Elias Inácio de Moraes
As ideias religiosas, longe
de perderem alguma coisa, se engrandecem, caminhando de par com a Ciência.
(Allan Kardec)
Há
alguns anos, em visita a uma casa espírita de Goiânia, assisti ao comentário da
noite feito por um dos trabalhadores da instituição. Ele discorria sobre um
tema e usava como referência alguns trechos do livro A Gênese, de Allan Kardec, aos quais acrescentava suas observações
pessoais. Ocorre que alguns desses trechos, fundamentados na ciência vigente no
século XIX, se referiam a conteúdos que haviam sofrido profundas mudanças desde
a época de Kardec. Havia um enorme descompasso entre seus comentários e o que é
compreendido hoje pela ciência, do que nem ele mesmo parecia se dar conta.
Mais
recentemente observei algo parecido ao assistir a um comentário realizado em outra
Casa Espírita, desta vez em torno da questão 51 de O Livro dos Espíritos. Como as questões eram estudadas em
sequência, o próprio comentarista não escondia o seu embaraço diante da
resposta dada pelo espírito, em descompasso com a correção que o próprio Kardec
fez mais tarde no item 16 do capítulo XII de A Gênese.
Desde
então tenho refletido sobre a importância de promovermos estudos a respeito da
época em que a obra de Kardec foi produzida, o seu contexto religioso, científico
e filosófico, bem como dos desdobramentos posteriores de alguns conteúdos que
sofreram mudanças mais expressivas. Estabelecer um diálogo e uma reflexão com comentaristas,
palestrantes, facilitadores, monitores de cursos, dos quais as pessoas cobram segurança
no tratamento de alguns temas que são do mundo da ciência, embora correlacionados
com as temáticas espíritas em estudo.
Não
se trata de empreitada fácil, e nem tem como ser realizada por um único
indivíduo, pois que envolve as mais diversas áreas do conhecimento humano.
Entretanto, um passo inicial pode ser dado, abrindo as discussões que serão
necessárias para que ela possa ser desenvolvida pela coletividade dos
estudantes do Espiritismo com a profundidade e a seriedade que esse trabalho requer.
Também
não é o caso de “modernizar” os textos kardequianos, como pretendem alguns;
trata-se tão somente de compreender a obra kardequiana no seu tempo e no seu
contexto, e identificar as novas explicações trazidas ao mundo pelos homens da
ciência e da filosofia, e da própria religião espírita, de modo a permitir um
diálogo mais consistente entre ela e os conceitos hoje vigentes, como previa o
próprio Allan Kardec.
Toda
literatura expressa significados inerentes ao seu tempo e ao contexto em que
foi produzida. Para que seja apreciada em outro momento é necessário que ela
seja contextualizada, sem o que pode não ser adequadamente compreendida. É o
que se dá com os escritos de Platão ou de qualquer outro pensador grego da
história antiga, ou com os Salmos de Davi ou de Salomão, cuja “sabedoria” só
faz sentido se consideradas no contexto dentro do qual foram elaborados.
Ninguém, em sã razão, celebraria hoje a matança dos inimigos.
Foi
assim também com a literatura produzida em torno da vida e dos ensinamentos de
Jesus, e que Kardec contextualizou muito bem para o mundo do Iluminismo. Portanto,
com a obra literária produzida por Kardec não poderia ser diferente.
Houve
um tempo em que a Igreja Católica, visando estabelecer a sua autoridade,
procurava controlar a Ciência através dos conteúdos da Bíblia, que a tradição
judaica considerava “sagrada”. Esse tempo foi rompido com o Iluminismo; a
Igreja perdeu o seu poder e a Bíblia perdeu a sua aura de sacralidade. Hoje seria
um equívoco tentar controlar a ciência pela codificação kardequiana, ou atribuir
aos textos espíritas a sacralidade de que a Bíblia já desfrutou em outros
tempos.
Na
realidade essa contextualização da obra kardequiana já acontece todos os dias; palestrantes,
facilitadores ou monitores de cursos, nas instituições espíritas, sempre
agregam algum conhecimento pessoal, alguma visão própria, às suas explicações “espíritas”.
A nosso ver falta, entretanto, dialogar a respeito dessas questões, de maneira
aberta, transparente, não dogmática, identificando os conceitos e entendimentos
cuja mudança ao longo do tempo estejam mais evidentes.
A quem estude a obra kardequiana de maneira atenta, não
passam despercebidas as
diversas influências decorrentes do simples fato de Kardec ter nascido, vivido
e produzido sua obra durante o século XIX, um período de profundas
transformações no conhecimento humano, com o movimento neocolonialista em plena
ascensão. E mais, durante um período de forte turbulência social e política na
Europa e especialmente na França e em Paris, que foi o palco da Revolução
Francesa, do império napoleônico e da ditadura de Napoleão III, e de diversas
guerras civis na tentativa de implantar a república. Kardec escreveu seu último
livro, A Gênese, quando já era iminente
a derrocada do império e a instauração definitiva do regime republicano,
prenunciando uma Nova Era.
Do
mesmo modo, não há como deixar de considerar as profundas transformações
tecnológicas e sociais vividas em decorrência da Revolução Industrial iniciada
no século XVIII, no bojo da qual Kardec estava inserido. Mais ainda, as que a
sucederam, posteriores a Kardec, a saber, a Revolução das Comunicações, já no
século XX, seguida da Revolução da Informática na transição para o século XXI
e, por último a chamada Quarta Revolução Industrial, que inaugura uma nova era baseada
no uso em larga escala dos robôs autônomos e da Inteligência Artificial.
Ignorar essas
variáveis é condenar o pensamento espírita a manter-se preso ao contexto filosófico
e científico da França do século XIX, quando novas necessidades, então
inexistentes, clamam pelas luzes que o Espiritismo pode oferecer às questões do
Século XXI.
Imaginando
que Kardec tivesse rompido todas as barreiras da longevidade e estivesse ainda
entre nós com seu vigor habitual, publicando todos os meses a Revista Espírita,
que novos assuntos estaria ele explorando atualmente? Que outras abordagens, da
Filosofia e da Ciência, ele teria incorporado aos seus estudos? Que posições estaria
assumindo hoje diante das novas questões trazidas pela sociedade cada vez mais
complexa dos nossos dias?
Como
ele conciliaria suas antigas abordagens com os novos desdobramentos trazidos
pela Teoria da Relatividade de Einstein, pela Física Quântica, pelos estudos de
Charles Darwin e Karl Marx aos quais ele não teve acesso? Como ele integraria
ao Espiritismo os novos conhecimentos e as novas formas de ver o homem e o
mundo trazidos por áreas só agora consolidadas, como a Psicologia, a
Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política? Como ele aproveitaria hoje as
contribuições de médiuns extraordinários que enriqueceram as prateleiras das
livrarias nas últimas décadas com centenas de romances e uma leva de tratados de
autoria de outros espíritos que não são mais os da codificação?
Chego
a imaginar a Revista Espírita expandindo agora as suas análises para além dos
limites da Europa e contemplando a religiosidade da Índia, da China, a tradição
xamânica dos Celtas, da África e das Américas. Imagino Kardec analisando as questões
econômicas e geopolíticas que se colocam como pano de fundo dos conflitos
internacionais, as disputas ideológicas da atualidade, as transformações
culturais experimentadas por todos os povos nessa nova era de conectividade
globalizada e de manipulação midiática.
Nesse
sentido, Kardec já havia apresentado algumas propostas para a continuidade da
Doutrina Espírita, cujo progresso dependeria do seu “estabelecimento teórico”,
garantindo o seu “caráter essencialmente progressivo”.
Pelo fato de ela não se embalar com
sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só
nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova
lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe
fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas
as ideias reconhecidamente justas, de quaisquer ordens que sejam, físicas ou
metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais
garantias da sua perpetuidade.[1]
Mas
esse trabalho não compete a um messias ou a um novo ser “iluminado”, nem aos
médiuns ou aos espíritos, mediante novas “revelações”. O Espiritismo, como religião
da razão, requer que esse trabalho seja realizado pelas pessoas, livres
pensadoras, analisando as novas informações trazidas pelos espíritos com base nos
elementos da filosofia de hoje e nas modernas metodologias da ciência. Cabe-lhes
o desafio de construir hoje as respostas que o mundo atual requer, com base nos
pilares do passado, mas com a mente voltada para os desafios da complexa sociedade
do século XXI. [2]
[1]
Kardec, Allan. Obras Póstumas,
Constituição do Espiritismo. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[2] Idem,
ibidem, ibidem.
Muito bom o comentário e bem pertinente, o problema que vejo é alguns palestrantes, espíritas, tentar colocar o Espiritismo dentro de uma "caixinha", defendendo posições de "certo e errado" segundo suas convicções, vejo que o Espiritismo é "a partidário", não tem posição política, pois tudo isso é "perecível", a única coisa permanente é a "impernacência", e querem parar o progresso que é um mundo dinâmico e deveríamos também pesquisar, analisar, deduzir com uma nova abordagem com reciclagens, porém o que temos feito é um Espiritismo "pragmático" e nao colocar para fora auxiliando no progresso da humanidade, não vejo que com essa abordagem estaria progredindo, a mesmice cristaliza e acaba, vejo sempre comunicações de mentores dizendo "que a paz de Jesus Cristo esteja com todos" e o resto responde "assim seja ou amém", etc... porém isso é realmente o que o Espiritismo traz ou é algo de "espiritólico", um espiritismo trazido do catolicismo. Dalai Lama disse que quer levar o Budismo a todos os ramos, política, vida social, educação, etc... e nós como "auto-declarados espíritas" o que temos feito? Elogio e muito sua página, foi uma surpresa agradável e ver o artigo "O espiritismo ante a cultura do estupro", gostei muito, imagine se o Budismo como filosofia não-cristã ser algo de bom, imagine o Espiritismo com sua moral evangélica, leis de causa e efeito, ação e reação, ir na abordagem social, ético, expandindo as pessoas o que está no Evangelho em suas abordagens o quanto de progresso e que o mundo pode melhorar, não é uma utopia, porém fazer com que disse os espíritos "a missão do Espiritismo é auxiliar no progresso da humanidade". Isso daí já seria um bom começo.
ResponderExcluirObrigado pelo estímulo que posso entrever no seu comentário Thiago. Vamos fazendo a nossa parte para que o Espiritismo seja, mais que uma religião, um paradigma para um novo tempo, marcado pela nossa atuação junto à realidade social. Um abraço.
ExcluirTentei pesquisar no blog sobre a autoria do mesmo e do texto acima, mas não encontrei. Quem assina o texto?
ResponderExcluirTodos os artigos deste blog são de minha autoria. Será um prazer dialogar a respeito.
ExcluirElias, teus textos dao muito bons. Tenho essa mesma vontade de ver o trabalho de Kardec atravessando os séculos e sendo estudo sem fundamentalismo. A contextualização é uma obrigação nossa, se queremos ter coerência. Textos assim são libertadores!
ResponderExcluirObrigado pelo carinho contido no seu feedback, Suzy.
ExcluirExcelente seu texto. Muito lúcido e oportuno!
ResponderExcluirPrecisamos iniciar um movimento para compartilhar as descobertas pessoais que cada um faz.
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