegura, decide por fazer o aborto.
É neste exato momento em que poderemos ajudá-la a desistir de tão terrível
intento.
Mas para isso nossas leis terão que ser baseadas no acolhimento e no respeito, na compreensão e na ajuda, e não em ameaças de prisão.
(*) O cálculo da quantidade de abortos que poderiam ser evitados foi
feito com base na experiência do Uruguai, onde o sábio ex-presidente José
Mujica propôs e conseguiu fazer aprovar uma lei em 2013 que transfere para o
Estado toda a responsabilidade sobre a regulação do aborto.
Desde então, para que o aborto não seja considerado crime a mulher
deverá procurar uma unidade de saúde pública onde será orientada por um Médico,
uma Psicóloga e uma Assistente Social. Nessa orientação deverão ser lhe colocados
à disposição todos os recursos de assistência disponíveis no Estado, de modo
que ela possa se sentir segura de ter o filho. Depois disso ela aguardará 5
dias, quando só então estará autorizada a realizar o procedimento, caso não
tenha sido convencida do contrário.
Fora desse programa o aborto continua sendo considerado um ato
criminoso.
O que tem chamado a atenção é que, ainda na fase inicial do programa,
em torno de 10% das mulheres têm desistido de se submeter ao aborto.
Se no Brasil as estimativas sugerem que todos os anos ocorrem em torno
de 600 a 700 mil abortos, um programa semelhante poderia evitar entre 60 a 70
mil abortos todos os anos, apenas por proporcionar às mulheres algum nível de
escuta, de acolhimento e de assistência.
Ao longo do tempo com certeza se ampliarão ainda mais as
possibilidades de se evitar a ocorrência de abortos investindo-se mais em
esclarecimento, apoio e orientação.
São números muito grandes, para ficarmos alheios à isto, principalmente quando se tratam de vidas indefesas
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