Elias Inácio de Moraes
Muitas histórias se desenrolam sob o silêncio dos seus atores; e também muitas frustrações, muitas dores. A maneira como elas vêm à tona é o que revela a sua intensidade e o quanto as pessoas se sentiam sufocadas, às vezes ao longo de toda uma vida. Isso quando não vêm à tona sob a forma de um suicídio, obrigando-nos a refletir sobre o quanto o nosso preconceito causa dor e porque algumas pessoas sempre mentiram a seu próprio respeito: era para se protegerem das agressões, da rejeição, da discriminação que sabiam inevitável em uma sociedade ainda tão preconceituosa como a nossa.
Aconteceu ontem um sepultamento singular; uma mulher da nossa comunidade, que viveu em meio a todos nós, pediu que seu corpo fosse sepultado vestida com um terno masculino. Sua esposa a vestiu dignamente com um terno azul-escuro e uma gravata azul-claro. Somente após a morte ela pode se vestir como gostaria durante toda a sua vida. Ela até conseguiu se assumir desde cedo, estabelecer uma relação homoafetiva vivida na discrição dos que optam por não afrontar o preconceito da sociedade. Agora, já aos pouco mais de cinquenta anos, vitimada por um câncer, se despede de uma vida a duas dignamente construída, mas levando consigo o receio de que a companheira encontre alguma dificuldade em solucionar a questão da herança sobre a chácara onde moravam, que foi um sonho cultivado em comum.
Essa história lembra um dorama coreano visto ainda esses dias, nos alertando que o preconceito é um câncer que espalha dor por quase todo o nosso planeta. Ele conta a história de um rico empresário que passou a vida inteira deixando a impressão de que tinha uma amante com a qual vivia às escondidas em uma chácara que lhe era exclusiva, onde até mesmo os empregados eram dispensados quando ele chegava para que ele se sentisse completamente a sós. No quarto, toda uma coleção de vestes e calçados femininos que todos julgavam pertencerem a essa amante misteriosa. Quando da sua morte, uma médium percebe sua presença, triste, ao lado do caixão e se comove com a sua dor. É quanto ele lhe pede mentalmente que o ajude a atender a um último desejo. Trazida à tona a história, seu filho decide lhe oferecer o último preito de gratidão e de dignidade, e manda vestir o seu cadáver com a mais bela roupa feminina encontrada naquela chácara escondida, conforme constava em uma foto cuidadosamente guardada no armário.
Lembra também do Sr. Roman, do Reino Unido, cuja história mexeu com o mundo inteiro, pois só aos 95 anos, depois de ter vivido casado por 67 anos e ter netos e bisnetos, é que teve coragem de reunir a família e anunciar que vivera uma mentira durante toda a sua vida por nunca ter admitido que era gay. Indagado sobre como se sentia, depois de ter se assumido como tal, ele contou que fora o momento mais libertador da sua vida, até mais do que no dia em se viu liberto, aos 23 anos, de um campo de concentração nazista no final da segunda guerra mundial. O mesmo não se deu, infelizmente, com o jovem chinês Zhou Peng, que cometeu suicídio aos 26 anos por não suportar o bullying decorrente dos rígidos padrões de masculinidade exigidos pela cultura do seu país, agora transformados em política de governo.
Não há nenhum de nós que não tenha na família uma pessoa LGBT, por mais escondida que ainda esteja a sua história. Nas famílias menos preconceituosas essas relações já vieram à tona e são tranquilamente aceitas, como no caso das minhas sobrinhas, dos meus dois primos e de vários amigos e amigas que fazem parte conosco da Fraternidade Espírita. O Mateus é para nós motivo de orgulho desde o dia em que ele não aceitou mais ser chamado de Isa e nem vestir vestidos de menina, pedindo à sua mãe que o ajudasse a transformar-se, com a ajuda da medicina, no bonito rapaz que ele é hoje. Nosso ambiente é mais leve pelo fato de o Fernando, que é casado com um dos evangelizadores da casa, se sentir à vontade com seu marido, civilmente casados, absolutamente às claras para todas as pessoas, em especial para as crianças que aprendem a ver desde cedo a homoafetividade, tanto quanto a heteroafetividade, como uma condição natural dos seres humanos.
O desafio agora é vencer o preconceito que ainda vigora entre uma representativa parcela da sociedade, e que é capaz de empoderar alguém ao ponto de achar que pode ameaçar de morte uma pastora por ela ter celebrado o casamento de duas mulheres, como vimos noticiado ontem. É esse mesmo preconceito que faz uma dirigente de casa espírita expulsar de casa o seu filho por não aceitar a sua condição homoafetiva, fato também real, ocorrido no Rio de Janeiro, ou inúmeros pais enviarem seus filhos para o exterior para que não sejam percebidos como pessoas LGBT em meio às suas dignas famílias cristãs.
Kardec indaga por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons, como naqueles idos de 2013, quando vimos um grupo de religiosos fundamentalistas pressionando o governo a não enviar às escolas o material tão cuidadosamente preparado por uma equipe de especialistas que pretendiam combater a homofobia no ambiente escolar e, com isso, reduzir as taxas de suicídio entre adolescentes e a evasão escolar, muito comuns entre jovens LGBT. Sob a pejorativa e falsa acusação de um "kit gay" que estimularia as crianças – como se isso fizesse algum sentido – a se tornarem gays, os fundamentalistas religiosos impediram a concretização do projeto e, consequentemente, a proteção à vida dessas crianças e adolescentes. Na sua ignorância essas pessoas bradavam o que seria da família, como se alguma ameaça pairasse sobre as famílias hétero, ou como se as famílias homoafetivas não fossem famílias.
A resposta do espírito é tão singular quanto a pergunta, porque ele alude à nossa fraqueza enquanto sociedade. O mal prevalece na Terra "pela fraqueza dos bons", ou seja, dos que defendem o bem, o cuidado com o outro, a igualdade de direitos entre todos os seres humanos. "Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos." E como se nos alertasse para a necessidade de nos empoderarmos para fazer face ao egoísmo, à maldade e ao preconceito dos homens, ele termina afirmando que "quando estes o quiserem, preponderarão". Quando nós realmente quisermos, o preconceito será substituído pelo amor incondicional ao próximo, e todos nos sentiremos irmãos uns dos outros, para além de questões tão simples quanto gênero, cor de pele ou condição social.
Com certeza, nesse dia não mais veremos as pessoas escondendo sua própria condição de gênero com receio de serem agredidas e nem religiosos sendo ameaçados de morte por terem valorizado o que há de mais sagrado em um ser humano, que é a sua identidade, o seu modo de ser, ou jovens cometendo suicídio por não terem sua condição sexual reconhecida e valorizada pela sua família, seus amigos, pela sociedade em que vive.
Meu irmão, nossa vivência na Terra nos leva a estes sentimentos que nos mostra o quanto ainda temos que avançar para transformar este planeta em um ambiente de regeneração de todos. Onde abandonaremos vicissitudes, preconceitos e ignorâncias no passado. Textos como o seu representam que a transformação já começou. Só basta abrirmos nossos corações para o amor e teremos um mundo mais justo e igual para todos. Parabéns e um abraço.
ResponderExcluirLúcido, necessário e sensível!
ResponderExcluirGratidão pelo artigo!
Que texto lindo e necessário.
ResponderExcluirTio Elias, que necessário isso.
ResponderExcluirLindo texto e de uma sensibilidade única. Obrigada por defender com tanto amor a nossa causa. Te amo 💞
Querido Elias, parabéns pelo belíssimo texto. Gratidão por sempre trazer a tona estas questões de gênero e sexualidade a luz do espiritismo. Precisamos avançar enquanto sociedade e essas sementes que plantam contribuem nesse processo.
ResponderExcluirSeu texto denuncia uma triste realidade 😢... parabéns!
ResponderExcluir