Homoafetividade e Homofobia


Elias Inácio de Moraes

Repercutiu fortemente no YouTube há algum tempo o caso do Sr. Roman, um sobrevivente do holocausto que aos 95 anos de idade (e depois de 67 de convivência conjugal) assumiu-se homossexual diante de sua família. Seu neto pretendia transformar sua história em um documentário longa metragem para atender a um desejo declarado pelo seu avô: “há certas coisas que eu quero que todo mundo saiba”.

Em entrevista a um famoso canal gay do Reino Unido o Sr. Roman refere-se à sua experiência de vida afetiva como “a maior tragédia da minha vida”, maior que a do holocausto, pois sabia-se gay desde os 5 anos de idade mas jamais teve coragem de assumir-se publicamente. Agora que o fez, já depois de 90 anos de auto repressão, concluiu também que este “foi o maior passo que eu dei em toda a minha vida”.

Entre as “coisas” que ele compartilha está o fato de que uma pessoa homossexual é um ser humano como qualquer outro, e que, mais que conexão física ou mental, busca o afeto de alguém com quem possa compartilhar amor e intimidade.

Poucos de nós paramos para refletir no sofrimento que causamos às pessoas com a nossa rejeição à sua maneira de ser. Imersos numa cultura discriminadora, oriunda da tradição judaico-cristã, não percebemos o absurdo de algumas visões que foram socialmente construídas ao longo dos milênios, e que nos levam a confundir homoafetividade com promiscuidade, sem-vergonhice, falta de caráter, como se heteroafetividade representasse o contrário de tudo isso.

Como decorrência dessa cultura doentia, 88% dos jovens estudantes brasilienses entrevistados pela UNESCO acham natural humilhar uma pessoa apenas por ela ser gay ou travesti e que 35% dos seus pais não queiram que seus filhos convivam com homossexuais em salas de aula. O resultado disso é que um adolescente homossexual apresenta entre 2 e 3,5 vezes maior propensão ao suicídio do que um jovem heterossexual.[1]

Uma pesquisa no meio espírita constatou evidências de homofobia por parte de alguns pais que gostariam que seus filhos não tivessem colegas homossexuais na mocidade ou na condição de professores nas salas de evangelização infanto-juvenil. São comuns os casos de pessoas que são afastadas das atividades ou que são impedidas de participarem apenas porque são homossexuais. Em uma Casa Espírita um diretor foi afastado porque descobriram que ele era homossexual. Em outra, logo que descobriram que um dos líderes da mocidade era gay ele foi sendo deixado de lado pouco a pouco, numa espécie de “geladeira”, até que ele mesmo se afastou da instituição.

Quando não são os dirigentes a manifestarem esse tipo de preconceito eles às vezes têm que enfrentar a homofobia de uma parte dos frequentadores. Algumas instituições têm promovido estudos, reflexões e movimentos de esclarecimento, de modo a minimizar a rejeição por parte de pessoas que ainda não compreenderam a missão transformadora do Espiritismo nas relações sociais.

Nesse sentido, é importante reconhecer com Kardec que o espírito não traz em si nenhuma forma de sexualidade, pelo menos no modo como a entendemos. O que prevalece, numa perspectiva espiritual, são o “amor e a simpatia, mas baseados na concordância dos sentimentos”. Sexualidade é uma manifestação orgânica, do corpo físico, e está sujeita a uma variedade imensa de diferentes necessidades que o espírito apresenta quando da elaboração do seu projeto reencarnatório.[2]

Desse modo, pode fazer parte das suas necessidades renascer no mundo como gay, lésbica, bissexual, travesti, transexual, homem ou mulher. Aliás, essa tentativa de categorização já se mostrou superada e podemos afirmar que não existem apenas os 7 gêneros acima, como às vezes faz parecer a sigla LGBTT. Nas palavras de Emmanuel, o que se observa mesmo é uma infinidade de variações de gênero que vão do “acentuadamente masculino” até o “acentuadamente feminino, sem especificação psicológica absoluta”.[3]

Ao reencarnar o espírito manifesta a sua sexualidade em pelo menos quatro diferentes dimensões, que podemos resumir da seguinte maneira:

Dimensão fisiológica: traduz-se no sexo biológico que se manifesta no corpo físico, que pode ser masculino, feminino ou, em raríssimos casos, hermafrodita. Neste caso esta dimensão refere-se apenas ao conjunto de órgãos físicos que o corpo apresenta ao nascer, decorrente da programação genética estabelecida no ato da concepção, sem levar em conta os aspectos psicológicos.

Dimensão psíquica: refere-se à maneira como a pessoa se sente. É o que se chama de Identidade de Gênero. De acordo com estimativas ainda muito imprecisas, entre 11% e 16% das pessoas estabelece uma associação que diverge, em alguma medida, do modelo socialmente construído para a sua caracterização fisiológica. Uma pessoa com sexo masculino que não se vê exatamente como um “homem”, ou com sexo feminino que não se vê como uma “mulher”.

Dimensão afetiva: Há homens que sentem atração afetiva e sexual por outros homens, e não por mulheres, assim como há mulheres que sentem atração afetiva e sexual por outras mulheres e não por outros homens. E há pessoas que tanto podem se sentir atraídas por pessoas do seu mesmo sexo quanto por pessoas do sexo oposto, sem que apresentem o menor sinal de leviandade, como às vezes se pensa, e que são os denominados bissexuais.

Dimensão da expressão: Muitas pessoas não se sentem devidamente acomodadas no modelo de expressão que se estabeleceu para homens e mulheres. Seu modo de andar, de falar, de se vestir, desde cedo revela que eles não se encaixam nesses dois modelos, que a nossa sociedade considera como absolutos. Mas também pode ser que a pessoa se sinta acomodada nesse modelo de expressão mas que sua afetividade seja orientada para pessoas do seu mesmo sexo. Ou seja, sente-se confortável como homem, mas afetiva e sexualmente atraído apenas por homens; ou sente-se confortável como mulher, mas afetiva e sexualmente atraída apenas por mulheres.

 Na complexidade que se estabelece a partir da combinação dessas quatro dimensões, e sem que isso nada tenha a ver com caráter ou moral, é possível encontrar homens que gostam, pelo menos eventualmente, de vestir-se como mulher, outros que o fazem de maneira permanente e outros que não se aceitam como homens e que desejariam mudar até mesmo a sua conformação anatômica para o feminino. Do mesmo modo ocorre com mulheres que não se sentem adequadas em modelos de expressão femininos, e que procuram um modo de se sentirem bem consigo mesmas a partir de padrões alternativos de vestuário, de corte de cabelo, do modo de andar e de se expressar. Em muitos casos elas sentem vontade de promover mudanças no seu próprio corpo, em uma tentativa de aproximá-lo de como se sentem na sua dimensão psíquica.

Desde 1970 que Emmanuel já havia antecipado essa questão no seu livro Vida e Sexo ao afirmar que

A coletividade humana aprenderá, gradativamente, a compreender que os conceitos de normalidade e de anormalidade deixam a desejar quando se trate simplesmente de sinais morfológicos, para se erguerem como agentes mais elevados de definição da dignidade humana[4]
É por isso que a não aceitação, ou o ato de exigir que uma pessoa se vista, se comporte, ou que estabeleça relações afetivas de modo divergente da sua orientação psíquico-emocional, se constitui em uma forma de violência psicológica. Daí o termo utilizado pelo Sr Roman, citado no início deste artigo, ao afirmar que negar a sua própria condição durante tanto tempo foi a “tragédia” da sua vida.

Se existe amorosidade nas nossas relações, nossa grande contribuição para com as pessoas a quem amamos será ajudá-las a se sentirem seguras e realizadas no modo como se sentem e se expressam, sem exigir-lhes sacrifício pessoal para que se acomodem a modelos socialmente construídos de representação que não condizem com o modo como se sentem na sua intimidade.

Observa-se no meio espírita uma expectativa de que pessoas LGBTT se comportem, pelo menos portas a dentro da instituição, como homens ou mulheres típicos, negando-lhes o direito de se manifestarem da maneira como se sentem. Nega-se-lhes o direito de demonstrarem afetividade e até mesmo o de se vestirem em conformidade com suas preferências. Na maioria das vezes lhes é vedado assumirem atividades de cunho espiritual, como atividades mediúnicas e passes, ou papéis e cargos de liderança apenas porque não conseguem se conformar dentro dos tradicionais papéis socialmente estabelecidos de homem ou de mulher.

É comum as pessoas entenderem como exemplo de amorosidade um casal hétero tratando-se de forma carinhosa no ambiente da Casa Espírita, mas classificarem de libidinoso e inadequado o mesmo comportamento por parte de um casal homoafetivo; isto nos raríssimos casos em que eles são aceitos como casal. Estabelecem-se padrões de comportamento muito mais em sintonia com os “preconceitos da sociedade, constituída na Terra pela maioria heterossexual, do que com as verdades simples da vida”.[5]

Essa discussão é importante porque impacta também sobre o nosso conceito de família, na medida em que passa a exigir o pleno reconhecimento dos casais homoafetivos, não apenas no que se refere ao seu direito de casar-se, mas também no de terem ou adotarem filhos e no de se apresentarem publicamente como casal. Apesar desse direito já se achar estabelecido em lei, continua existindo um cerceamento moral que é facilmente percebido no ambiente das nossas Casas Espíritas, e que têm se convertido em atos de violência no ambiente das ruas. A cada 16 horas uma pessoa LGBTT é assassinada no Brasil.

Aliás, cabe aqui chamar a atenção para o fato de que existem outras tradições religiosas, em particular algumas tradições espirituais africanas e Indianas, em que pessoas LGBTT são até mesmo consideradas “superiores” em função de sensibilidades especiais que somente elas poderiam desenvolver, razão pela qual são conduzidas preferencialmente aos cargos de sacerdotes e sacerdotisas.

Há também outras sociedades em que não se verifica a aversão que foi culturalmente estabelecida nas sociedades judaico-cristãs contra pessoas que apresentam orientação afetivo-sexual em condições de minoria. Nos países do extremo oriente inexistem atitudes de desrespeito ao outro por esse tipo de motivação e é comum pares homossexuais viverem naturalmente como qualquer outro casal heterossexual sem que isso se constitua em razão para qualquer tipo de discriminação.

Em uma Casa Espírita em que prevaleça uma cultura inclusiva e amorosa as pessoas são tratadas a partir dos mesmos direitos e deveres, sem nenhum prejuízo ou privilégio decorrente da sua orientação sexual. Segundo Emmanuel, o que se pode pedir de todos, tanto hétero quanto homossexuais, pode ser resumido nos seguintes termos: “não abstinência imposta, mas emprego digno, com o devido respeito aos outros e a si mesmo. Não indisciplina, mas controle. Não impulso livre, mas responsabilidade.”

Fala-se muito atualmente no processo de transição planetária pelo qual a Terra está passando, e que tem em vista transformá-la em um mundo digno de espíritos mais amadurecidos em termos de convivência. Mas essa transição planetária requer sejam mudadas para melhor as nossas leis, os nossos códigos sociais de conduta, nossos regulamentos formais ou simbólicos, eliminando das nossas comunidades toda e qualquer forma de preconceito, de discriminação e de exclusão.

Nas palavras de Allan Kardec,

Quando os homens estiverem imbuídos dessas ideias (caridade e fraternidade), conformarão a elas suas instituições e será assim que realizarão, naturalmente e sem agitações, as reformas desejáveis. Essa será a base sobre a qual assentar-se-á o edifício social do futuro.[6]

Essa mudança começa por compreender com Jesus que não é o exterior do copo que determina o valor do seu conteúdo. Aos seus olhos, o samaritano discriminado e detestado pode ser o exemplo de amor ao próximo, enquanto toma o sacerdote e o levita como representação dos que falam e agem em nome do Evangelho, mas que nem sempre o refletem nas suas atitudes cotidianas.

Nestes dias em que o assunto volta à tona em razão das novas diretrizes que norteiam a vida política do país, quando se pretende reverter dispositivos legais como o direito das pessoas homossexuais se unirem em matrimônio, de procriarem ou de adotarem filhos, de ir e vir sem que sejam discriminadas, quando são impedidas até mesmo ações de prevenção da homofobia nas escolas, faz-se necessário retomar o diálogo a esse respeito de modo a assumir posições públicas coerentes com a proposta de Allan Kardec e do Evangelho, reconhecendo com Emmanuel que “a aplicação do sexo, ante a luz do amor e da vida, é assunto pertinente à consciência de cada um”.[7]




[1] Teixeira-Filho, Fernando S. Ideações e Tentativas de Suicídio em Adolescentes com Práticas Sexuais Hétero e Homoeróticas. Revista Saúde e Sociedade, v.21, São Paulo/SP, 2012.
[2] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 200 a 203 e 258. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ
[3] Xavier, Francisco C. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel, lição 21. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4] Xavier, Francisco C. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel, lição 21. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[5] Idem, ibidem.
[6] Kardec, Allan. Viagem Espírita em 1862. Trad. Wallace L. Rodrigues, Ed. Feb, rio de Janeiro/RJ.
[7] Xavier, Francisco C. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel. Introdução. Ed. Feb, Rio de Janeiro/RJ.

Comentários

  1. Boa noite, Elias. Conforme havia dito a você, só hoje pude ler o seu brilhante artigo. Como sempre, mesmo já tendo conhecimento de seu comprometimento e caráter notáveis, você superou minhas expectativas. Isso precisa muito e urgente ser divulgado. É esclarecedor e, mais do que isso, Consolador. Obrigado.

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  2. Magnífico artigo, bastante esclarecedor. Parabéns ao autor pela brilhante lição, com embasamento na literatura espírita.

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  3. Maravilhoso está matéria. Parabéns ao seu realizador.

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  4. Que belo e humano texto, Elias! Vejo distinção no trato ainda pior se a pessoa de orientação homo for rica ou pobre.

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  5. SÓ vejo o teu coração Se percebo que tens Amor ... te abro meus braços! Namaste

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  6. Hoje terminei de lê, muito importante .

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