TRANSIÇÃO PLANETÁRIA: UMA TESE MILENARISTA?




Elias Inácio de Moraes

Há mesmo uma "transição planetária" em andamento ou isto seria apenas uma expectativa de cunho milenarista? O que uma análise sócio-histórica nos diz dessa teoria que está presente no ideário espírita desde a obra de Allan Kardec?
Milenarismo é o nome que se deu à crença de que estamos diante de uma grande transformação social, ou no final de um importante ciclo histórico, como que penetrando em uma nova era. Esse nome se deve ao que ocorreu no movimento cristão logo após a crucificação de Jesus; os apóstolos acreditavam que Jesus voltaria em breve e instauraria o Reino dos céus. Paulo chegou a acreditar que veria, ainda em vida, a sua volta triunfante, o que não aconteceu.1 O apóstolo João, que escreveu o Apocalipse um pouco mais tarde, por volta do ano 90 d.C., deve ter concluído que o anunciado retorno de Jesus não se daria de modo tão próximo, e acrescentou, com base em suas visões proféticas, um elemento milenarista: haveria um grande combate entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, quando um anjo acorrentaria a Besta por um período de 1.000 anos, ao final dos quais se estabeleceria na Terra a Nova Jerusalém. Em um tom típico da tradição judaica, João atribui essas revelações ao próprio Jesus, que lhe teria pedido as comunicasse às sete igrejas.
Essa crença se manifestou em diversos momentos da história do cristianismo, e chegou até o século XIX. Percebendo o enorme progresso tecnológico e cultural resultante da Revolução Industrial e do Iluminismo, muitos pensadores da época e, em especial os filósofos socialistas, imaginaram que a sociedade humana estaria superando finalmente os fatores históricos que até então tinham causado os sofrimentos decorrentes da instabilidade social e política, e iniciando um novo período de estabilidade e de paz. Até mesmo Karl Marx, materialista e ateu, acreditava que aquele período marcaria a derrocada do modo capitalista de produção e a instauração de uma sociedade comunal, sem as figuras dos exploradores e dos explorados, todos desfrutando igualmente dos benefícios da civilização.
Um dado curioso é que entre os espíritos envolvidos no projeto da codificação também havia os que confirmavam essa expectativa, como se vê nessa questão que consta da primeira edição de O Livro dos Espíritos e que, por alguma razão que não é evidente, foi excluída das edições seguintes, embora tenha sido mantido o seu sentido:
304 - Por que razão as comunicações com o Mundo Espírita, que se efetuaram em todos os tempos, se tornaram mais gerais hoje?
- Os tempos marcados para essa manifestação geral acabam de chegar. Essas comunicações virão a ser, pois, mais e mais gerais; afetarão com seu fato os olhos mais incrédulos, e não está longe o dia em que duvidar não será mais permitido. Então a face do Mundo Moral mudará, e pouco a pouco os vícios e os prejuízos que fazem a desgraça da Humanidade desaparecerão.2
Assim como os filósofos de sua época, Allan Kardec também sonhava com essa grande mudança, tanto que, além de incluir essa pergunta no seu livro, ele ainda lhe acrescentou logo na apresentação:
Os Espíritos anunciam que chegaram os tempos marcados pela Providência para uma manifestação universal e que, sendo eles os ministros de Deus e os agentes de sua vontade, têm por missão instruir e esclarecer os homens, abrindo uma nova era para a regeneração da Humanidade.3
Antes da publicação dessa primeira edição de O Livro dos Espíritos, em um diálogo que ele registrou como tendo se dado em 12 de junho de 1856, o próprio Espírito da Verdade, evocado, referiu-se à sua missão como sendo de natureza a “abalar e transformar o mundo inteiro”. Não consta se o diálogo foi psicografado ou verbal, se mediante a prancheta ou se à mão, se a psicografia foi mecânica ou consciente; há apenas a informação de que essa comunicação se deu através da médium Sra. Aline C.4
Como se sabe, Kardec nasceu, cresceu e viveu em uma das épocas mais conturbados da história da França. Aliás, não apenas da França, mas de toda a Europa. A França, em particular, viveu um período de mais de oitenta anos caracterizado por revoltas, revoluções e guerras, cujo marco inicial pode ser colocado na revolução de 1789. Depois disso vieram as guerras napoleônicas, seguidas da revolução de 1830 e de 1848, além de diversos conflitos de menor porte. Esse clima de intensa ebulição se refletia inevitavelmente sobre toda a Europa, considerada pelos europeus como sendo o “mundo civilizado”, e isso influenciava o espírito das pessoas que se preocupavam com o futuro espiritual da humanidade.
É do espírito São Luís a mensagem que foi incluída como sendo a resposta à questão 1019 na segunda edição de O Livro dos Espíritos, na qual ele afirma que “predita foi a transformação da Humanidade e vos avizinhais do momento em que se dará, momento cuja chegada apressam todos os homens que auxiliam o progresso.” Um espírito que assina Rembrand também comunicou-se “no estrangeiro” conclamando a todos a apressarem “o Reino de Deus na Terra”, afirmando que “a tarefa é grande, a responsabilidade pesa sobre cada um e ninguém pode eximir-se”.5
Embora essa fosse uma expectativa presente tanto entre os homens como entre os espíritos, não há como excluir a possibilidade de que ela representasse apenas uma expectativa de cunho milenarista, um sonho, uma construção social, a continuação de um pensamento mágico que habita desde sempre o imaginário judaico-cristão no seu desejo de alcançar a Terra Prometida, a Nova Jerusalém, um mundo mais justo e mais solidário, do qual compartilhavam também os espíritos que participaram da codificação, na sua maioria oriundos do catolicismo.
Em 1861 um espírito que assina Carlos Magno se comunica através do seu irmão e indaga:
Por que pensais que a Terra se cobre de estradas de ferro e o mar se entreabre à eletricidade, senão para espalhar a boa nova? 6 É sob esse clima de expectativa que Kardec apresenta, no final de 1863, o seu entendimento a respeito dos períodos pelos quais o Espiritismo passaria, o último dos quais seria o da “regeneração social, que abrirá a era do século vinte”.
Nessa época, todos os obstáculos à nova ordem de coisas determinadas por Deus para a transformação da Terra terão desaparecido. A geração que surge, imbuída das ideias novas, estará em toda a sua força e preparará o caminho da que há de inaugurar o triunfo definitivo da união, da paz e da fraternidade entre os homens, confundidos numa mesma crença, pela prática da lei evangélica.7
A igreja católica perdia o seu poderio milenar e havia um forte movimento pela instauração de governos republicanos, fundados nos princípios democráticos, em substituição às monarquias ou aos impérios, que ruíam em diversos países. A França, que era já uma grande potência econômica, intelectual e militar, estava vivendo os estertores do segundo império, iniciado em 1852 com o golpe de Napoleão III, e experimentava uma efervescência política que apontava para uma transformação social iminente.
Em um diálogo com o espírito Hahnemann o espírito falou de “ruínas e desolações”: “a guerra dizimará os povos; as instituições vetustas se abismarão em ondas de sangue. Faz-se mister que o velho mundo se esboroe, para que uma nova era se abra ao progresso”. Kardec deve ter ficado apreensivo, pois indagou a respeito da extensão da guerra, ao que o espírito respondeu que ela abrangeria toda a Terra; com um detalhe: ela partiria da Itália.
Pelo que os espíritos lhe diziam Kardec deduziu que esse período de grandes perturbações se iniciaria em 1870, prazo que ele se deu para a conclusão dos seus trabalhos em relação à doutrina dos espíritos. Prudente como era, ele reteve algumas informações que só publicou em 1868, e que falavam de uma nova "ordem social" que marcariam "a política, a religião, a legislação", estabelecendo as bases para o que ele chamou de "mundo de regeneração". Ele publicou A Gênese em 1868 e desencarnou em 1869, um ano antes do prazo estabelecido por ele mesmo.
As evidências sugerem que o contexto histórico pode ter influenciado decisivamente nessa percepção milenarista de transformação social que está presente nos escritos de Kardec, de uma maneira mais clara e precisa nos textos de Obras Póstumas e, mais geral nos seus livros considerados estruturais, em particular em A Gênese e em O Evangelho Segundo o Espiritismo e O Livro dos Espíritos.
Sob certos aspectos pode-se afirmar que alguma transformação social realmente ocorreu, conforme previsto, mas em uma proporção infinitamente menor, restrita à França. Em 1870, menos de um ano depois da morte de Kardec, iniciou-se a profetizada tormenta, do que resultou a experiência da Comuna de Paris, o primeiro governo operário da história, que foi dizimado em apenas 72 dias pelos industriais que apoiaram o governo provisório, promovendo o assassinato de mais de 20.000 operários, mulheres e crianças. Seguiu-se, então, a consolidação da república, que representou para os franceses uma trégua, sem guerras ou maiores conflitos. Realmente, uma nova era, que foi chamada de Belle Époque, expressão que se refere aos anos dourados vividos pela sociedade francesa no período que se seguiu. Mas se resumiu a isso e nada mais. Em vez de ver consolidar o Mundo de Regeneração, o século XX começou com a experiência tenebrosa da Primeira Guerra Mundial iniciada em 1914.
Em 1938, quando Hitler e Mussolini já deixavam claros seus planos expansionistas na Europa, e o Japão já havia invadido o território da Manchúria, na China, sinalizando para uma “tribulação” ainda maior do que a de 1914, Emmanuel atualiza as previsões de transformação planetária. Em vez de ser o século em que se consolidaria o Mundo de Regeneração, conforme previram Kardec e os espíritos, o século XX passa a ser agora, sob o olhar de Emmanuel, o próprio século das “grandes tribulações”.
O século que passa efetuará a divisão das ovelhas do imenso rebanho. O cajado do pastor conduzirá o sofrimento na tarefa penosa da escolha e a dor se incumbirá do trabalho que os homens não aceitaram por amor.8
A linguagem utilizada por Emmanuel é de cunho religioso, de um sacerdote católico que relaciona os acontecimentos que se prenunciam ao texto dos Evangelhos e do Apocalipse, vendo a humanidade como sendo constituída dos “filhos de Jerusalém”.
Uma tempestade de amarguras varrerá toda a Terra. Os filhos da Jerusalém de todos os séculos devem chorar, contemplando essas chuvas de lágrimas e de sangue que rebentarão das nuvens pesadas de suas consciências enegrecidas.9
O livro termina com uma espécie de profecia, sinalizando para as questões de natureza geopolítica que empolgavam o mundo desde o final da Primeira Guerra Mundial, quando a Europa arrasada era obrigada a reconhecer a realidade da ascensão norte-americana. O Mundo Novo, que era uma promessa iluminista do século XIX, erguia-se agora como realidade, consolidando os Estados Unidos como um novo polo de civilização e de progresso, e ele o apresenta como uma nova liderança planetária para a humanidade.
Condenada pelas sentenças irrevogáveis de seus erros sociais e políticos, a superioridade europeia desaparecerá para sempre, como o Império Romano, entregando à América o fruto das suas experiências, com vistas à civilização do porvir.
A história do pós-guerra deixou claro que também não se concretizou naquele período o “processo de seleção final das expressões espirituais da vida terrestre”, como previra Emmanuel. O planeta Terra não se viu “livre das entidades endurecidas no mal”; ao contrário, foram os arianos que patrocinaram o holocausto; foram os EUA, anunciados no livro como os novos detentores do “cetro da civilização e da cultura na orientação dos povos porvindouros” que explodiram as primeiras bombas atômicas da história humana em Hiroshima e Nagasaki, e que estabeleceram uma nova era de dominação comercial e industrial em nível planetário, mediante bases militares que ainda hoje mantêm a sua hegemonia econômica em todos os recantos do planeta.
Consolidou-se a Era da Comunicação, com o telefone, o rádio e a TV integrando todos os continentes e emergiu em seguida a Era Digital, quando a Internet colocou todo o conhecimento do mundo à distância de um clique, mas, mesmo assim, persistem os dramas sociais; o egoísmo aprofunda o fosso entre a opulência e a miséria, a violência grassa, a indiferença social permite que 8 milhões de crianças e mais 1 milhão de pessoas adultas morram todos os anos de fome em pleno século XXI, segundo dados da ONU.
O século XX, que para Kardec e os espíritos seria o período de consolidação do mundo de regeneração, ampliou ainda mais o avanço tecnológico, e também deixou claro que o mundo não se resume à sociedade europeia, como se pensava naquela época. Mas, em vez de uma “nova era”, o que se viu foi mais uma continuidade da história, com suas contradições, seus avanços e recuos, em muitos casos até mesmo em sentido contrário à expectativa construída. Pertencem ao século XX as duas guerras mais cruentas da história, que dizimaram mais de 100 milhões de pessoas, incluindo a dura realidade do holocausto. Foi no século XX que se construiu um arsenal de bombas nucleares capaz de destruir o planeta dezenas de vezes. O século XX viu acontecer a explosão da produção e do consumo de uma variedade inimaginável de produtos, entre necessários e supérfluos, criando a cultura de um consumismo altamente destruidor de recursos naturais e poluidor da natureza, e consolidou um lucrativo comércio de drogas medicamentosas e “recreativas”. O filósofo francês Emmanuel Mounier entendeu que, em vez de ser a época do “retoque da humanidade”, como pensava Kardec, o século XX foi a porta para uma era de “sombras de medo”.10
Mesmo assim a tese milenarista foi retomada no meio espírita com a expectativa do “terceiro milênio”, que instauraria na Terra o Mundo de Regeneração. Esperanças e promessas despontavam das mensagens psicografadas na virada do milênio, alimentando o sonho de um mundo melhor e mais feliz. O mundo navegava na onda de paz promovida pelo governo democrata e pacifista de Bill Clinton quando em janeiro de 2001 assumiu George Bush, representante do setor armamentista e petroleiro, e que estabeleceu como meta retomar o antigo controle estadunidense sobre o mundo árabe. A resposta não poderia ser mais efetiva, e foi marcada pelo mais espetacular ato terrorista de todos os tempos: o ataque às torres gêmeas do World Trade Center, que matou quase 3.000 pessoas.
Depois disso essa mesma esperança milenarista foi reacendida quando do tsunami de 2004, mais tarde com o de 2011 e, agora, com a pandemia do coronavírus.
Como analisar essa constante atualização de previsões milenaristas à luz da razão, conforme estabelecido por Kardec? Considerando que a mensagem mediúnica é sempre o resultado da interação entre a mente do espírito e a do médium, ambos situados em um determinado contexto social, e que seu conteúdo final expressa a soma de todos esses fatores, não poderiam esses autores, médiuns e espíritos, estarem contaminadas por expectativas de natureza milenarista? Quando se leva em conta que nem mesmo as previsões da época de Kardec se concretizaram, que novos elementos poderiam justificar alguma expectativa de que desta vez elas se concretizarão?
Quando se analisa racionalmente o mapa social do mundo e as condições de miséria em que são mantidas, em pleno século XXI, populações inteiras da Ásia e da África, essas expectativas de cunho milenarista caem todas por terra. Não há como desconsiderar que, de acordo com os dados da OXFAM – Oxford Committee for Famini Relief –, 1% dos seres humanos detém mais riquezas que os 99% restantes, e que a soma do patrimônio das 26 pessoas mais ricas do mundo equivale à soma do patrimônio de toda a metade mais pobre da população mundial.11 Quando se constata que quase 1 bilhão de pessoas no mundo ainda convive com o flagelo da fome e que, mesmo assim, a concentração de riquezas só tem aumentado, aprofundando ainda mais o abismo social que foi construído entre ricos e pobres ao longo do século XX; quando se constata as condições sub-humanas em que vivem quase 1 bilhão de pessoas nas favelas que circundam as principais cidades do mundo, e que 40% da população mundial disputa entre si míseros 5% de toda a riqueza produzida a cada ano, sem uma educação que lhes dê condições de participação na vida social, sem serviços mínimos de saúde; quando, ano a ano, o trabalho dessas pessoas, muitas vezes em condições abusivas, serve apenas para enriquecer ainda mais os mais ricos; não resta mais dúvida de que essa transformação social de que falavam os espíritos deve se assentar sobre outra referência temporal, não tão imediata quanto se pensou a princípio.
A humanidade ainda convive com elevadas taxas de homicídio e de suicídio, de abortamento, de violência doméstica e urbana, com uma cultura fortemente enraizada de uso de drogas psicoativas, em especial o álcool, com poucas possibilidades de mudanças no curto prazo. Preconceitos como os de raça, de classe social, de gênero, dentre outros, não parecem fáceis de serem superados. Ainda subsistem hábitos culturais que repugnam ao olhar de qualquer sociedade supostamente civilizada, como a desclitorização de mulheres na África, a banalização do estupro em países como Brasil e Índia, o sepultamento em vivo, por algumas sociedades tradicionais, de crianças nascidas gêmeas ou com malformações. As nações mais poderosas combatem entre si disputando espaço comercial e influência política, muitas vezes ao custo das vidas de milhares de pessoas. O Estado ainda se afigura muito mais um instrumento de dominação, disputado por forças que tentam impor-se umas sobre as outras, do que um espaço democrático de negociação entre iguais visando o bem comum.
O folclore espírita atribui a Chico Xavier uma recomendação de maior prudência no trato desses assuntos, pois segundo contam, Emmanuel teria lhe orientado a observar que o terceiro milênio começava no ano 2000, mas só terminaria em 2999. Nesse sentido, o único registro encontrado é uma entrevista com o médium Divaldo Pereira Franco publicada no ano de 2014, quando ele teria respondido mediante esse mesmo argumento:
Nós acreditamos que no 3º milênio haverá uma grande transformação. As pessoas mais apressadas do nosso movimento acreditaram que no dia 1º de janeiro de 2000, os homens e mulheres estariam, todos, se abraçando, fraternalmente. Foi uma utopia. O processo de evolução é muito lento e costumamos dizer que, até o dia 31 de dezembro de 2999, ainda estaremos no 3º Milênio.12
Kardec entendia que essa migração já estava ocorrendo desde o século anterior. Não era outra a explicação para as mudanças que já estavam acontecendo em pleno século XIX.
Assim é que vemos fundar-se uma imensidade de instituições protetoras, civilizadoras e emancipadoras, sob o influxo e por iniciativa de homens evidentemente predestinados à obra da regeneração; que as leis penais se vão apresentando dia a dia impregnadas de sentimentos mais humanos. Enfraquecem-se os preconceitos de raça, os povos entram a considerar-se membros de uma grande família; pela uniformidade e facilidade dos meios de realizarem suas transações, eles suprimem as barreiras que os separavam e de todos os pontos do mundo reúnem-se em comícios universais, para as justas pacíficas da inteligência. 13
Surgia uma nova geração, entendia ele, constituída de espíritos “propensos ao bem”; não propriamente de espíritos superiores, “mas dos que, já tendo progredido, se acham predispostos a assimilar todas as ideias progressistas e aptos a secundar o movimento da regeneração”.14 Esses espíritos estavam promovendo, desde aquela época – e por que não ainda hoje – uma lenta mudança na cultura, nos valores e nas crenças, promovendo uma nova consciência a respeito da espiritualidade e da imortalidade da alma.
Quando se estende o olhar para o ambiente externo ao Espiritismo, vê-se que há um sem número de movimentos somando esforços nessa mesma direção. Uma simples consulta no catálogo da produção cinematográfica, grande responsável pela construção da cultura na sociedade moderna, chama a atenção pela quantidade de filmes que retratam de forma direta ou subliminar a realidade da vida além da morte e da pluralidade das vidas. De modo subliminar como em Rei Leão e O Gladiador, ou abordando diretamente a questão como A mulher de preto, Os outros, Sexto Sentido, Amor além da vida, Ghost, Manika, Minha vida na outra vida e uma infinidade de outros filmes de grande penetração. Temas como a vida após a morte, a comunicação com os espíritos e a reencarnação são cada vez mais abordados por mídias não espíritas.
Verifica-se ainda o surgimento de inúmeros movimentos religiosos cujos fundamentos são similares aos do Espiritismo no que se refere à vida depois da morte, à comunicação entre os dois planos e à pluralidade das existências, e que também cooperam no sentido de promover uma revolução silenciosa nas crenças, fazendo emergir pouco a pouco uma nova concepção de vida e de ser humano. Religiões como as brasileiras Umbanda, Vale do Amanhecer, União do Vegetal, Casa de Deus, ou japonesas como Sei-Sho-No-Ie, Oomoto, ou as estadunidenses Igreja da Unidade, Ciência da Mente ou o chamado Movimento do Novo Pensamento cooperam com a construção dessa nova visão.
Além disso, emergem movimentos de solidariedade em todas as direções. Um garoto canadense de seis anos, Ryan Hreljac, entende que pode ajudar as comunidades mais pobres da África a terem acesso à água e, com ajuda de seu pai, inicia um movimento para cavar poços artesianos naquela região, do que resulta hoje uma fundação que já colocou em operação mais de mil poços. Uma menina paquistanesa de 11 anos, Malala Yousafzai, coloca em risco a própria vida – e sofre um atentato – para defender o direito das meninas da sua região à escolarização, restrita aos homens naquela sociedade. Pessoas se unem para criar inúmeras organizações sem finalidade lucrativa, como os Médicos Sem Fronteiras, o Green Peace, a Cruz Vermelha Internacional, a Fraternidade Sem Fronteiras, dentre outras. O trabalho voluntário passa a ser considerado como elemento de distinção em favor de quem participa de alguma atividade dessa natureza pelo fato de atestar uma consciência social. Crescem os movimentos em defesa das minorias, estabelecendo um conceito de cidadania até então inexistente.
Talvez seja apenas o caso de ampliar o horizonte temporal, na linha de raciocínio atribuída a Emmanuel em sua abordagem mais recente, e entender que nenhuma transformação social se dará no curto prazo, mas ao longo do tempo, mediante mudanças incrementais que serão implementadas pelo próprio ser humano, com a ajuda dos espíritos, como se depreende da mensagem do Dr. Barry, incluída por Allan Kardec em A Gênese:
Ficai, portanto, certos de que, quando uma revolução social se produz na Terra, abala igualmente o mundo invisível, onde todas as paixões, boas e más, se exacerbam, como entre vós. Indizível efervescência entra a reinar na coletividade dos Espíritos que ainda pertencem ao vosso mundo e que aguardam o momento de a ele volver. 15
O fato é que o Espiritismo, como elemento da cultura judaico-cristã, traz consigo a certeza de um progresso na direção de uma sociedade mais justa e solidária. Reafirma, assim, a visão cristã de um Reino dos Céus, uma terra transformada, uma “Nova Jerusalém” que, na linguagem espírita, assume a figura de um Mundo de Regeneração, uma “nova ordem social” que tem na fraternidade a sua “pedra angular”, baseada na fé “nos princípios fundamentais que toda a gente pode aceitar e aceitará: Deus, a alma, o futuro, o progresso individual indefinido, a perpetuidade das relações entre os seres”.
Mas esse mundo – as evidências sugerem – não será estabelecido mediante alguma intervenção divina, ou pela vinda em massa de seres superiores de outros planetas, ou pelo expurgo de bilhões de espíritos renitentes da Terra, como foi previsto por alguns espíritos e médiuns espíritas. O desenvolvimento histórico da sociedade terrena, com suas idas e vindas, na diversidade e complexidade que a caracteriza, leva a crer que essas mudanças só acontecerão mediante a nossa intervenção humana, dos espíritos que compomos a psicosfera da Terra e que, diante dos desafios sociais, assumamos postura inequívoca de mudança em favor do bem geral com base nos princípios de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, marco civilizatório de uma nova era. Mudança que se materialize nas instituições que controlam e condicionam a vida humana, empreendidas pelo próprio ser humano através da sua ação consciente e determinada em todas as esferas da vida social, aí incluídas a esfera política, a religiosa, a legislativa. Agindo como co-criadores da vida junto de Deus e tendo como base o amor ao próximo como a nós mesmos, empenharemos os nossos esforços no sentido de transformar a Terra em um ambiente melhor e mais feliz para todos os seres humanos, abolindo as desigualdades marcantes e os preconceitos que ainda desfiguram a nossa comunidade planetária neste início de Terceiro Milênio.

1 Algumas passagens evidenciam a inquietação dos cristãos em relação à prometida volta de Jesus, como I Tessalonicenses 4:15, Romanos 13:11, I Pedro 4:7.
2 Kardec, Allan. O primeiro Livro dos Espíritos. Trad. Canuto de Abreu, Cia. Editora Ismael, São Paulo/SP.
3 Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, prolegômenos. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
4 Kardec, Allan. Obras Póstumas, pag. 344. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
5 Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Dez/1859. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
6 Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, fev/1861. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
7 Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, dez/1863. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
8 Xavier, Francisco C. A Caminho da Luz, pelo espírito Emmanuel, cap. XXV. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
9 Xavier, Francisco C. A Caminho da Luz, pelo espírito Emmanuel, cap. XXV. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
10 Mounier, Emmanuel. Sombras de Medo sobre o Século XX. Ed. Agir, São Paulo/SP.
11 OXFAM, Bem Público ou Riqueza Privada? Relatório de 2019, pag.12.
12 Entrevista com Divaldo P. Franco e Richard Simonetti publicada em 2014 e disponível em 25/05/2019 no blog http://fraterluz.blogspot.com/2014/02/por-que-tanta-violencia-respostas-de.html
13 Kardec, Allan. A Gênese, cap. XVIII item 27. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
14 Kardec, Allan. A Gênese, cap. XVIII item 25. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
15 Kardec, Allan. A Gênese, cap. XVIII item 9. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

Comentários

  1. Os processos de transição do estágio evolutivo do planeta não acontecem de repente. São séculos no mesmo processo e certamente estamos num processo que vai demorar. O problema está na abordagem que muitos fazem disso. Colocam misticismo e ocultismo em algo que é natural.

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  2. Exatamente, Suzi. Obrigado por comentar.

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  3. É inegável que o planeta como tudo que nele habita caminha para a evolução gradual mesmo que lenta para nos, mas numa fagulha para a eternidade, sofra intempéries que retardaram sua evolução e outros que os apressa. Isso foi e será em todos os tempos de nossa existência.
    Portanto, para mim, o texto trás uma ótima reflexão embasada em fatos concretos, demonstrando que os bons e maus momentos que vivemos é uma consequência do estágio evolutivo que nós estamos.

    Parabéns pelo texto!!!

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  4. Uma lúcida abordagem que contribui para a diluição da aura mística e espetaculosa com que alguns Espíritos e médiuns renomados revestiram um processo que se desenvolve natural e gradualmente, sempre. O insistente e vulgarizado emprego do slogan "Transição Planetária" ridiculariza, a meu ver, o espiritismo.

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  5. Excelente abordagem, Elias. Precisamos de leituras analíticas lúcidas como esta sua, a serem disseminadas no meio espírita a fim de combater o folclore, o misticismo e, sobretudo, a falta de bom senso e excesso de religiosismo. Só assim, poderemos interpretar de maneira lúcida e edificante o legado da nova revelação de que o Espiritismo se faz portador.

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  6. Parabéns. Obrigada pela oportunidade de estudo e reflexão. Você aprofunda e atualiza o pensamento espírita!!!

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  7. Muito boa reflexão! Não tem como deixar de pensar, que neste processo a Pandemia traz ,de forma direta, circunstâncias diversas que evidenciam um roteiro diferenciado. A magia estará contemplada, no encantamento em visualizar movimentos efetivos, colaborativos, amorosos de regeneração, primeiro, do NOVO SER.

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  8. Excelente reflexão em torno de um tema que tem movimentado as emoções de muitos!

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  9. Elias, belo trabalho! Texto bom, estruturado, didático, boas referências e argumentos. Parabéns! Creio que boa parte dos espíritas, assim como eu, começam a se libertar de amarras improcedentes.

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  10. Muitas previsões de médiuns do tempo de Kardec e do próprio Chico e Divaldo se fundamentam em crenças pessoais. Sou espírita há 30 anos, mas essa ideia de regeneração nunca me caiu bem. É muita coisa envolvida como você colocou excelentemente no texto. Quando começou a pandemia o Divaldo se apressou a psicografar um livro que indicava ser agora o momento de transição. Como não se concluiu, ele aproveitou a guerra na Ucrânia para dizer que agora seria o momento, pois a Europa provavelmente iria intervir e o resultado seria a guerra nuclear. Sinceramente não dá pra acreditar nessas previsões, como diria um amigo, isso é coisa de idealistas.

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