O Espiritismo plural e os benefícios da união

 


 Elias Inácio de Moraes

Você já parou para analisar as diferenças existentes entre as casas espíritas e entre o modo de pensar dos espíritas? Espíritas religiosos, científicos, místicos, laicos, livres-pensadores, e casas espíritas mais voltadas para estudo, autoajuda, assistência social, cura… Como compreender toda essa diversidade? Pode esse pluralismo ser utilizado em proveito do próprio movimento espírita?

A princípio, pensava-se que o Espiritismo tenderia a uma união em torno de uma maneira única de pensar e de uma prática institucionalizada que atenderia a todos. Lembro-me de quando o Sr. Wolney C Martins, então presidente da FEEGO, imaginava uma forma de atuação que seria tão homogênea que qualquer pessoa que chegasse em uma casa espírita no sul ou no nordeste do Brasil reconheceria ali uma instituição espírita; o exemplo eram os bancos, ou os Correios, que podem ser reconhecidos até mesmo pela cor da sua fachada. Era esse o sonho da unificação.

A realidade observada, entretanto, tem se mostrado bem ao contrário disso. Por se regerem pelo princípio da autonomia, sagrado ao Espiritismo, cada casa espírita apresenta as suas peculiaridades, estabelece suas próprias diretrizes e desenvolve seu entendimento próprio a respeito da doutrina e de como ela se aplica às suas atividades cotidianas. As semelhanças vão até certo ponto; quando se atenta para os detalhes vão aparecendo as diferenças.

Kardec ainda era vivo quando surgiu a primeira divisão, com a obra de Roustaing, que pretendia ser “a revelação da revelação”, ou seja, uma revelação adicional à própria “revelação” espírita. Com a sua morte surgiram outras correntes mais místicas, mesmo na Europa, além de um Espiritismo um tanto mesclado com o catolicismo, ou com as tradições esotéricas, ou com a cultura indígena e africana aqui no Brasil. Hoje se observa uma variedade imensa de crenças e de modos de atuação, que vão desde os clássicos “estudos doutrinários” até as reuniões mais voltadas para os “tratamentos espirituais” ou para a autoajuda e a motivação para a “prosperidade”.

Estamos diante de um Espiritismo ou diante de Espiritismos? Como lidar, agora, com essa realidade tão plural?

O escritor espírita Eurípedes Kull considera a diversidade como o “vetor universal evolutivo”. É a diversidade que proporciona condições de crescimento. Usando como base a Teoria Geral dos Sistemas, pode-se afirmar que sistemas que crescem são sistemas dinâmicos, que se diferenciam internamente. Sistemas que permanecem estáticos não evoluem. Eurípedes Kull faz uma comparação com o sistema enzimático dos seres vivos: “se houvesse perfeição no sistema enzimático não haveria diversidade” e nem crescimento.1

O mesmo pode ser dito com relação ao Espiritismo e seu aspecto progressivo: se o Espiritismo fosse uma construção que se apresentasse como “perfeita”, estável, homogênea, não haveria diversidade interna, e qualquer evolução, qualquer crescimento seria impossível.

Dentro dessa perspectiva, conflitos precisam deixar de ser vistos como “anomalias” ou como “imperfeições do sistema”. Ao contrário disso, rupturas, inconsistências, fragilidades, em vez de se constituírem em problema, podem ser absorvidos como possibilidades de novas elaborações. A evolução de um determinado sistema pode ser uma desejável decorrência dos conflitos internos que, além de serem inevitáveis, podem ser aproveitados como indutores do crescimento.

Nas palavras de Jeni Vaitsman, socióloga da Fiocruz-IPEA, “na sociedade contemporânea, não se consegue mais, como queria o projeto universalista da ciência, da filosofia e da política, homogeneizar os diferentes sujeitos, objetos e discursos.”

O conhecimento científico não é mais tratado como “representação exata” da realidade, como “espelho da natureza”, e sim como uma forma de representação da realidade entre outras. Não se consideram mais as descrições científicas como transparentes e objetivas, mas sim construções da realidade, discursos sobre o mundo, o que os aproxima das formas de construções literárias e artísticas.2

Assim também pode dar-se com o Espiritismo, que nasceu como uma “ciência espírita”.

Ocorre que, por falta desse entendimento e por ausência de espírito de fraternidade, as pessoas adotam estratégias de dominação, como, por exemplo, o silenciamento dos que pensam de modo diferente. Em vez de estimular o diálogo, o saudável debate, o encontro das ideias, busca-se a ocupação dos espaços de poder visando a prevalência de uma vertente em detrimento das demais. O que seria fator de aprimoramento em qualquer outro sistema – que são o conflito, a diversidade e as rupturas internas – passa a ser entendido como problema, motivo de divisão, de fracionamento.

Ângela Moraes analisa o modo como esse conflito se estabelece nos movimentos sociais a partir dos conceitos de “violência simbólica” e de “ética do dissenso”. Mesmo quando se promove o diálogo, “as pessoas não entram nele para aprenderem juntas, umas com as outras; as pessoas entram no diálogo para convencer o outro”. Os grupos hegemônicos usam de diferentes formas de violência simbólica, como difamação, censura, para promoverem a “morte simbólica” do outro, ou seja, o seu silenciamento dentro do campo de discursos.3

Em vez de aproveitar as rupturas internas, os conflitos internos e a diversidade interna do sistema para fazê-lo crescer e multiplicar-se, as pessoas cedem à tentação da separação, do divisionismo, cada corrente desejando apropriar-se do direito de afirmar-se espírita, e recusando esse direito às demais. “Espíritas somos nós que pensamos assim; os outros que arranjem outra denominação”. Vigora a lei da força, e os mais fortes expulsam os mais fracos, que buscam novas formas de afirmar a sua existência.

Enquanto a Rádio Boa Nova divulga com euforia um estudo realizado pelo pesquisador espírita Mário Fernando Prieto Peres que atesta que 50% dos brasileiros acredita em reencarnação e 70% relata algum tipo de experiência espiritual, o IBGE identifica no seu último censo de 2015 que menos de 2% dos brasileiros se afirmavam “espíritas”.4

Se há um desejo de caminhar no sentido de uma união entre os espíritas – e não de “unificação” no sentido da uniformidade – faz-se necessário que sejam respeitadas as diferenciações internas que vão surgindo inevitavelmente dentro do próprio movimento.

Em qualquer sistema social, se a sua diversidade interna não é reconhecida e valorizada o sistema se rompe e se fragmenta. Portanto, mais que de uma uniformidade, necessita-se de um espírito de união entre diferentes que cultivam princípios semelhantes.

Observando o cenário de um ponto de vista mais elevado, os espíritos já haviam orientado Allan Kardec dizendo-lhe:

que importam algumas dissidências, mais de forma que de fundo! Notai que os princípios fundamentais são os mesmos por toda parte e vos há de unir num pensamento comum: o amor de Deus e a prática do bem. (…) Se é certo que, entre os adeptos do Espiritismo se contam os que divergem de opinião sobre alguns pontos da teoria, menos certo não é que todos estão de acordo quanto aos pontos fundamentais.5

Como que antevendo esses desafios Kardec elaborou – e não chegou a divulgar – o seu projeto de constituição do Espiritismo, estabelecendo o embrião do que poderia ser, no futuro, um movimento de união em nível nacional e internacional.

Mas, qual será a amplitude do círculo de atividade desse centro? Destinar-se-á a reger o mundo e a tornar-se árbitro universal da verdade? Alimentar semelhante pretensão fora compreender mal o espírito do Espiritismo que, pela razão mesma de proclamar os princípios do livre-exame e da liberdade de consciência, repele a ideia de arvorar-se em autocracia; logo que o fizesse, teria enveredado por uma senda fatal.6

Para possibilitar uma “unidade” – sonho idealista do século XIX – seriam realizados os congressos periódicos onde os pesquisadores e os estudiosos apresentariam suas teses para serem debatidas e apreciadas pelos pares, valorizando o caráter progressivo do Espiritismo, que deveria andar “de braços dados” com a ciência. Mais do que palestras, estudos; mais do que orientações, debates; mais do que pensamento único, valorização do contraditório.

O desafio que se coloca hoje para o movimento espírita é consolidar aquele projeto kardequiano de união entre os espíritas, aproveitando as diferenças de modos de atuação e de maneira de compreender o próprio Espiritismo para alavancar crescimento e ampliação de suas possibilidades, sem qualquer pretensão de supremacia religiosa dentro da sociedade.

Para que isso se concretize é necessária uma atuação consciente das entidades que se propõem exercer o papel de agentes organizadores desse processo, como pode ser o caso do movimento federativo. Mas, para isso, essas instituições precisam estar atentas ao que Kardec pontuou como princípio de ação do que ele chamou de Comissão Central:

Fiel ao princípio de liberdade de consciência, que a Doutrina proclama como direito natural, ela respeitará todas as convicções sinceras e não anatematizará os que sustentem ideias diferentes das suas, nem deixará de aproveitar as luzes que possam brilhar fora do seu seio.7

Nesse sentido Luiz Signates pondera: “o imaginário que eu faço de futuro, por exemplo, de uma sociedade perfeita, é uma sociedade de extrema diversidade, onde os conflitos nessa mesma diversidade não são violentos, (ao contrário) são respeitados infinitamente”.8

Portanto, para explorar todo o potencial de crescimento que o Espiritismo apresenta hoje enquanto ideia, mais que tudo é preciso estimular o princípio de união entre os diferentes. Espíritas religiosos, místicos, científicos, laicos, livres-pensadores, todos podem dar sua contribuição se essas diferentes maneiras de compreender o Espiritismo foram entendidas como oportunidade, e não como fator de divisão. Isso traz para todos o desafio de, mais que apenas respeitar, valorizar essas diferenças, e ter nelas fator de evolução e de crescimento da ideia espírita junto à humanidade.

1Kull, Eurípedes. Espiritismo e Genética, pag. 22. FEB, Brasília/DF, 2016.

2Vaitsman, Jeni. Subjetividade e Paradigma do Conhecimento, in Bol. Técnico do SENAC ano 1995 v.21 nº 2.

3Moraes, Ângela T. Aportes teórico-metodológicos para análise de discursos polêmicos em inte­rações comunicativas, in Estudos Contemporâneos em Jornalismo – coletânea, UFG/FIC, Goiânia/ GO (2018).

5Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, conclusão. 54ª ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 1981.

6Kardec, Allan. Obras Póstumas, Constituição do Espiritismo. 26ª ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 1993.

7Idem, ibidem, ibidem.

8Signates, Luiz A. entrevista em Rev Eletr Espiritualidade e Sociedade. Disp. em www.espiritua­lidades.com.br


Comentários

  1. O movimento federativo prova na prática que o projeto de Kardec não dá conta de promover união entre os espíritas. Esse movimento se institucionalizou e ficou cego para "O Espiritismo plural e os benefícios da união". E creio que talvez não precisamos de "união" entre os espíritas o "respeito" está de bom tamanho para todas as relações sociais. Por isso, concordo com o Signates. Parabéns pelo artigo!

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  2. Elias,Amigo, sou Diretor Presidente da Livraria e Editora Espírita Renascer e coordenador do Fórum de Estudos e Debates Espíritas do Maranhão. Gostaria que se possível, você entrasse em contato comigo pelo whatsapp(98) 99229-6815
    Abraço,
    Herbertt Morais

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