Limites Culturais da Terceira Revelação



Elias Inácio de Moraes
Seria o Espiritismo, como entendem muitos espíritas, uma “terceira revelação” em nível mundial, planetário, abrangendo todas as sociedades, todas as culturas, todas as crenças? Seria este o sentido atribuído por Kardec e pelos espíritos à ideia de Terceira Revelação presente no livro O Evangelho Segundo o Espiritismo e em A Gênese? Como pode um movimento que abriga apenas 4% dos brasileiros colocar-se como superior às crenças de quase 8 bilhões de seres humanos de outras tradições religiosas, especialmente as não cristãs, como budismo, hinduísmo, islamismo que, somadas aos ateus, representam 70% da população mundial?
Esta é uma questão relevante porque, dependendo da maneira como é apresentada, em vez de facilitar a aproximação do Espiritismo com as demais correntes de pensamento, aí incluída a ciência, o distancia, na medida em que pretende situar-se acima delas.
Como se construiu esse entendimento e como ele pode ser compreendido na atualidade? É disso que trata o presente artigo.
Revelação era o termo utilizado por diferentes filósofos anteriores a Kardec para referirem-se ao conhecimento que não era resultado da busca humana pelo saber, em especial do conhecimento religioso materializado nas "sagradas escrituras". Pelo termo “revelação” Kardec compreende todo ensinamento “dado por Deus ou por seus mensageiros, quer por meio da palavra direta, quer por inspiração”. Assim sendo, o Espiritismo, como resultado de um trabalho de pesquisa, seria uma revelação que apresentava um duplo caráter: o de “ser divina a sua origem e da iniciativa dos espíritos”, mas “sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem”. Neste último sentido ele seria uma “revelação científica”.
Desde a primeira edição de O Livro dos Espíritos, em 1857, que Kardec apresenta o Espiritismo como o resultado de uma revelação do mundo espiritual para a Terra. Embora ele procure dar ao seu livro um caráter mais científico, quase como um relatório final de sua pesquisa a respeito do fenômeno das mesas girantes, ele lhe atribui um caráter de filosofia religiosa ao apresentá-lo como uma “revelação” dos espíritos para os homens, “quando estes se mostram aptos a compreendê-las”.
Em junho de 1861 Kardec publica na Revista Espírita uma carta do advogado J. B. Roustaing na qual o correspondente agradece aos
divinos mensageiros por terem vindo nos ensinar que o Cristo está em missão na Terra para a propagação e o sucesso do Espiritismo, esta terceira explosão da bondade divina, em cumprimento daquela palavra final do Evangelho: unum ovile et unus pastor.[1]
Interessante destacar no texto a referência a essa “terceira explosão da bondade divina”; em particular a palavra “terceira”, mas não é sem motivos que Roustaing faz essa observação. Em março daquele mesmo ano Kardec havia publicado uma mensagem assinada por um espírito israelita chamado Mardochée, parente do médium que a recebeu, e que trazia essa ideia de terceira revelação afirmando que “Moisés abriu o caminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a concluirá”.
Em setembro do mesmo ano Kardec publica na Revista Espírita uma longa mensagem ditada em três etapas por um parente daquele espírito, que assina por Edouard Pereyre, também israelita, e que é dirigida “a seus correligionários”. Nesta, ele afirma, de maneira textual, que o Espiritismo é uma nova revelação, que “se produz simultaneamente entre todos os povos instruídos”.[2] Se Kardec já aspirava por uma nova ordem de ideias que pusesse fim ao histórico conflito entre as religiões, esse espírito israelita lhe afirma que
o Espiritismo é o advento de uma era que verá realizar-se essa revolução nas ideias dos povos, uma vez que haverá de destruir essas prevenções incompreensíveis, esses preconceitos imotivados, que acompanham e seguem os judeus em sua longa e penosa peregrinação.
Em se considerando as publicações contidas na Revista Espírita e nos demais livros de autoria de Kardec, origina-se desses espíritos israelitas, parentes entre si, essa visão sequenciada de primeira, segunda e terceira revelação, personificadas em Moisés, Cristo e Espiritismo. É o espírito que assina como Edouard Pereyre quem detalha de modo sequenciado cada uma das três “revelações”:
No Monte Sinai ocorreu esta primeira revelação...[3] (...) Jesus-Cristo foi, pois, a segunda fase, a segunda revelação, e seus ensinamentos levaram dezoito séculos para se espalharem e se vulgarizarem. (...) Sim, o Espiritismo é a Terceira Revelação. Revela-se a uma geração de homens mais adiantados, portadores das mais nobres aspirações, generosas e humanitárias, que devem concorrer para a fraternidade universal.[4]
Há ainda um detalhe importante nessa análise: todas as mensagens foram ditadas através do mesmo médium, que nos é apresentado como sendo o Sr. Rodolfo, da cidade de Mulhouse, quase 400 km distante de Paris em linha reta. Em abril de 1864, quando Kardec anuncia na Revista Espírita que o livro Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo está à venda nas livrarias, se verá que ele considerou inteiramente essa proposta, compondo um texto único no qual transcreve, mediante ajustes e recortes, as respostas de um daqueles espíritos, atribuindo-a a "um espírito israelita".
É preciso reconhecer, portanto, que não se trata de uma informação que tenha sido submetida ao critério da universalidade. Apesar de ter sua origem nas comunicações dos espíritos, ela é bem uma tese que foi apresentada a Kardec por apenas dois deles, parentes entre si, ambos israelitas, através de um médium também israelita e membro da mesma família, todos aculturados ao ambiente europeu. O que Kardec pode ter entrevisto nessa tese; uma ideia transcendente ou um excelente argumento literário? Difícil afirmar. O fato é que ele o adotou como linha de raciocínio para o seu livro sobre o Evangelho.
Há nessa tese um aspecto importante que não pode ser desconsiderado: o próprio espírito afirma que essa terceira revelação “se produz simultaneamente entre todos os povos instruídos.” Sob um olhar antropológico que só se tornou possível a partir de meados do século XX, observa-se que havia um sentimento hoje denominado de “eurocentrismo”, a partir do qual se tomava a Europa e a sua cultura, os seus valores, como referência para todo o restante do planeta. Não se levava em conta a sabedoria espiritual das tradições chinesas, japonesas ou indianas, e nem as tradições xamânicas das Américas, da África e mesmo dos Celtas, que viveram na própria Europa. A referência para o que era considerado como “desenvolvido” era delimitada pelo aspecto econômico, o que, sob um olhar da geopolítica da atualidade, pode ser questionado se não seria apens uma justificativa para um processo de dominação colonialista. Não seriam os dominadores considerando inferiores os povos dominados sob a força das armas, com o objetivo exclusivo de “conquistar mercados” para o capitalismo emergente?
É interessante considerar também que todos os autores espirituais presentes na obra de Kardec integram a tradição filosófica ocidental, iniciada na Grécia Antiga, passando por Roma e chegando até à Inglaterra. Nenhum dos espíritos autores é oriundo das tradições milenares da Índia ou da China, do Japão ou do Tibet. Nem mesmo espíritos sábios como Lao Tsé, Confúcio ou Buda integram o séquito dos autores espirituais que se fizeram presentes na codificação, muito embora muitas de suas ideias, em especial a reencarnação, fizessem parte de suas tradições. Até mesmo esse "espírito israelita" demonstra ter como referência cultural a França.
Somente esse fato deveria ser suficiente para nos fazer compreender essa ideia de Terceira Revelação como sendo uma perspectiva localizada, geográfica e culturalmente referenciada, tendo como núcleo a sociedade cristã ocidental, que é o que o espírito quer dizer com a expressão “povos instruídos”.
Cabe lembrar também que por Espiritismo, na época de Kardec, não se entendia nenhuma religião institucionalizada, e sim o conjunto de ideias, a nova visão de mundo que deveria se consolidar mediante um movimento partido da espiritualidade, a “invasão organizada” do mundo espiritual para a Terra, na expressão de Arthur Conan Doyle.[5] Mas essa “Terra” tinha como referência a sociedade europeia do século XIX, sem nenhuma reflexão a respeito do que isso poderia representar caso se pretendesse considerar o planeta inteiro.
Não parece restar dúvida – sobretudo no que se refere à sua parte filosófica e científica – que o pensamento espírita representa uma nova explicação do mundo e da vida, um novo paradigma que se apresenta para a sociedade ocidental. No que se refere ao seu aspecto religioso o Espiritismo pode significar, para aqueles que assim o desejarem, a possibilidade de uma religiosidade assentada na razão, na racionalidade, unindo ciência e espiritualidade.
Mas não se pode perder de vista que isto só se aplica a um espaço cultural específico, restrito a uma determinada sociedade e a um determinado conjunto de crenças, caracterizado pela tradição judaico-cristã. Mesmo assim, sem esquecer que isto se refere apenas ao que Kardec denominava de "ciência espírita", e não ao Espiritismo enquanto religião institucionalizada, de modo que isso não venha a endossar qualquer ideia de supremacismo religioso, de uma pretensa superioridade em relação a qualquer outro movimento religioso da Terra, o que seria uma atitude de extrema arrogância perante as demais tradições espirituais que marcam a história da humanidade.



[1] Kardec, Allan. Revista Espírita, Jun/1861. Ed. IDE, Araras, SP.
[2] Kardec, Allan. Revista Espírita, Jun/1861. Ed. IDE, Araras, SP..
[3] Em um dos trechos de sua mensagem ele afirma que “a religião israelita foi a primeira que formulou, aos olhos dos homens, a ideia de um Deus Espiritual.” O grifo é de Kardec, que se apropria desse raciocínio no seu texto em O Evangelho Segundo o Espiritismo, e passa a considerá-lo a partir daí nos seus demais escritos.
[4] Kardec, Revista Espírita Set/1861. Ed. IDE, Araras, SP.
[5] Doyle, Arthur C. História do Espiritualismo, cap. 1. Ed. FEB, Rio de Janeiro, RJ.

Comentários

  1. Elias! Gostei muito das tuas colocações e compartilho esse mesmo sentimento. Temos que ter cuidado para não escorregar no messianismo. Acho muito forte essa coisa de" Terceira Revelação", "Brasil Coração do Mundo...". Temos que ter mais cuidado com essas afirmações. Achei muito interessante a citação sobre Roustaing. Um pouco antes de Kardec desencarnar eles romperam e Roustaing declara que seus livros (Os Quatro Evangelhos) eram a "Revelação da Revelação". A vaidade humana não tem limites.

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  2. Deixo expressa minha parcela de agradecimento pelo texto elaborado, abordando diversas facetas sobre a denominada terceira revelação a cargo da doutrina dos espíritos.

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  3. Sobre a origem do termo 'terceira revelação' a partir dos espíritos israelitas, é dito no texto:
    "(...) É preciso reconhecer, portanto, que não se trata de uma informação que tenha sido submetida ao critério da universalidade. (...)". Lendo esse trecho fiquei a pensar sobre as limitações do CUEE.

    Kardec na Introdução do livro "A Gênese" vai afirmar que:
    "(...) Sem embargo da parte que toca à atividade humana na elaboração desta doutrina, a iniciativa da obra pertence aos Espíritos, porém não a constitui a opinião pessoal de nenhum deles. Ela é, e não pode deixar de ser, a resultante do ensino coletivo e concorde por eles dado. Somente sob tal condição se lhe pode chamar doutrina dos Espíritos. Doutra forma, não seria mais do que a doutrina de um Espírito e apenas teria o valor de uma opinião pessoal. Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade. (...) Os mesmos escrúpulos havendo presidido à redação das nossas outras obras, pudemos, com toda verdade, dizê-las: 'segundo o Espiritismo', porque estávamos certo da conformidade delas com o ensino geral dos Espíritos. (...)"

    Como dito acima todos os princípios espíritas enunciados por Kardec foram submetidos ao CUEE, pois do contrário, não integrariam o corpo doutrinário. Considerando que os autores espirituais da obra de Kardec sejam "ocidentais" oriundos portanto de uma tradição judaico-cristã, certamente o conceito da "terceira revelação" teve eco. Como, talvez, não foram considerados os Espíritos hindus, budistas, chineses, japoneses e etc... essa universalidade não seria tão universal assim, apesar de no contexto de "povos instruídos" o seja. Portanto, levando em conta todas as possíveis "limitações" do método, creio que Kardec tenha analisado o tema segundo o Espiritismo, isto é, segundo a lógica e o ensino coletivo e concordante dos Espíritos.

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    1. Rodrigo, obrigado pelas instigantes ponderações. Kardec afirma, sim, que todo o conteúdo da doutrina espírita foi submetido ao critério da concordância. Analisando, entretanto, nos detalhes, vemos que isto se deu de modo geral mas não nas particularidades. Alguns pontos você percebe claramente que ele mesmo modificou mais tarde. Penso que para sermos fieis ao propósito kardequiano precisaremos agir como ele próprio agia, analisando criticamente cada proposição tomando como base o que vai sendo objeto de novos consensos no mundo da ciência, dos novos questionamentos que vão surgindo no mundo da filosofia, sem nenhum receio de refazer ponto de vista, de ressignificar conceitos ou mesmo de abandonar alguns que porventura se mostrem inadequados. Sem isso o Espiritismo se torna apenas uma religião do século XIX, sem condições de oferecer respostas adequadas às novas questões que surgem na atualidade. É como compreendo. Um abraço de irmão.

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