PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA NO MEIO ESPÍRITA?

 


Elias Inácio de Moraes

Em uma de suas reflexões de exegese bíblica o espírito Emmanuel lembra os "golpes de açoite, pedradas e ironias" que Paulo teve que suportar na propagação das novas visões que o Evangelho lhe descortinava.1 É interessante refletir, entretanto: quem lhe aplicava essas pedradas e açoites?

Nem sempre nos atentamos que quem lhe aplicava esses suplícios eram os seus próprios irmãos de crença, indignados ante as novas visões que ele lhes propunha.

A história da religião é quase sempre uma história de sombra e luz. As pessoas buscam a luz através da religião, mas ofuscam o brilho da realidade espiritual com as suas próprias sombras. Quanta intolerância, quanta agressividade, quantos crimes foram cometidos, quanta sombra alimentada a pretexto dessa busca da luz!

Pela narrativa dos Evangelhos, quem crucificou Jesus, que era judeu, não foram os romanos; eles apenas aderiram por conveniência, executando a decisão dos judeus que, aos berros, gritavam: crucifica! crucifica! Eram judeus exigindo do império romano a crucificação de um judeu. Quem perseguiu Jesus e os apóstolos nem sempre foram os romanos. A maioria das perseguições partiram do Sinédrio, que era a religião judaica oficialmente constituída, perseguindo seus próprios irmãos de fé, também judeus, agora convencidos das novas visões descortinadas pelo Evangelho.

Mais tarde convertido em religião oficial, o próprio cristianismo também inaugurou a sua fase de perseguições e crimes. A Igreja Católica perseguiu religiões alheias, como se vê nas páginas tristes das Cruzadas e da "Santa" Inquisição; perseguiu seus irmãos cristãos que discordavam do dogmatismo católico durante os anos duros da Reforma Protestante; perseguiu e queimou vivas mulheres cristãs que descortinavam os novos horizontes da mediunidade, no que ficou conhecido na história como a "caça às bruxas".

Por último, a Igreja cristã oficial queimou ainda recentemente livros espíritas - já não era mais aceitável queimar pessoas - publicados por um correligionário cristão, Allan Kardec, porque ele trazia um novo olhar a respeito da espiritualidade, no sombrio Auto de Fé de Barcelona.

E hoje? Por que ainda nos digladiamos entre diferentes correntes do pensamento espírita? Qual a nossa dificuldade de conviver pacificamente com quem pensa diferente de nós? Por que temos que desacreditar, combater e até agredir, com as novas ferramentas que a sociedade nos disponibiliza, os outros movimentos também espíritas, como Auta de Souza, Ramatis, Nazarenos, Chiquistas, Divaldistas, Kardecistas de Raiz, Espíritas Laicos, Espíritas à Esquerda, Movimento Federativo, dentre outros?

Por que, em pleno século XXI, ainda tentamos alimentar uma imaginada supremacia cristã em relação aos nossos irmãos de Humanidade, como a Umbanda, o Candomblé, o Xamanismo, o Hinduísmo, o Taoísmo, o Budismo e tantas outras correntes de pensamento espiritual não cristãs que, inclusive, são ampla maioria em relação a nós cristãos?

Paulo, que também perseguiu, sofreu muito, acossado pelos seus próprios irmãos de fé. Não foram os de fora que o perseguiram, foram os de dentro da sua própria casa espiritual. Dois mil anos passados, quando já não faz mais sentido atear fogueiras ou promover apedrejamentos e execuções sumárias baseadas na fé, ainda recorremos à maledicência disfarçada de defesa da religião, às estratégias de silenciamento dos que não pensam como nós, ao seu "cancelamento" social, que são as modernas armas de agressão subliminar que, se não ferem o corpo, ferem a imagem, a dignidade e os sentimentos.

Quando, enquanto coletividade e enquanto indivíduos, ou enquanto movimento de natureza espiritual como é o Espiritismo, nos colocaremos em condições de superar essa tenebrosa herança atávica e não mais repetir essa história sombria de perseguição e exclusão? Quando nos tornaremos capazes de dialogar com absoluto respeito à diversidade de visões, à liberdade de pensamento, ao pluralismo de ideias que deveria caracterizar qualquer sociedade minimamente civilizada? Quando, em vez de difamar, silenciar, excluir, abriremos os amplos espaços de diálogo e de debates proposto por Kardec no seu projeto de Constituição do Espiritismo, de modo a ampliar os nossos horizontes com base no diálogo pautado na Fraternidade?2

Segundo o Evangelho, os discípulos de Jesus serão conhecidos por muito se amarem. E o amor não se manifesta em meio à discriminação e à exclusão dos irmãos de fé que pensam diferente de nós. O amor se manifesta quando, em vez de silenciar, nos dispomos a ouvir o outro e a buscar, com o outro, ampliar nossa visão de vida e de mundo em benefício de todos nós.

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1Xavier, Chico. Pão Nosso, lição 140, pelo espírito Emmanuel. FEB, Brasília/DF.

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2Kardec, Allan. Obras Póstumas, Constituição do Espiritismo. FEB, Brasília/DF.

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