A “TRANSFORMAÇÃO SOCIAL” NO LIVRO DOS ESPÍRITOS

 

Elias Inácio de Moraes

Questão central em O Livro dos Espíritos, a transformação social que o Espiritismo propõe é muitas vezes estranha às discussões que circulam no meio espírita. Centrados no preceito da reforma íntima, nem sempre atentamos para a proposta de mudança social contida na obra kardequiana, claramente expressa na expectativa de que a Terra se torne um “mundo de regeneração”.

A sequência adotada por Kardec na composição de O Livro dos Espíritos é clara: ele começa por procurar compreender Deus, analisa a nossa realidade enquanto espíritos imortais e o intercâmbio permanente com o mundo espiritual. Discute as “leis morais” como uma espécie de código de ética que serve de base para um modo superior de convivência, que ele chama de “civilização completa”. Ao descortinar a realidade espiritual o Espiritismo “matou o materialismo”, ou seja, a razão de qualquer apego aos interesses materiais, inaugurando uma Nova Era em que a prioridade são os valores e as conquistas do espírito em aprendizado na Terra. Uma “transformação social” estaria em curso, capitaneada pelos “espíritos superiores”.

Algo parecido já havia ocorrido antes, há dois mil anos, quando os seguidores de Jesus, entre indignados com a sua crucificação injuriosa e esperançosos quanto à edificação do Reino de Deus, constituíram o primeiro experimento social do mundo pautado nos seus ensinamentos: a Casa do Caminho. Estruturada em torno do princípio da solidariedade, pedia de cada um segundo as suas possibilidades de modo a garantir a todos segundo as suas necessidades.

Conforme a narrativa atribuída a Lucas, aqueles que se achavam convencidos das novas ideias apresentadas por Jesus se reuniam e colocavam os seus bens sob a forma de um patrimônio comum. Vendiam suas propriedades e bens e constituíam uma espécie de condomínio onde todos receberiam o de que necessitavam, não mais segundo os valores da meritocracia do mundo, mas “segundo as necessidades de cada um”. Em clima de espiritualidade, “partiam o pão pelas casas tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração”.1

Esse sonho de um mundo mais espiritual, onde a ninguém faltasse o necessário, atravessou os milênios. Não apenas para Kardec, mas para muitos dos pensadores do seu tempo, aquela segunda metade do século XIX apontava para grandes transformações sociais. Ante o enorme salto tecnológico em curso devido à revolução industrial, com locomotivas cortando toda a Europa e facilitando as comunicações e a distribuição dos recursos do progresso, com o primeiro cabo telegráfico submarino conectando Londres e Paris, alguns entendiam que o mundo estava à beira de uma nova ordem social. Nas palavras de Kardec, uma “civilização completa”, que seria caracterizada não pelo seu desenvolvimento tecnológico ou pelo seu fulgor econômico, mas pelo seu “desenvolvimento moral”.

Até então a humanidade era constituída de “povos esclarecidos, que hão percorrido a primeira fase da civilização”. O desafio se constituía, então, em transformá-los em povos “civilizados”, em uma “civilização moral”. Não bastava ter “feito grandes descobertas e obtido maravilhosas invenções” ou vestir-se com esmero; era preciso agora banir da sociedade “os vícios que a desonram” de tal modo que todos passassem a viver “como irmãos, praticando a caridade cristã.”

Nessa “civilização completa” não mais predominariam o egoísmo, a cobiça e o orgulho; prevaleceriam hábitos “mais intelectuais e morais do que materiais”. O que se buscaria era criar meios para que a inteligência pudesse se desenvolver com maior liberdade em meio a uma sociedade mais humana, mais fraterna. Enfim, uma sociedade

...onde haja mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas”; onde menos enraizados se mostrem os preconceitos de casta e de nascimento, por isso que tais preconceitos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; onde as leis nenhum privilégio consagrem e sejam as mesmas, assim para o último como para o primeiro; onde com menos parcialidade se exerça a justiça; onde o fraco encontre sempre amparo contra o forte; onde a vida do homem, suas crenças e opiniões sejam melhormente respeitadas; onde exista menor número de desgraçados; enfim, onde todo homem de boa vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário.2

Na perspectiva de O Livro dos Espíritos, não se trata de se estabelecer uma sociedade perfeita – o que seria uma característica dos “mundos felizes” – mas uma sociedade onde a maioria das pessoas se empenhe em criar condições para o progresso comum, os “mais adiantados” auxiliando no progresso dos demais. Para isso torna-se necessário combater o egoísmo, a verdadeira chaga da sociedade.

Mas não se trata de combatê-lo apenas em si mesmo, mas também nas estruturas sociais, porquanto ele permeia toda a vida em sociedade. No atual modelo de sociedade baseado na competição, no interesse pessoal, no desejo de obter vantagens econômicas, na acumulação de riquezas materiais, o egoísmo se alastra como um “verme roedor” e todos são mais ou menos suas vítimas.

Cumpre, pois, combatê-lo, como se combate uma enfermidade epidêmica. Para isso, deve-se proceder como procedem os médicos: ir à origem do mal. Procurem-se em todas as partes do organismo social, da família aos povos, da choupana ao palácio, todas as causas, todas as influências que, ostensiva ou ocultamente, excitam, alimentam e desenvolvem o sentimento do egoísmo. Conhecidas as causas, o remédio se apresentará por si mesmo. Só restará então destruí-las, senão totalmente, de uma só vez, ao menos parcialmente, e o veneno pouco a pouco será eliminado. Poderá ser longa a cura, porque numerosas são as causas, mas não é impossível.3

Na doutrina que Kardec apresenta o progresso é uma “força viva, cuja ação pode ser retardada, mas não anulada”. A sociedade se estabelece através de sistemas sociais e políticos que se traduzem sob a forma de leis, que até então tem sido “feitas pelos mais fortes” visando favorecer os seus próprios interesses.4 Quando estas se mostram “más” ou simplesmente incompatíveis com as novas necessidades dos seres humanos, ele, o progresso

...as despedaça, juntamente com os que se esforcem por mantê-las. Assim será, até que o homem tenha posto suas leis em concordância com a justiça divina, que quer que todos participem do bem e não a vigência de leis feitas pelo forte em detrimento do fraco.5

Mas para que essa transformação social aconteça é preciso investir também em educação, mas uma educação humanizada e humanizadora, voltada para os valores do espírito, e não para uma simples formação técnica, destinada a preparar mão de obra para atender aos interesses do mercado. Uma educação em profundidade, que seja transformadora dos hábitos, promotora de hábitos de ordem e de previdência para consigo mesmo e para com os demais, porquanto, “a desordem e a imprevidência são duas chagas que só uma educação bem entendida pode curar. Esse o ponto de partida, o elemento real do bem-estar, o penhor da segurança de todos”.

Não se trata de esperar que todos alcancem esse estado de consciência para que essas mudanças sociais sejam implementadas. A humanidade é um ente coletivo, e “progride por meio dos indivíduos que pouco a pouco se melhoram e se instruem. Quando estes preponderam pelo número” – ou seja, constituem maioria – “eles tomam a dianteira e arrastam os outros” mediante uma força que termina por fazer-se irresistível. Os que resistem às mudanças “assemelham-se a pequeninas pedras que, colocadas debaixo da roda de uma grande viatura, não a impedem de avançar”.6

Ao final, na conclusão de O Livro dos Espíritos, Kardec ressalta que “por meio do Espiritismo a humanidade tem que entrar numa nova fase, a do progresso moral que lhe é consequência inevitável”. E aqui ele não se refere a uma moral individual, mas a uma moral coletiva, que se traduz em sistemas sociais e econômicos, em aparatos legislativos que sejam estabelecidos em proveito de todos, inclusive das minorias. Para o estabelecimento dessa nova sociedade a referência é a “lei de Deus”, cuja maior demonstração está contida nas lições do Evangelho. Estes os princípios que deverão “servir de base às leis humanas”, de modo a proporcionar a todos “segurança nas relações sociais, segurança que somente no progresso moral lhe será dado achar.”7

Nesse “reinado do bem que os espíritos estão incumbidos de preparar”, todas as “instituições sociais” deverão estar estruturadas segundo “o princípio da caridade e da fraternidade”, de modo que todos os seres humanos possam experimentar “a influência moralizadora do exemplo e do contato”. Essa grande transformação representará o “sexto e último período” de influência do Espiritismo sobre a sociedade, o período da “regeneração social”, que, no seu entendimento, abriria a era do século XX.

Embora esse sonho por um mundo melhor não se tenha concretizado no prazo previsto, ele representa o que se esperava de uma nova geração constituída de pessoas “imbuídas das ideias novas” trazidas pelo Espiritismo. Retomando a inspiração que motivou os primeiros seguidores de Jesus, compete a essas pessoas (e nós junto, atualmente) preparar “o caminho que há de inaugurar o triunfo definitivo da união, da paz e da fraternidade entre os homens” promovendo as transformações sociais necessárias para que se estabeleça na Terra uma sociedade mais humanizada, mais colaborativa, mais solidária, materialização do sonho kardequiano de um “mundo de regeneração”.8

1Bíblia de Jerusalém. Atos dos Apóstolos, cap. 2 v.42-46. Ed. Paulus, São Paulo/SP.

2Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 793. FEB, Brasília/DF.

3Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 917. FEB, Brasília/DF.

4Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 795. FEB, Brasília/DF.

5Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 781-a. FEB, Brasília/DF.

6Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 685-a, 782 e 789. FEB, Brasília/DF.

7Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Conclusão, itens v e seguintes. FEB, Brasília/DF.

8Kardec, Allan. Revista Espírita, dez/1863. FEB, Brasília/DF.

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