OS “ESPIRITISMOS” DO BRASIL E O DESAFIO DA UNIÃO


Elias Inácio de Moraes

Os filósofos do século XIX imaginavam que o progresso se daria de forma convergente, tendendo para um futuro que seria caracterizado pela unidade de pensamentos, crenças e modos de vida. Isso seria o resultado do avanço da ciência e da universalização da racionalidade como elemento natural do comportamento humano, o que também levaria a uma unidade do pensamento religioso. Esse era o pensamento de Kardec, que norteou também os movimentos espíritas que se organizaram no Brasil durante o século XX.
Ao contrário do que se esperava, tem-se observado que o chamado “progresso” das sociedades se caracteriza por um crescente aumento da complexidade e da diversidade, bem como por uma revisão da supremacia da racionalidade e o consequente reconhecimento da emoção e da subjetividade no comportamento humano. Isso tem ocorrido em todas as áreas da experiência humana, incluindo algumas especializações da ciência, e em uma infinidade de perspectivas culturais descortinadas pelos atuais meios de comunicação. Em vez de tender a um objetivo considerado ideal, o que se observa em todas as áreas da vida é um movimento divergente e cada vez mais plural, sem contar as inúmeras idas e vindas em cada segmento, traduzindo o fenômeno da criação, amadurecimento e destruição das instituições sociais ao longo do tempo.
Quando se debruça o olhar sobre um conjunto maior de casas espíritas, analisando as suas particularidades, não há como negar a grande variedade de matizes que diferenciam entre si as mais de 14.000 instituições espíritas espalhadas pelo Brasil, colocando em cheque a diferenciação que até então se fazia entre movimento e doutrina espírita.
Ao longo dos últimos anos temos catalogado características que pudessem ser agrupadas de modo a permitir uma leitura a respeito do modo como cada instituição se diferencia e se afirma no conjunto, sem nenhuma pretensão quantitativa, em uma análise apenas qualitativa.
Por uma questão de foco foram excluídos os movimentos espiritualistas não kardequianos, que hoje representam um número elevado de correntes, embora a grande afinidade com os ideais e as ideias espíritas. Esta análise incidiu somente sobre as entidades ligadas às principais vertentes do chamado “movimento espírita”, enfocando dois aspectos: o modo como as pessoas compreendem a Doutrina Espírita e a forma como as instituições atuam junto à sociedade.
Sem esgotar qualquer tentativa de classificação, e reconhecendo que elas não são estanques, é comum encontrar nos grupos espíritas entendimentos como:
1º.    Atribuem à Doutrina Espírita uma autoria espiritual, da qual Kardec seria apenas o “codificador”. A obra de médiuns como Chico Xavier, Divaldo Franco e Yvonne Pereira, também assumem papel de “revelação”, e é considerada como uma “complementação” da obra kardequiana. Procuram na ciência a “comprovação” dos textos espíritas.
2º.  Semelhantes aos primeiros, têm em Kardec o “codificador” de uma revelação do mundo espiritual para a Terra, mas não reconhecem na obra de médiuns como Chico Xavier e Divaldo Franco o papel de “complementares”. Ignoram a literatura mediúnica que, sob seu entendimento, diverge de Kardec. Para estes, apenas Kardec detém a “verdade”.
3º. Consideram Kardec como o “codificador”, mas também reconhecem em Chico Xavier um missionário que veio ampliar o trabalho de Kardec, atribuindo à sua obra o mesmo papel de “revelação”. Observa-se, entretanto, que eles depreciam os outros médiuns, e muitos até defendem que Chico Xavier é a reencarnação de Allan Kardec.
4º. Para estes Kardec é o “codificador” do Espiritismo, mas reconhecem em J. B. Roustaing a “revelação da revelação”, tese que conta com anuência de estudiosos ilustres, como Bezerra de Menezes, e de espíritos como Emmanuel, através do médium Chico Xavier. Também buscam na ciência apenas a confirmação de Kardec e dos autores espirituais.
5º. Têm em Kardec o “pesquisador” que lançou os fundamentos do pensamento espírita, mas entendem que esse entendimento é dinâmico e evolui com o tempo. Consideram toda a literatura espírita, inclusive a obra de Kardec, sujeita à análise, que deve ser contextualizada com a ciência, a filosofia e as questões da atualidade.
6º.  Devido à presença da cultura africana no Brasil há os que fazem um sincretismo entre a Umbanda e o Espiritismo. Adotam os livros de Kardec e dos autores espirituais como material de reflexão, mantendo alguns rituais daquelas tradições, como o vestuário branco ou a busca de orientações espirituais junto às “entidades” ou “mentores”.
7º.  Misturam o Espiritismo de Kardec e de autores espirituais com conhecimentos esotéricos egípcios, indianos, xamânicos, dentre outros, de onde retiram novas explicações, mais new age, para a vida e o mundo. Atribuem um significado místico a elementos como pirâmides e cristais, e um entendimento amplo à palavra “energia”.
Não se resumem a estas as diferenças. Há espíritas que estabelecem uma associação entre Espiritismo e Teologia da Prosperidade, Saúde Integral, Ambientalismo Quântico, e inúmeras outras variantes, todos confirmando Kardec como sua referência fundamental.
Quando se analisa o modo como cada instituição atua junto à sociedade é possível identificar outras variações importantes, que às vezes aparecem combinadas entre si em uma mesma casa espírita, mas dentre as quais se distinguem:
a)     Instituições orientadas para o estudo da Doutrina Espírita mediante palestras, grupos de estudo, e eventos doutrinários. Menos ritualizadas, mantém o formato de religião, adotando os passes e a água “magnetizada”. Via de regra realizam alguma atividade de assistência a pessoas necessitadas, sob o ponto de vista material, espiritual ou os dois.
b)   Templos, ou “igrejas” espíritas, onde se pratica o “culto espírita”, que se restringe a palestras de conteúdo religioso e auto ajuda, passes e água “fluidificada”. Em alguns casos se usa o canto como meio de “harmonização” ou se recita o Pai Nosso ou a Ave Maria em voz alta. Exercem a caridade sob a forma de doação de bens para os pobres.
c) Centros Espíritas voltados para o tratamento espiritual das enfermidades físicas, onde se prescrevem quantidade de passes, uso de água fluidificada e assistência a sessões ou estudos. Alguns realizam "cirurgias espirituais", usam Reiki, “magnetização”, e há os que produzem medicamentos, como a pomada Vovô Pedro, xaropes, e remédios fitoterápicos.
d) Centros Espíritas que ancoram suas atividades em sessões de psicografia ou orientações do mundo espiritual. As palestras, de conteúdo moral, são uma forma de envolver o público visando a obtenção de mensagens consoladoras para as suas angústias ou cartas dos seus entes queridos já desencarnados. Alguns realizam atividades assistenciais.
e)   Instituições especializadas de assistência social, como os hospitais para enfermidades específicas ou os “sanatórios”, que já foram moda até meados do século XX e que, por exigência das mudanças na legislação, se transformaram nas atuais clínicas psiquiátricas. Há ainda as inúmeras creches que, pelas exigências da lei, resultaram nos atuais CMEIS.
Não foram incluídas nessa análise as entidades que representam segmentos sociais ou áreas de estudos e pesquisas e nem os sites, revistas, blogs, perfis, TVs, jornais ou grupos virtuais que se dedicam a aspectos específicos da Doutrina Espírita.
Do que foi observado, conclui-se que o Espiritismo também está sendo alcançado pela atual mudança de paradigma, requerendo um novo olhar que supere a visão positivista baseada no modelo mecanicista da física newtoniana, que dominou a filosofia e a ciência até o século XIX, para uma visão sistêmica, baseada na complexidade dos modelos biológicos e sociais que surgiram em meados do século XX, com Von Bertalanffy e Talcot Parsons, respectivamente e, mais recentemente, com a teoria dos sistemas adaptativos complexos, de Edgar Morin e Ilya Prigogine.[1]
Como lidar, portanto, com essa realidade tão diversificada e instável como se apresenta?
O pior que pode ocorrer, e Kardec já previa isso, seriam os “cismas”, ou divisões internas, no campo da própria doutrina. Para isto basta que os espíritas se deixem levar pelo desejo de supremacia, pessoal ou de grupo, acreditando-se detentores da verdade e tentando impor sua visão de Espiritismo sobre os demais, mediante desqualificações recíprocas, negação de espaço ao outro dentro do corpo do movimento, exclusão real ou simbólica e quaisquer outros meios de silenciamento das divergências. Isso apenas atestaria a sua falta de adesão aos princípios de igualdade, fraternidade e solidariedade, que são os pilares da sociedade moderna, bem como aos valores do Evangelho e do próprio Espiritismo.
Nesse contexto, até mesmo o conceito de “unificação”, tão caro ao meio espírita, passa a demandar uma nova compreensão. Em vez da unidade tão sonhada, baseada na hegemonia de uma determinada corrente, ou em alguma forma subliminar de dominação ideológica ou espiritual, emerge agora a necessidade de uma união baseada em formas de participação igualitária em uma sociedade que se manifesta cada vez mais plural.
Desde sua época Kardec já previa que maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos do que um só, “capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais”. Valorizando o princípio democrático e a igualdade entre os membros ele propõe a cada um “apenas um voto”, para que todos dependam do concurso de todos os demais.[2]
Sob essa nova perspectiva a diversidade e a complexidade precisam ser afirmadas como valores; as diferentes visões e o contraditório, em vez de elementos de conflito, passam a ser entendidos como meio de ampliação das possibilidades de conhecimento.
Não lhe cabe (à doutrina espírita) fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias da sua perpetuidade.[3]
Isso coloca em pauta a necessidade de se buscar novas formas de entendimento, novas bases para as relações interpessoais e interinstitucionais, sob a perspectiva de uma sociedade plural. “Se tenho razão – dizia Kardec –, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros”.
Mas isso só será possível se retomarmos também como valor a amorosidade na relação com o outro, em vez de dominação e poder, em sintonia com a moral de Jesus que recomenda tratar os outros como gostaríamos que nos tratassem, se estivéssemos nós em seu lugar. Até porque, segundo Jesus, “os meus discípulos serão conhecidos por muito se amarem”.



[1] Neves, Clarissa E.B. e Neves, Fabrício M. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais, in revista Sociologias, ano 8 nº 15 jan/jun 2006. Por Alegre, RS.
[2] Kardec, Allan. Obras Póstumas, pag. 409, Ed. FEB, Rio de Janeiro, RJ.
[3] Kardec, Allan. Revista Espírita Dez/1868. Ed. FEB, Rio de Janeiro, RJ.

Comentários

  1. Parabéns pelo texto. Enseja estudo reflexão!

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo texto. Enseja estudo e reflexão!

    ResponderExcluir
  3. Gostei, estamos na fase da vivência, da inclusão, de unirmos os diferentes sob a égide do Cristo e da Doutrina Espírita.

    ResponderExcluir
  4. Amigo Elias...confesso que o uso de algumas "aspas" me incomodaram...mas conhecendo vc e seu espírito aberto sei que se trata só de recurso para identificar a ideia, sem nenhum demérito ao termo usado...isso e tb vc ja tendo mencionado que os tipos não se esgotam ai nos trazidos por vc...porque acho que não me encaixei bem em nenhum!!! Fora isso , parabéns! Dialogo sempre! Deus é a grande árvore da vida, onde todos os galhos de espiritualidades estão conectados! Grande abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pelas ponderações, Adriana. Vou estudar uma forma diferente de relativizar o significado do termo sem o uso das aspas, que também me incomodam. Ficarei agradecido se você puder descrever as diferenças que não foram contempladas, já que nenhum estudo está pronto e acabado. Quero enriquecer meu entendimento a partir das suas considerações. Um abraço.

      Excluir
  5. Querido Elias, sempre pensando além do seu tempo, apesar de sua classificação ter me parecido incompleta, pois tenho percebido mais diversidade entre os adeptos do que você situou. Entretanto, você identificou alguns tipos que eu não tinha diferido, o que foi importante para o aprendizado de que a complexidade é ainda maior. Parabéns, amigo. Citarei você em um de meus trabalhos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Por favor, me informe o que mais você conseguiu em termos de diversidade. Nenhum estudo é definitivo e desejo ampliar este meu... Rsrsrsrs

      Excluir

Postar um comentário