Elias Inácio de Moraes
Há mesmo uma "transição planetária" em andamento ou isto seria apenas uma expectativa de cunho milenarista? O que uma análise sócio-histórica nos diz dessa teoria que está presente no ideário espírita desde a obra de Allan Kardec?
Milenarismo é o nome que se
deu à crença de que estamos diante de uma grande transformação
social, ou no final de um importante ciclo histórico, como que
penetrando em uma nova era. Esse nome se deve ao que ocorreu no
movimento cristão logo após a crucificação de Jesus; os apóstolos
acreditavam que Jesus voltaria em breve e instauraria o Reino dos
céus. Paulo chegou a acreditar que veria, ainda em vida, a sua volta
triunfante, o que não aconteceu.1
O apóstolo João, que escreveu o Apocalipse um pouco mais
tarde, por volta do ano 90 d.C., deve ter concluído que o anunciado
retorno de Jesus não se daria de modo tão próximo, e acrescentou,
com base em suas visões proféticas, um elemento milenarista:
haveria um grande combate entre o bem e o mal, entre a luz e as
trevas, quando um anjo acorrentaria a Besta por um período de 1.000
anos, ao final dos quais se estabeleceria na Terra a Nova Jerusalém.
Em um tom típico da tradição judaica, João atribui essas
revelações ao próprio Jesus, que lhe teria pedido as comunicasse
às sete igrejas.
Essa crença se manifestou em diversos momentos da história do cristianismo, e chegou até o
século XIX. Percebendo o enorme progresso tecnológico e cultural
resultante da Revolução Industrial e do Iluminismo, muitos
pensadores da época e, em especial os filósofos socialistas,
imaginaram que a sociedade humana estaria superando finalmente os
fatores históricos que até então tinham causado os sofrimentos
decorrentes da instabilidade social e política, e iniciando um novo
período de estabilidade e de paz. Até mesmo Karl Marx, materialista
e ateu, acreditava que aquele período marcaria a derrocada do modo
capitalista de produção e a instauração de uma sociedade comunal,
sem as figuras dos exploradores e dos explorados, todos desfrutando
igualmente dos benefícios da civilização.
Um dado curioso é que entre os espíritos envolvidos no projeto kardequiano também havia os
que confirmavam essa expectativa, como se vê nessa questão que
consta da primeira edição de O Livro dos Espíritos e que,
por alguma razão que não é evidente, foi excluída das edições
seguintes, embora tenha sido mantido o seu sentido:
304
- Por que razão as comunicações com o Mundo Espírita, que se
efetuaram em todos os tempos, se tornaram mais gerais hoje?
-
Os tempos marcados para essa manifestação geral acabam de chegar.
Essas comunicações virão a ser, pois, mais e mais gerais; afetarão
com seu fato os olhos mais incrédulos, e não está longe o dia em
que duvidar não será mais permitido. Então a face do Mundo Moral
mudará, e pouco a pouco os vícios e os prejuízos que fazem a
desgraça da Humanidade desaparecerão.2
Assim como os filósofos de
sua época, Allan Kardec também sonhava com essa grande mudança,
tanto que, além de incluir essa pergunta no seu livro, ele ainda lhe
acrescentou logo na apresentação:
Os
Espíritos anunciam que chegaram os tempos marcados pela Providência
para uma manifestação universal e que, sendo eles os ministros de
Deus e os agentes de sua vontade, têm por missão instruir e
esclarecer os homens, abrindo uma nova era para a regeneração da
Humanidade.3
Antes da publicação dessa primeira edição de O Livro dos Espíritos, em um diálogo
que ele registrou como tendo se dado em 12 de junho de 1856, o
próprio Espírito da Verdade, evocado, referiu-se à sua missão
como sendo de natureza a “abalar e transformar o mundo inteiro”.
Não consta se o diálogo foi psicografado ou verbal, se mediante a
prancheta ou se à mão, se a psicografia foi mecânica ou
consciente; há apenas a informação de que essa comunicação se
deu através da médium Sra. Aline C.4
Como se sabe, Kardec nasceu, cresceu e viveu em uma das épocas mais conturbados da história da
França. Aliás, não apenas da França, mas de toda a Europa. A
França, em particular, viveu um período de mais de oitenta anos
caracterizado por revoltas, revoluções e guerras, cujo marco
inicial pode ser colocado na revolução de 1789. Depois disso vieram
as guerras napoleônicas, seguidas da revolução de 1830 e de 1848,
além de diversos conflitos de menor porte. Esse clima de intensa
ebulição se refletia inevitavelmente sobre toda a Europa,
considerada pelos europeus como sendo o “mundo civilizado”, e
isso influenciava o espírito das pessoas que se preocupavam com o
futuro espiritual da humanidade.
É do espírito São Luís a mensagem que foi incluída como sendo a resposta à questão 1019 na
segunda edição de O Livro dos Espíritos, na qual ele afirma
que “predita foi a transformação da Humanidade e vos avizinhais
do momento em que se dará, momento cuja chegada apressam todos os
homens que auxiliam o progresso.” Um espírito que assina Rembrand
também comunicou-se “no estrangeiro” conclamando a todos a
apressarem “o Reino de Deus na Terra”, afirmando que “a tarefa
é grande, a responsabilidade pesa sobre cada um e ninguém pode
eximir-se”.5
Embora essa fosse uma expectativa presente tanto entre os homens como entre os espíritos,
não há como excluir a possibilidade de que ela representasse apenas uma expectativa de cunho milenarista, um sonho, uma construção social, a continuação de um pensamento
mágico que habita desde sempre o imaginário judaico-cristão no seu
desejo de alcançar a Terra Prometida, a Nova Jerusalém, um mundo
mais justo e mais solidário, do qual compartilhavam também os
espíritos que participaram do projeto kardequiano, na sua maioria oriundos
do catolicismo.
Em 1861 um espírito que assina Carlos Magno se comunica através do seu irmão e indaga:
Por que pensais que a Terra se cobre de estradas de ferro e o mar se
entreabre à eletricidade, senão para espalhar a boa nova?
6
É sob esse clima de expectativa que Kardec apresenta, no final de 1863, o seu
entendimento a respeito dos períodos pelos quais o Espiritismo
passaria, o último dos quais seria o da “regeneração social, que
abrirá a era do século vinte”.
Nessa época, todos os obstáculos à nova ordem de coisas determinadas por
Deus para a transformação da Terra terão desaparecido. A geração
que surge, imbuída das ideias novas, estará em toda a sua força e
preparará o caminho da que há de inaugurar o triunfo definitivo da
união, da paz e da fraternidade entre os homens, confundidos numa
mesma crença, pela prática da lei evangélica.7
A igreja católica perdia o seu poderio milenar e havia um forte movimento pela instauração de
governos republicanos, fundados nos princípios democráticos, em
substituição às monarquias ou aos impérios, que ruíam em
diversos países. A França, que era já uma grande potência
econômica, intelectual e militar, estava vivendo os estertores do
segundo império, iniciado em 1852 com o golpe de Napoleão III, e
experimentava uma efervescência política que apontava para uma
transformação social iminente.
Em um diálogo com o espírito Hahnemann o espírito falou de “ruínas e desolações”: “a
guerra dizimará os povos; as instituições vetustas se abismarão
em ondas de sangue. Faz-se mister que o velho mundo se esboroe, para
que uma nova era se abra ao progresso”. Kardec deve ter ficado
apreensivo, pois indagou a respeito da extensão da guerra, ao que o
espírito respondeu que ela abrangeria toda a Terra; com um detalhe:
ela partiria da Itália.
Pelo que os espíritos lhe diziam Kardec deduziu que esse período de
grandes perturbações se iniciaria em 1870, prazo que ele se deu
para a conclusão dos seus trabalhos em relação à doutrina dos
espíritos. Prudente como era, ele reteve algumas informações que só publicou em 1868, e que falavam de uma nova "ordem social" que marcariam "a política, a religião, a legislação", estabelecendo as bases para o que ele chamou de "mundo de regeneração". Ele publicou A Gênese em 1868 e
desencarnou em 1869, um ano antes do prazo estabelecido por ele
mesmo.
As evidências sugerem que o contexto sócio-histórico pode ter influenciado decisivamente nessa
percepção milenarista de transformação social que está presente
nos escritos de Kardec, de uma maneira mais precisa nos
textos de Obras Póstumas e, mais geral nos seus livros
considerados estruturais, em particular em A Gênese e em O
Evangelho Segundo o Espiritismo
e O Livro dos Espíritos.
Sob certos aspectos pode-se afirmar que alguma transformação social realmente ocorreu, conforme
previsto, mas em uma proporção infinitamente menor, restrita à
França. Em 1870, menos de um ano depois da morte de Kardec,
iniciou-se a profetizada tormenta, do que resultou a experiência da
Comuna de Paris, o primeiro governo operário da história,
que foi dizimado em apenas 72 dias pelos industriais que apoiaram o
governo provisório, promovendo o assassinato de mais de 20.000 operários, mulheres e crianças.
Seguiu-se, então, a consolidação da república, que representou
para os franceses uma trégua, sem guerras ou maiores conflitos. Realmente, uma nova era, que foi chamada de Belle
Époque, expressão que se refere aos anos dourados vividos pela
sociedade francesa no período que se seguiu. Mas se resumiu a isso e
nada mais. Em vez de ver consolidar o Mundo de Regeneração, o
século XX começou com a experiência tenebrosa da Primeira Guerra
Mundial iniciada em 1914.
Em 1938, quando Hitler e Mussolini já deixavam claros seus planos expansionistas na Europa, e
o Japão já havia invadido o território da Manchúria, na China,
sinalizando para uma “tribulação” ainda maior do que a de
1914, Emmanuel atualiza as previsões de transformação planetária.
Em vez de ser o século em que se consolidaria o Mundo de
Regeneração, conforme previram Kardec e os espíritos, o século XX
passa a ser agora, sob o olhar de Emmanuel, o próprio século das
“grandes tribulações”.
O século que passa efetuará a divisão das ovelhas do imenso rebanho.
O cajado do pastor conduzirá o sofrimento na tarefa penosa da
escolha e a dor se incumbirá do trabalho que os homens não
aceitaram por amor.8
A linguagem utilizada por
Emmanuel é de cunho religioso, de um sacerdote católico que
relaciona os acontecimentos que se prenunciam ao texto dos Evangelhos
e do Apocalipse, vendo a humanidade como sendo constituída
dos “filhos de Jerusalém”.
Uma tempestade de amarguras varrerá toda a Terra. Os filhos da Jerusalém
de todos os séculos devem chorar, contemplando essas chuvas de
lágrimas e de sangue que rebentarão das nuvens pesadas de suas
consciências enegrecidas.9
O livro termina com uma espécie de profecia, sinalizando para as questões de natureza
geopolítica que empolgavam o mundo desde o final da Primeira Guerra
Mundial, quando a Europa arrasada era obrigada a reconhecer a
realidade da ascensão norte-americana. O "Mundo Novo", que era uma
promessa para os iluministas no século XIX, erguia-se agora como realidade,
consolidando os Estados Unidos como um novo polo de civilização e
de progresso, e Emmanuel o apresenta como uma nova liderança planetária
para a humanidade.
Condenada pelas sentenças irrevogáveis de seus erros sociais e políticos, a
superioridade europeia desaparecerá para sempre, como o Império
Romano, entregando à América o fruto das suas experiências, com
vistas à civilização do porvir.
A história do pós-guerra deixou claro que também não se concretizou naquele período o
“processo de seleção final das expressões espirituais da vida
terrestre”, como previra Emmanuel. O planeta Terra não se viu
“livre das entidades endurecidas no mal”; ao contrário, foram os arianos que patrocinaram o holocausto; foram os EUA, anunciados no livro como os novos detentores do “cetro da
civilização e da cultura na orientação dos povos porvindouros”
que explodiram as primeiras bombas atômicas da história humana em
Hiroshima e Nagasaki, e que estabeleceram uma nova era de dominação
comercial e industrial em nível planetário, mediante centenas de bases
militares que ainda hoje mantêm a sua hegemonia econômica em todos
os recantos do planeta.
Consolidou-se a Era da Comunicação, com o telefone, o rádio e a TV integrando todos os
continentes, e emergiu em seguida a Era Digital, quando a Internet
colocou todo o conhecimento do mundo à distância de um clique. Mesmo assim, persistem os dramas sociais; o egoísmo aprofunda o
fosso entre a opulência e a miséria, a violência grassa, a
indiferença social permite que 8 milhões de crianças e mais 1
milhão de pessoas adultas morram todos os anos de fome em pleno
século XXI, segundo dados da ONU.
O século XX, que para Kardec e os espíritos seria o período de consolidação do mundo de
regeneração, ampliou ainda mais o avanço tecnológico, só que em uma direção altamente destrutiva e, se deixou claro que o mundo não se resume à sociedade europeia, como
se pensava naquela época, gestou um conflito geopolítico que ameaça os povos com a possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial. Em vez de uma “nova era”, o que
se vê é mais uma continuidade da história, com suas contradições,
seus avanços e recuos, em muitos casos até mesmo em sentido
contrário à expectativa construída.
Pertencem ao século XX as
duas guerras mais cruentas da história, que dizimaram mais de 100
milhões de pessoas, incluindo a dura realidade do holocausto. Foi no
século XX que se construiu um arsenal de bombas nucleares capaz de
destruir o planeta dezenas de vezes. O século XX viu acontecer a
explosão da produção e do consumo de uma variedade inimaginável
de produtos, entre necessários e supérfluos, criando a cultura de
um consumismo altamente destruidor de recursos naturais e poluidor da
natureza, e consolidou um lucrativo comércio de drogas
medicamentosas e “recreativas”. O filósofo francês Emmanuel
Mounier entendeu que, em vez de ser a época do “retoque da
humanidade”, como pensava Kardec, o século XX foi a porta para uma
era de “sombras de medo”.10
Mesmo ante esse cenário preocupante, a tese milenarista tem sido alimentada no meio espírita mediante um discurso miraculoso de uma "transição planetária" que nunca se consolida, mas que deverá instaurar na Terra, de uma maneira mágica, o Mundo de Regeneração.
Esperanças e promessas despontam das mensagens psicografadas, alimentando o sonho de um mundo melhor e mais
feliz.
Na virada do milênio até parecia que essa promessa estava se cumprindo. O mundo navegava na onda de paz promovida pelo governo
democrata e pacifista de Bill Clinton quando em janeiro de 2001
assumiu George Bush, representante do setor armamentista e
petroleiro, que estabeleceu como meta retomar o antigo controle
estadunidense sobre o mundo árabe. A resposta não poderia ser mais
efetiva, e foi marcada pelo mais espetacular ato terrorista de todos
os tempos: o ataque às torres gêmeas do World Trade Center,
que matou quase 3.000 pessoas.
Depois disso essa mesma esperança milenarista foi reacendida quando do tsunami de 2004, mais
tarde com o de 2011 e, em seguida, com a pandemia do coronavírus. Agora os profetas se dividem entre uma nova "data limite" em 2057 e uma "transição de longo prazo" ao longo de todo o terceiro milênio.
Como analisar essa constante atualização de previsões milenaristas à luz da razão, conforme
estabelecido por Kardec? Considerando que a mensagem mediúnica é
sempre o resultado da interação entre a mente do espírito e a do
médium, ambos situados em um determinado contexto social, e que seu
conteúdo final expressa a soma de todos esses fatores, não poderiam
esses autores, médiuns e espíritos, estarem contaminadas por
expectativas de natureza milenarista? Quando se leva em conta que nem
mesmo as previsões da época de Kardec se concretizaram, que novos
elementos poderiam justificar alguma expectativa de que desta vez
elas se concretizarão?
Quando se analisa racionalmente o mapa social do mundo e as condições de miséria em
que são mantidas, em pleno século XXI, populações inteiras da
Ásia e da África, essas expectativas de cunho milenarista caem
todas por terra. Não há como desconsiderar que, de acordo com os
dados da OXFAM – Oxford Committee for Famini Relief –, 1%
dos seres humanos detém mais riquezas que os 99% restantes, e que a
soma do patrimônio das 26 pessoas mais ricas do mundo equivale à
soma do patrimônio de toda a metade mais pobre da população
mundial.11
Quando se constata que quase 1 bilhão de pessoas no mundo ainda
convive com o flagelo da fome e que, mesmo assim, a concentração de
riquezas só tem aumentado, aprofundando ainda mais o abismo social
que foi construído entre ricos e pobres ao longo do século XX;
quando se constata as condições sub-humanas em que vivem quase 1
bilhão de pessoas nas favelas que circundam as principais cidades do
mundo, e que 40% da população mundial disputa entre si míseros 5%
de toda a riqueza produzida a cada ano, sem uma educação que lhes
dê condições de participação na vida social, sem serviços
mínimos de saúde; quando, ano a ano, o trabalho dessas pessoas,
muitas vezes em condições abusivas, serve apenas para enriquecer
ainda mais os mais ricos; não resta mais dúvida de que essa
transformação social de que falavam os espíritos é apenas o reflexo do sonho por um mundo melhor que sempre alimentou o imaginário das pessoas progressistas.
Além da miséria e da fome, a humanidade ainda convive com elevadas taxas de homicídio e de suicídio, de abortamento, de
violência doméstica e urbana, com uma cultura fortemente enraizada
de uso de drogas psicoativas, em especial o álcool, com poucas
possibilidades de mudanças no curto prazo. Preconceitos como os de
raça, de classe social, de gênero, dentre outros, não parecem
fáceis de serem superados. Ainda subsistem hábitos culturais que
repugnam ao olhar de qualquer sociedade supostamente civilizada, como
a desclitorização de mulheres na África, a banalização do
estupro em países como Brasil e Índia. As nações mais poderosas combatem entre si
disputando espaço comercial e influência política, muitas vezes ao
custo das vidas de milhares de pessoas. O Estado ainda se afigura
muito mais um instrumento de dominação, disputado por forças que
tentam impor-se umas sobre as outras, do que um espaço democrático
de negociação entre iguais visando o bem comum.
Kardec entendia que essa migração já estava ocorrendo desde o século anterior. Não era
outra a explicação para as mudanças que já estavam acontecendo em
pleno século XIX.
Assim é que vemos fundar-se uma imensidade de instituições protetoras,
civilizadoras e emancipadoras, sob o influxo e por iniciativa de
homens evidentemente predestinados à obra da regeneração; que as
leis penais se vão apresentando dia a dia impregnadas de sentimentos
mais humanos. Enfraquecem-se os preconceitos de raça, os povos
entram a considerar-se membros de uma grande família; pela
uniformidade e facilidade dos meios de realizarem suas transações,
eles suprimem as barreiras que os separavam e de todos os pontos do
mundo reúnem-se em comícios universais, para as justas pacíficas
da inteligência.
13
Surgia uma nova geração, entendia ele, constituída de espíritos “propensos ao bem”; não
propriamente de espíritos superiores, “mas dos que, já tendo
progredido, se acham predispostos a assimilar todas as ideias
progressistas e aptos a secundar o movimento da regeneração”.14
Esses espíritos estavam promovendo, desde aquela época – e por
que não ainda hoje – uma lenta mudança na cultura, nos valores e
nas crenças, promovendo uma nova consciência a respeito da
espiritualidade e da imortalidade da alma.
Quando se estende o olhar para o ambiente externo ao Espiritismo, vê-se que há um sem número de
movimentos somando esforços nessa mesma direção. Uma simples
consulta no catálogo da produção cinematográfica, grande
responsável pela construção da cultura na sociedade moderna, chama
a atenção pela quantidade de filmes que retratam de forma direta ou
subliminar a realidade da vida além da morte e da pluralidade das
vidas. De modo subliminar como em Rei Leão e O Gladiador,
ou abordando diretamente a questão como A mulher de preto, Os
outros, Sexto Sentido, Amor além da vida, Ghost,
Manika, Minha vida na outra vida e uma infinidade de
outros filmes de grande penetração. Temas como a vida após a
morte, a comunicação com os espíritos e a reencarnação são cada
vez mais abordados por mídias não espíritas.
Verifica-se ainda o surgimento de inúmeros movimentos religiosos cujos fundamentos são similares
aos do Espiritismo no que se refere à vida depois da morte, à
comunicação entre os dois planos e à pluralidade das existências,
e que também cooperam no sentido de promover uma revolução
silenciosa nas crenças, fazendo emergir pouco a pouco uma nova
concepção de vida e de ser humano. Religiões como as brasileiras
Umbanda, Vale do Amanhecer, União do Vegetal, Casa de Deus, ou japonesas como
Sei-Sho-No-Ie, Oomoto, ou as estadunidenses Igreja da Unidade,
Ciência da Mente ou o chamado Movimento do Novo Pensamento cooperam
com a construção dessa nova visão.
Além disso, emergem movimentos de solidariedade em todas as direções. Um garoto
canadense de seis anos, Ryan Hreljac, entende que pode ajudar as
comunidades mais pobres da África a terem acesso à água e, com
ajuda de seu pai, inicia um movimento para cavar poços artesianos
naquela região, do que resulta hoje uma fundação que já colocou
em operação mais de mil poços. Uma menina paquistanesa de 11 anos,
Malala Yousafzai, coloca em risco a própria vida – e sofre um
atentato – para defender o direito das meninas da sua região à
escolarização, restrita aos homens naquela sociedade. Pessoas se
unem para criar inúmeras organizações sem finalidade lucrativa,
como os Médicos Sem Fronteiras, o Green Peace, a Cruz Vermelha
Internacional, a Fraternidade Sem Fronteiras, dentre outras. O
trabalho voluntário passa a ser considerado como elemento de
distinção em favor de quem participa de alguma atividade dessa
natureza pelo fato de atestar uma consciência social. Crescem os
movimentos em defesa das minorias, estabelecendo um conceito de
cidadania até então inexistente.
O fato é que o Espiritismo, como elemento da cultura judaico-cristã, traz consigo a certeza de
um progresso na direção de uma sociedade mais justa e solidária.
Reafirma, assim, a visão cristã de um Reino dos Céus, uma terra
transformada, uma “Nova Jerusalém” que, na linguagem espírita,
assume a figura de um Mundo de Regeneração, uma “nova ordem
social” que tem na fraternidade a sua “pedra angular”, baseada
na fé “nos princípios fundamentais que toda a gente pode aceitar
e aceitará: Deus, a alma, o futuro, o progresso individual
indefinido, a perpetuidade das relações entre os seres”.
Mas esse mundo – as evidências sugerem – não será estabelecido mediante alguma
intervenção divina, ou pela vinda em massa de seres superiores de
outros planetas, ou pelo expurgo de bilhões de espíritos renitentes
da Terra, como foi previsto por alguns espíritos e médiuns
espíritas. O desenvolvimento histórico da sociedade terrena, com
suas idas e vindas, na diversidade e complexidade que a caracteriza,
leva a crer que essas mudanças só acontecerão mediante a nossa
intervenção humana, dos espíritos que compomos a psicosfera da
Terra e que, diante dos desafios sociais, assumamos postura
inequívoca de mudança em favor do bem geral com base nos princípios
de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, marco civilizatório
de uma nova era.
Agindo como co-criadores da vida junto de Deus e tendo como base o
amor ao próximo como a nós mesmos, empenharemos os nossos esforços no sentido de transformar instituições e sistemas sociais, leis e costumes, de modo a fazer do planeta Terra um ambiente melhor e mais feliz
para todos os seres humanos, abolindo as desigualdades marcantes e os preconceitos que ainda desfiguram a nossa comunidade planetária neste início de Terceiro Milênio.
1
Algumas passagens evidenciam a inquietação dos cristãos em
relação à prometida volta de Jesus, como I Tessalonicenses 4:15,
Romanos 13:11, I Pedro 4:7.
2
Kardec, Allan. O primeiro Livro dos Espíritos. Trad. Canuto
de Abreu, Cia. Editora Ismael, São Paulo/SP.
3
Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, prolegômenos. Ed.
FEB, Rio de Janeiro/RJ.
4
Kardec, Allan. Obras Póstumas, pag. 344. Ed. FEB, Rio de
Janeiro/RJ.
5
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos
Psicológicos, Dez/1859. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
6
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos
Psicológicos, fev/1861. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
7
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos
Psicológicos, dez/1863. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
8
Xavier, Francisco C. A Caminho da Luz, pelo espírito
Emmanuel, cap. XXV. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
9
Xavier, Francisco C. A Caminho da Luz, pelo espírito
Emmanuel, cap. XXV. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
10
Mounier, Emmanuel. Sombras de Medo sobre o Século XX. Ed.
Agir, São Paulo/SP.
11
OXFAM, Bem Público ou Riqueza Privada? Relatório de 2019,
pag.12.
12
Entrevista com Divaldo P. Franco e Richard Simonetti publicada em
2014 e disponível em 25/05/2019 no blog
http://fraterluz.blogspot.com/2014/02/por-que-tanta-violencia-respostas-de.html
15
Kardec, Allan. A Gênese, cap. XVIII item 9. Ed. FEB, Rio de
Janeiro/RJ.
Os processos de transição do estágio evolutivo do planeta não acontecem de repente. São séculos no mesmo processo e certamente estamos num processo que vai demorar. O problema está na abordagem que muitos fazem disso. Colocam misticismo e ocultismo em algo que é natural.
ResponderExcluirExatamente, Suzi. Obrigado por comentar.
ResponderExcluirÉ inegável que o planeta como tudo que nele habita caminha para a evolução gradual mesmo que lenta para nos, mas numa fagulha para a eternidade, sofra intempéries que retardaram sua evolução e outros que os apressa. Isso foi e será em todos os tempos de nossa existência.
ResponderExcluirPortanto, para mim, o texto trás uma ótima reflexão embasada em fatos concretos, demonstrando que os bons e maus momentos que vivemos é uma consequência do estágio evolutivo que nós estamos.
Parabéns pelo texto!!!
Muito obrigado pelo feedback.
ExcluirUma lúcida abordagem que contribui para a diluição da aura mística e espetaculosa com que alguns Espíritos e médiuns renomados revestiram um processo que se desenvolve natural e gradualmente, sempre. O insistente e vulgarizado emprego do slogan "Transição Planetária" ridiculariza, a meu ver, o espiritismo.
ResponderExcluirExcelente abordagem, Elias. Precisamos de leituras analíticas lúcidas como esta sua, a serem disseminadas no meio espírita a fim de combater o folclore, o misticismo e, sobretudo, a falta de bom senso e excesso de religiosismo. Só assim, poderemos interpretar de maneira lúcida e edificante o legado da nova revelação de que o Espiritismo se faz portador.
ResponderExcluirParabéns. Obrigada pela oportunidade de estudo e reflexão. Você aprofunda e atualiza o pensamento espírita!!!
ResponderExcluirMuito boa reflexão! Não tem como deixar de pensar, que neste processo a Pandemia traz ,de forma direta, circunstâncias diversas que evidenciam um roteiro diferenciado. A magia estará contemplada, no encantamento em visualizar movimentos efetivos, colaborativos, amorosos de regeneração, primeiro, do NOVO SER.
ResponderExcluirExcelente reflexão em torno de um tema que tem movimentado as emoções de muitos!
ResponderExcluirElias, belo trabalho! Texto bom, estruturado, didático, boas referências e argumentos. Parabéns! Creio que boa parte dos espíritas, assim como eu, começam a se libertar de amarras improcedentes.
ResponderExcluirMuitas previsões de médiuns do tempo de Kardec e do próprio Chico e Divaldo se fundamentam em crenças pessoais. Sou espírita há 30 anos, mas essa ideia de regeneração nunca me caiu bem. É muita coisa envolvida como você colocou excelentemente no texto. Quando começou a pandemia o Divaldo se apressou a psicografar um livro que indicava ser agora o momento de transição. Como não se concluiu, ele aproveitou a guerra na Ucrânia para dizer que agora seria o momento, pois a Europa provavelmente iria intervir e o resultado seria a guerra nuclear. Sinceramente não dá pra acreditar nessas previsões, como diria um amigo, isso é coisa de idealistas.
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