Espiritismo: até onde filosofia e ciência; até onde religião?



Elias Inácio de Moraes

Há uma questão antiga que ainda não foi superada, e que merece uma análise cuidadosa: até onde no Espiritismo a Ciência e a Filosofia? Até onde a Religião? Sem pretender colocar um ponto final na questão, dada a gravidade que muitos lhe atribuem, apresentaremos tão somente a nossa contribuição a esse debate.
A lista de livros publicados pelo professor Hippolyte Léon mostra que sua maior contribuição anterior à estruturação do Espiritismo se deu no campo da Pedagogia, mas uma análise dos argumentos utilizados posteriormente nos seus textos espíritas evidencia um homem com extensa formação filosófica e científica. Do exame da sua biografia ressalta também o seu perfil humanista e religioso, manifestado desde a sua juventude.
Nascido e educado até os dez anos em uma família católica, estudou até aos dezoito em uma escola protestante, daí o seu desejo de encontrar uma fórmula de conciliação que pudesse superar as divergências entre o Catolicismo e o Protestantismo. Tendo encontrado nos fenômenos espíritas a possibilidade dessa conciliação, entreviu um ganho adicional: tornar a religião consistente com a Filosofia e a Ciência, duas importantes conquistas da civilização.
Sem sombra de dúvida, Kardec ofereceu à sociedade uma importante contribuição científica centrada nos domínios do espírito – área de pesquisa jamais aceita pelas academias de ciências – mediante um rigoroso e inovador critério metodológico adotado por ele, representado, sobretudo, pelo Controle Universal do Ensino dos Espíritos, muito bem descrito no item II da introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
A única garantia séria do ensino dos Espíritos está na concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente, por meio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares.[1]
Mas, em que pese o rigor metodológico e argumentativo de Kardec, não há como negar que predomina nos seus textos o enfoque religioso. Para os padrões da época, a primeira edição de O Livro dos Espíritos, publicada em 1857, se aproxima mais de um relato científico do que a segunda, publicada em 1860, estruturada segundo um corpo doutrinário de caráter religioso-espiritual. O exame do conjunto da obra leva a crer que, diante da repercussão da publicação da primeira edição de O Livro dos Espíritos, Kardec começou a perceber a real implicação do trabalho que estava por vir, priorizando a partir daí uma ênfase mais religiosa e doutrinária, ainda que procurando manter os aspectos científico e filosófico do seu trabalho.
Mesmo o comportamento de Kardec, que pode ser acompanhado pelos seus relatos na Revista Espírita, não tem como ser confundido com o de um filósofo ou pesquisador que esteja apenas apresentando o fruto dos seus trabalhos. À medida que ele vai compreendendo a transcendência da ideia espírita e o seu papel transformador para a humanidade ele vai assumindo também o seu papel de líder religioso. Isso fica evidente desde 1858, quando ele escreve na Revista Espírita, em resposta a uma carta recebida:
O Espiritismo é o laço fraternal que deve conduzir à prática da verdadeira caridade cristã todos os que o compreendem em sua essência, porquanto tende a fazer desaparecer os sentimentos de ódio, de inveja e de ciúme que dividem os homens.[2]
Fica evidente que Kardec age muito mais como um missionário, que trabalha incansavelmente em uma tarefa que lhe foi confiada, do que como um cientista ou filósofo empolgado com o impacto das suas descobertas. É essa atitude que faz com que ele afirme com segurança aos que o convidaram a encetar a viagem de 1862:
Não vou a Lyon para me exibir, nem para receber homenagens, mas para conversar convosco, consolar os aflitos, encorajar os fracos, ajudar-vos com os meus conselhos naquilo que estiver em meu poder fazê-lo.[3]
Soma-se à vocação religiosa do homem Hipollyte a intenção também religiosa dos espíritos autores, pouco preocupados com a repercussão científica ou filosófica do seu trabalho, muito mais interessados em tocar o coração do que a mente dos homens.
Em que pese a forte ancoragem do seu trabalho na ciência e na filosofia de sua época, é tão clara a sua decisão de dar ao Espiritismo um corpo de doutrina religiosa que, ao escrever O Evangelho Segundo o Espiritismo, ele conduz o raciocínio do leitor na direção da oração e da comunhão espiritual, concluindo com um capítulo, o XXVIII, que é uma verdadeira “coleção de preces espíritas”.
Portanto, pode-se afirmar com muita segurança que Kardec apresentava em si tanto os atributos do filósofo quanto do cientista, marcas que estão muito bem caracterizadas em toda a extensão da sua obra, mas a sua grande vocação, que ressalta evidente de todos os seus escritos e que talvez tenha sido a qualidade mais importante entrevista pelos espíritos autores, é a do homem religioso, profundamente humanista, que abraça como missão “lenir corações aflitos, consolar, acalmar desesperos, operar reformas morais.”[4]
A tal ponto que, em 1868, após a publicação do último livro em que explora o projeto inicial de sua obra, ele faz uma espécie de Credo Espírita que, embora negando o caráter de religião tradicional que ele não reconhece no Espiritismo, reafirma o seu compromisso com uma nova forma de religiosidade.
A essa nova forma ele atribui o nome de Religião do Espiritismo, sem culto formal, baseada na confraternização espiritual, na comunhão de pensamentos, e na caridade como princípio de ação social, a partir dos seguintes pontos:
“Crer em um Deus todo-poderoso, soberanamente justo e bom;
Crer na alma e em sua imortalidade;
Crer na preexistência da alma como única justificativa do presente;
Crer na pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e de adiantamento intelectual e moral;
Crer na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos;
Crer na felicidade crescente na perfeição;
Crer na equitativa remuneração do bem e do mal, segundo o princípio: a cada um segundo as suas obras;
Crer na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma criatura;
Crer na duração da expiação limitada à da imperfeição;
Crer no livre arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal;
Crer na continuidade das relações entre o mundo visível e o mundo invisível, na solidariedade que religa todos os seres passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados;
Considerar a vida terrestre como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterno;
Aceitar corajosamente as provações, tendo em vista o futuro mais invejável do que o presente;
Praticar a caridade em pensamentos, em palavras e em ações na mais ampla acepção da palavra;
Esforçar-se cada dia para ser melhor do que na véspera, extirpando alguma imperfeição de sua alma;
Submeter todas as suas crenças ao controle do livre exame e da razão, e nada aceitar pela fé cega;
Respeitar todas as crenças sinceras, por irracionais que nos pareçam, e não violentar a consciência de ninguém;
Ver, enfim, nas diferentes descobertas da ciência a revelação das leis da Natureza, que são as leis de Deus.
Eis o Credo, a religião do Espiritismo, religião que pode se conciliar com todos os cultos, quer dizer, com todas as maneiras de adorar a Deus.
É o laço que deve unir todos os Espíritas em uma santa comunhão de pensamentos, à espera de unir todos os homens um dia sob a bandeira da fraternidade universal.”[5]



[1] Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, trad. Evandro Noleto. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[2] Kardec, Allan. Revista Espírita, Julho de 1858. Ed. IDE, Araras/SP. Os Itálicos são de Kardec.
[3] Kardec, Allan. Revista Espírita, Julho de 1862. Ed. IDE, Araras/SP.
[4] Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, item 30. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[5] Kardec, Allan. Revista Espírita, Dez/1868. Ed. IDE, Araras/SP.

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