EXISTE BALA PERDIDA, SIM. NÃO EXISTE É BALA “ACHADA”

 

Elias Inácio de Moraes

Há vários vídeos abordando esse assunto nas redes sociais, tema muitas vezes repetido em palestras, quase sempre de uma maneira questionável por não levar em conta as estatísticas, os estudos sociológicos e alguns conceitos espíritas aplicados à realidade cotidiana. Da maneira como têm sido colocado o assunto, tragédias nas vidas de inúmeras pessoas representam apenas uma espécie de fatalidade já prevista por uma Justiça Divina sádica mediante “leis” por ela criadas, destinadas a provocar dor nos seres humanos como uma forma de vingança disfarçada de justiça. Uma Justiça Divina capaz de “atrair” uma bala de fuzil para o corpo de uma criança agasalhada no colo de sua mãe, ou de duas crianças, uma de 4 e a outra de 7 anos, que estão brincando na frente das suas casas, ou para o peito de uma adolescente de 14 anos no pátio da sua escola.

Há quem recorra a malabarismos estatísticos ou termos da física, como “singularidade” ou “colapso de probabilidades”, para explicar que aquela tragédia “tinha mesmo que acontecer”, como se uma “lei de atração” ou um “imã espiritual desconhecido” dispusesse vítimas e criminosos nos locais precisos – e ainda ajustasse a direção dos disparos – para que a Justiça de Deus se cumprisse. Explicações transcendentais destinadas a transferir para a vítima a responsabilidade pelo crime.

Um tema dessa natureza deveria ser objeto de amplo debate, sob diferentes olhares, condição essencial quando se busca ampliar o horizonte das explicações. Como ele tem sido explorado em situações que impossibilitam o contraditório, muitas questões relevantes têm ficado à margem da discussão, como: por que as balas perdidas acontecem apenas nos bairros de periferia e atingem, de preferência, pessoas pobres, pretas ou pardas? Por que não se vê balas perdidas nos bairros nobres e nos condomínios fechados? Estariam as pessoas ricas isentas de débitos ante a Justiça Divina e, por isso, imunes a essas ocorrências? Por que isso não ocorre ou é extremamente raro em inúmeros países, muitos deles bem mais pobres que o Brasil?

Nota-se, nesse modo de explicar as tragédias sociais, uma preferência pelo conceito de “expiação” em detrimento do conceito de “prova”, ou “provação”. Como Kardec relata vários casos em que as pessoas passavam por sofrimentos semelhantes a situações em que fizeram os outros sofrer – e viram nisso uma espécie de “Punição Divina” –, alguns estudiosos do Espiritismo generalizam essa explicação como se ela fosse a única, e suficiente para explicar todos os casos.

Sendo o Espiritismo também uma ciência, há alguns preceitos que devem ser considerados quando da análise de temas tão complexos. O primeiro deles é que a melhor explicação para alguns casos não é, necessariamente, a melhor para todos; é preciso examinar as singularidades. O segundo é que, se um único caso foge àquela explicação geral, então é possível que haja outros. Com isso, aquela explicação deixa de ser considerada suficiente e a questão é colocada novamente em debate. O terceiro é chamado de “navalha de Ockham”, e significa que, de várias explicações possíveis para um determinado problema, a mais simples deve ser a mais provável.

No que se refere ao primeiro preceito, pergunta-se: se alguns espíritos alegam ter vivido uma tragédia como expiação por algum crime cometido no passado, isso significa que essa explicação é a melhor para todos os casos? Não pode dar-se de a pessoa ser vítima de um crime, uma injustiça sem que tenha feito nada para “merecer” passar por isso? Afinal, existem o crime e a injustiça ou a única opção é a expiação de erros do passado? Onde fica, então, o conceito de “provação”?

Vamos ao segundo preceito: Excluindo Jesus, teriam os seus seguidores alguma dívida no seu passado espiritual que justificasse os sacrifícios que eles sofreram ou aquilo era apenas uma prova decorrente de terem abraçado a causa do Evangelho? Cáritas, Joanna d’Arc, John Huss, tinham alguma “dívida” no seu passado ou suas vidas foram sacrificadas pela dureza dos corações humanos? Tomando apenas as 12 crianças cujas vidas foram ceifadas por balas perdidas no Rio de Janeiro no ano de 2020, alguma delas poderia estar em uma situação semelhante à de algum desses mártires? Quem conhece o passado espiritual de cada uma delas para afirmar que se tratava de uma expiação e não de uma prova decorrente da nossa negligência social para com a violência urbana?

Por último, Kardec distingue em duas, as causas dos sofrimentos humanos, “umas tem sua causa na vida presente; outras, fora desta vida”.1 Muito embora em sua análise ele se volte para os problemas causados pela própria pessoa, não se pode deixar de levar em conta as causas sociais. Pobreza, miséria, violência, não resultam da Vontade Divina; a desigualdade das condições sociais “é obra do homem e não de Deus”.2 Além do mais, “a expiação serve sempre de prova, mas nem sempre a prova é uma expiação.3 Pelo critério de Ockham, atribuir a causa de uma tragédia a vidas passadas só faz sentido se não houver uma causa claramente demonstrável na vida presente.

Tivessem essas vítimas de balas perdidas reencarnado em um local sem violência, teriam as suas vidas sido ceifadas em pleno curso? Se tivessem reencarnado entre as classes sociais mais favorecidas, isso teria acontecido? Nenhuma explicação baseada no conceito de “expiação” se faz necessária quando temos uma situação social muito bem caracterizada. As pessoas morrem vítimas de balas perdidas porque existem policiais e civis que disparam suas armas de maneira criminosa; porque há uma negligência dos poderes públicos que fecham os olhos e os ouvidos diante dessas tragédias; porque há uma indiferença social por parte da minoria que se acha protegida e que prefere refugiar-se em explicações místicas do que admitir que há uma tragédia social em curso que precisa ser solucionada se realmente entendemos “o de viver” como o primeiro de todos os direitos.4

Depoimentos dos próprios agentes de segurança deixam claro que a polícia age de modo diferente quando agindo nos bairros nobres. Um grande traficante que mora em um condomínio de luxo recebe – quando recebe – uma abordagem inteiramente diferente da que é adotada com os microtraficantes das periferias.5 As forças de segurança são estruturalmente orientadas a controlar os pobres pela violência, enquanto defendem os interesses dos ricos. Mesmo assim, nenhum policial ou civil está predestinado a efetuar um disparo que coloque em risco a vida de terceiros. Ninguém está predestinado ou submetido a uma lei à qual não possa se subtrair. Isso, para Kardec, seria considerar o homem uma “máquina, sem iniciativa nem livre-arbítrio e, consequentemente, sem responsabilidade”, em um determinismo que seria “a negação de toda moral”. Nenhum ser humano “será fatalmente arrastado a fazer isto ou aquilo, nem a sofrer este ou aquele acidente”.6

Kardec já havia percebido que a “escolha das provas” é de caráter mais genérico e não cobre todas as circunstâncias da existência. O espírito não escolhe e prevê tudo o que lhe sucederá no mundo “até às mínimas coisas”. Ele escolhe – quando lhe é possível escolher – “apenas o gênero das provações. As particularidades correm por conta da posição em que vos achais”. Escolhendo – ou vendo-se constrangido a – nascer em uma família pobre, o espírito se expõe, inevitavelmente, às circunstâncias próprias do ambiente em que nasceu, o que representa para ele uma prova. De acordo com o tipo de experiência em que se acha inserido ele se verá diante de um determinado cenário de possibilidades e de obstáculos, mas isso não significa que algo deva “acontecer infalivelmente”.

Embora tenha inserido algumas questões em O Livro dos Espíritos que apontam para uma fatalidade com relação ao instante da morte, Kardec também apresenta um “Resumo Teórico do Móvel das Ações Humanas” onde, ao longo de cinco páginas, ele demonstra, com base na teoria do livre-arbítrio, que “o homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que ele pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino.”7 A não ser assim, onde o livre-arbítrio e a responsabilidade moral dos envolvidos? Onde a responsabilidade do motorista que avança o sinal e provoca um acidente fatal com a perda da vida de terceiros? Não tinha ele a opção de obedecer à sinalização do trânsito? Não é por livre deliberação que ele se arrisca no ato? Considerando o caso das balas perdidas, não têm os atiradores a liberdade de evitar o disparo? Mais ainda: que “imã espiritual desconhecido” é esse que determina que o disparo seja em tal ou tal direção de modo a atingir uma criança no colo da sua mãe ou as crianças que brincam na porta da sua casa? Atribuir esse tipo de tragédia à Justiça Divina não é alimentar a ideia de um Deus vingativo, pior que qualquer ser humano? Quem cometeria tal crueldade a pretexto de fazer justiça?

As guerras entre facções criminosas ou os confrontos armados com a polícia não foram previstos nos códigos divinos; eles resultam do modo equivocado pelo qual os agentes sociais lidam com o problema do uso de drogas e da criminalidade, sob a aprovação silenciosa de uma minoria privilegiada que vive resguardada dos seus efeitos desastrosos. As balas perdidas nos conflitos de rua não são manipuladas por uma imaginada Justiça Divina à procura dos alvos ideais; as mortes que delas resultam são tragédias sociais, verdadeiros abortos de vidas já nascidas que, vez por outra, impedem os espíritos de passar pelas experiências a que se candidataram quando da sua vinda a este mundo, muitas delas cuidadosamente planejadas no mundo espiritual, apesar dos riscos já sabidos.

Atribuir, pois, essas mortes a “erros cometidos em vidas passadas” é não levar em conta a realidade social, é imaginar explicações supostamente espíritas para os fatos da vida cotidiana sem considerar que a sociedade é estruturada segundo ditames humanos, muito distantes ainda dos parâmetros sinalizados pelo Evangelho de Jesus. Dizer que “não existe bala perdida” ou que “existe bala achada” é faltar com a empatia e até mesmo com o respeito devido às mães que perderam seus filhos, é ignorar o drama das famílias dos inúmeros jovens, na sua maioria pretos e pardos, que morrem todos os dias nos bairros de periferia, Brasil afora, por irresponsabilidade social ou pela negligência daqueles que abraçaram o dever de protegê-los enquanto cidadãos.

Por último, um detalhe: segundo o IBGE, 64% dos espíritos que reencarnam no Brasil não desfrutam da oportunidade de um lar provido de recursos suficientes para uma vida minimamente digna. Esses lares, que são a grande maioria, além de quase totalmente desassistidos pelo poder público, estão situados exatamente onde a violência campeia, impiedosa. Como todos estamos em aprendizado neste planeta de provas e expiações, é possível que, ao retornarmos à escola da vida na próxima vez, sejamos nós os convidados a experimentar a dura realidade da vida nessas condições, acordando às cinco horas da manhã para pegar um ônibus lotado para nos dirigirmos ao trabalho, retornando às vinte, depois de uma jornada estafante em uma atividade desprovida de sentido e de realização pessoal, e ainda tendo que ouvir, quando um de nós perde a vida em situação tão trágica, que “não existe bala perdida, existe bala achada”. Seria o caso de pensarmos nisso desde agora?

1Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V item 4. FEB, Brasília/DF.

2Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 806, 880. FEB, Brasília/DF.

3Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V item 9. FEB, Brasília/DF.

4Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 806, 880. FEB, Brasília/DF.

6Kardec, Allan. Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas, pag. 16. Trad. Júlio Abreu Filho, ed. Pensamento, São Paulo/SP. Disponível em https://kardecpedia.com/obra/9

7Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 441 da 1ª edição e 872 da 2ª edição.

Comentários

  1. Acertadamente, argui com notas e referências teóricas convincentes, com uma narrativa que faz repensar atitudes e modos de agir diante os inúmeros genocídios diários, praticados no Brasil.

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  2. Texto importante. Nos traz uma realidade contrastante entre as classes sociais, em nosso sistema capitalista, e o uso de representações advindas de muito antes da Idade Média. A "Lei das compensações", onde o mal feitor tem um destino trágico depois de sua morte ou nesta vida como resultado de vidas anteriores.
    Elias coloca com acuidade a falta de coerência entre a leitura, interpretação e atos daqueles que teimam a usar, tanto o Evangelho quanto a Doutrina Espírita de forma mecânica, pragmática. "Sofro porquê fiz outros sofrerem", "sou traído porquê traí muito". A Lei de Encarnação não usa uma balança, tal qual os Egípcios. Vai mais além na constituição de danos e reparações. Uma vida nova é antes de tudo uma oportunidade e não uma punição.
    Muitos teimam, ainda, em usar os entendimentos cristão de "pecado", só falta a espíritas a venda de indulgências, que nos dias de hoje bastaria ter um cartão de crédito em mãos.

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  3. Parabéns pelo artigo, meu amigo, extremamente pertinente e necessário!!!

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  4. Obrigado, amigos, pelos comentários. Abraço a todos.

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