Por uma nova teoria racial espírita

 


Elias Inácio de Moraes

A questão racial tem sido o calcanhar de aquiles no conjunto da ideia espírita. Concebida por Allan Kardec com base nos conhecimentos científicos e na visão de mundo da Europa do século XIX, a teoria da “raça adâmica” tem como pressupostos a supremacia racial branca e a crença de que os povos negros da África e os originários das Américas seriam “raças primitivas”; que os chineses e indianos seriam povos “atrasados”; e que deveriam, todos eles, serem “aculturados”, ou seja, serem “integrados” à cultura europeia, erguida à condição de padrão mundial de civilidade.1

Sabe-se hoje que essa visão de mundo foi elaborada pelos próprios europeus no século XVI para justificar a colonização dos demais continentes e a exploração das suas riquezas, a pretexto de levar-lhes a civilização e o progresso, sob as bênçãos da religião cristã.2 Assim, é compreensível que os textos kardequianos apresentem essa perspectiva como pano de fundo, por mais que Kardec defendesse uma igualdade de direitos entre todos os seres humanos e a solidariedade como base das relações sociais. Mesmo as respostas dos espíritos, que também eram espíritos daquele tempo e daquela cultura, estão permeadas por essa perspectiva. O mesmo acontece com quase toda a literatura, mediúnica ou autoral, que foi produzida mais tarde no Brasil.3

Ocorre que os estudos antropológicos evoluíram, experimentos sociais foram realizados para testarem essa hipótese e, como bem pontua o escritor espírita Alexandre Cardia Machado,

Todas as experiências feitas até hoje com seres humanos de diversas origens jamais conseguiram demonstrar a superioridade racial de qualquer tipo sobre os outros. Qualquer ser humano, dispondo de condições semelhantes de alimentação e educação, apresentará resultados médios semelhantes em quaisquer testes psicológicos.4

Também o Prof. Sílvio Almeida, um dos mais importantes pensadores brasileiros da atualidade, alerta que toda distinção apontada entre seres humanos e sociedades tem se mostrado tão somente um meio para justificar a subjugação material ou simbólica do outro ou a sua eliminação.5

Quando Kardec afirmou que se um dia a ciência demonstrasse que o Espiritismo estava equivocado em relação a um determinado ponto, que mudaria o Espiritismo, ele não estava fazendo uma afirmação vazia; ele realmente atribuía à ciência uma competência para estabelecer enunciados de verdade, ainda que lhe reconhecesse as limitações. Ele sabia que, diferente da religião, que se cristaliza em torno de dogmas, a ciência corrige seus equívocos com o tempo e, ao estabelecer um novo consenso, as diversas possibilidades teóricas já terão sido suficientemente exploradas e, a priori, não restarão motivos consistentes para dúvidas, pelo menos até que surja uma nova teoria.

Mesmo assim o meio espírita tem se mostrado resistente a acompanhar os avanços da ciência. Na literatura espírita – e isto é repetido nos centros espíritas – os povos indígenas continuam aparecendo como seres inferiores, “primitivos”, “ignorantes”, “selvagens”, bem em linha com a visão preconceituosa dos colonizadores europeus. Nesses dias de forte embate ideológico houve até mesmo quem aprovasse a invasão do pouco que ainda resta dos territórios indígenas a pretexto de “integrá-los” à nossa cultura, em um inaceitável processo de subjugação cultural e de expropriação das terras onde eles vivem há milhares de anos, cerrando os olhos às ações de extermínio que são praticadas contra aquelas sociedades desde a invasão das Américas no séc XVI.6

O mesmo ocorre em relação às pessoas negras e a tudo o que provém das tradições africanas, e que se materializa, por exemplo, na inferiorização que se observa no meio espírita em relação às suas religiões, como se dá com a Umbanda e o Candomblé.7 Não sem razão o movimento negro da Bahia solicitou em 2006, junto ao Ministério Público, a proibição da circulação dos livros de Allan Kardec, sob a acusação de conterem 106 trechos apontados como de conteúdo racista por reproduzirem, sem nenhuma ressalva no rodapé, as teorias raciais do século XIX, em que os povos não europeus são tratados como “inferiores”, sem levar em conta a sua dignidade e os seus saberes.8

Pesquisas antropológicas do século XX constataram que, em vez de povos “atrasados”, “ignorantes” ou selvagens, os povos originários possuem uma rica sabedoria ancestral e tecnologias altamente eficientes de agricultura, irrigação e manejo da biodiversidade. Há pesquisadores que defendem que esses povos possuem uma sabedoria superior no que se refere à relação dos seres humanos entre si e com a “Mãe Terra”, na qual a reciprocidade e o cuidado com o próximo desempenham um papel central, numa perspectiva contrária ao individualismo capitalista vigente.9

Essas e outras ocorrências nos obrigam atualmente a repensar a teoria racial espírita vigente, em particular a teoria da “raça adâmica”, e a enfrentar os desafios que daí decorrem, entre eles o de propor uma nova teoria da evolução da espécie humana, uma vez que, do ponto de vista científico, não faz mais sentido avaliar essa questão a partir da perspectiva racial do século XIX.

Nesse sentido, é muito bem-vinda a contribuição de Alexandre Cardia Machado em seu livro Uma Breve História do Espírito, que estabelece um paralelo entre a teoria da evolução humana, contida na obra kardequiana, e o que é entendido atualmente no meio científico, levando em conta os estudos da Astronomia, da Antropologia e da Arqueologia.10

O homem moderno pertence à espécie homo sapiens e à subespécie homo sapiens sapiens. Os resultados do Projeto Genoma deixaram claro que somos uma subespécie única; não existem diversas “raças humanas”, como se pensava. Outras subespécies identificadas foram exterminadas há milhares de anos, ao que tudo indica, pela nossa.11 Em razão disso a palavra “raça” tornou-se desprovida do seu sentido biológico, e é usada atualmente apenas pelo seu significado social, sobretudo pelos preconceitos que abriga.12

Uma reflexão inovadora proposta por Alexandre Cardia é quanto à necessidade de se separar a evolução do espírito da evolução biológica do ser humano encarnado. A divisão corpo e alma, ou espírito e matéria, é uma perspectiva herdada da filosofia grega, e não representa a única forma de se pensar o ser humano. Uma visão integrada, que pense o ser humano como unidade, pode ser deduzida de outras perspectivas culturais, com as quais o Espiritismo pode e deve dialogar na atualidade. Essa perspectiva nos permite associar a evolução do espírito à evolução da própria vida na Terra, passando pelos primeiros hominídeos e culminando no surgimento do ser humano atual.

Sob essa perspectiva, torna-se desnecessário recorrer à encarnação em diferentes mundos para explicar a evolução espiritual, o que pode ser parte do imaginário da época, encantado com as descobertas da Astronomia. Os imaginados “saltos evolutivos” observados em determinadas épocas, em vez de explicados pela vinda de espíritos degredados, conforme a tese religiosa dos “anjos decaídos”, adotada por Kardec, se explicam melhor pelo desenvolvimento de novas tecnologias, como a modelagem de objetos de ferro e bronze, entre 9.000 e 4.000 a.C., que proporcionaram melhorias significativas no cultivo da terra e o surgimento das cidades-estado. As diferentes cores de pele, por exemplo, são apenas o resultado de processos adaptativos vividos pelo gênero homo nas suas migrações entre diferentes condições climáticas, sem nenhum significado evolutivo.13

Se houve espécies “primitivas”, estas foram, necessariamente, as que antecederam o homo sapiens, como o homo neanderthalensis e o homo denisovensis.14 Os atuais seres humanos são todos espíritos no mesmo “estágio evolutivo”, e as diferenças em termos de tecnologia, mais do que resultado de uma suposta evolução espiritual, são consequência das diferentes maneiras pelas quais os diferentes grupos viabilizaram as soluções para os desafios da sua sobrevivência, alguns mais orientados por valores espirituais, coletivistas, como os asiáticos e os indianos, ou como as diversas sociedades originárias das Américas e da África, outros por valores mais materiais, individualistas, como as sociedades que emergiram na Europa, onde surgiu e floresceu o capitalismo.

Ao longo dos milênios verificou-se uma intensa troca de tecnologias, do que resultou o complexo mosaico existente na atualidade. Os chineses inventaram a pólvora e, mais tarde, a cartografia, hoje usadas em todo o planeta. Há evidências de cálculos matemáticos e de uma farmacologia bastante sofisticada entre povos africanos por volta de 20.000 a.C. A escrita surgiu entre os sumérios, por volta de 3.000 a.C., quando já existiam consistentes estudos de astronomia entre os povos Maias, cujas cidades apresentavam no século XVI uma população superior à de Londres, que à época tinha 250 mil habitantes, conforme se deduz dos relatos dos navegadores.15

A ideia de uma superioridade europeia é, portanto, uma construção dos próprios europeus a partir de critérios por eles escolhidos tendo em vista classificar como inferiores aqueles que lhes eram estranhos, e essa lógica foi introjetada nos povos por eles colonizados, razão pela qual está presente não apenas nos textos kardequianos, mas até mesmo na literatura espírita mais recente.

É evidente que a comparação direta entre um europeu com um índio semicivilizado no interior da Amazônia, dentro de critérios desenvolvidos por europeus, demonstrará uma superioridade muito grande a favor do primeiro. Agora, se invertermos a situação e deixarmos uma pessoa comum, civilizada, sem treinamento para sobrevivência na selva, em um ponto da selva amazônica, muito provavelmente veremos que suas chances de sobrevivência seriam muito pequenas.16

Com o desenvolvimento da navegação surgiu a possibilidade de “ampliar os territórios” – invasão das terras além-mar – para a extração de riquezas, mas, para isso, era preciso obter mão de obra a baixo custo e que pudesse ser alocada naquelas regiões distantes. Os camponeses europeus, que recebiam alguma proteção por parte da Igreja, não podiam ser a isso obrigados. Era preciso, portanto, desumanizar os povos não europeus para que fosse justificável explorá-los e escravizá-los visando atender aos interesses econômicos daquele contexto sócio-histórico.17

Alexandre Cardia observa que o racismo que hoje conhecemos “é uma criação recente, surgida com os grandes descobrimentos quando, por razões econômicas, iniciou-se a escravização em massa de negros e indígenas, baseados na tese logo desenvolvida que estes seres humanos formavam uma sub-raça.”18 O restante da história é conhecido: quinhentos anos de invasão sistemática e eliminação gradativa das populações locais, com a concomitante exploração das riquezas existentes nos territórios que lhes pertenciam. Junto a isso, a exploração da força de trabalho dos povos africanos, em um processo que prosseguiu mesmo após o fim da escravidão, agora sob outros métodos.

A conveniência da continuidade dessa exploração faz que essas crenças se mantenham, e o meio espírita não fica imune a esse processo. Ao contrário, nosso imaginário está mais identificado com a cultura e com os valores dos invasores europeus do que com a dos povos originários ou dos escravizados. O Prof. Sílvio Almeida observa que, enraizado nas estruturas sociais, esse pensamento racializado continua estabelecendo “a linha divisória entre superiores e inferiores, entre bons e maus, entre os grupos que merecem viver e os que merecem morrer”, no sentido social, político e até mesmo físico, por bala perdida ou pela altíssima letalidade policial nos bairros de periferia.19 Ou que devem ser entregues à sanha exploradora dos garimpeiros e do agronegócio para que morram, como tem ocorrido com os povos indígenas.

É importante que palestrantes e estudiosos espíritas se debrucem sobre essas questões propondo estudos e debates em congressos e seminários e estabelecendo novas proposições teóricas, como propunha Kardec. Que esses temas sejam trazidos à discussão dentro das casas espíritas, de modo a reformularmos o pensamento espírita vigente no que tange à questão racial e evolucionista, com base nos conhecimentos atuais que a ciência nos apresenta, e nas implicações sociais disso decorrentes.

Se o Espiritismo representa, como muito bem definiu Kardec, uma “aliança da ciência e da religião”, a ciência tem feito a sua parte, que é avançar nas pesquisas procurando elucidar os enigmas que sempre se renovam com relação à jornada humana na Terra. Ao Espiritismo cabe agora ajustar o seu olhar de modo a nos percebermos, enquanto sociedade, para além dessa jornada simplesmente humana, em uma jornada espiritual que perpassa pelas diferentes culturas e etnias, pela rica variedade de cores de pele e de hábitos alimentares, pela diversidade das tecnologias e das práticas de cunho religioso espiritual, nos percebendo como irmãos uns dos outros, os mais fortes abraçando a defesa dos fragilizados, garantindo a todos e a nós mesmos melhores condições de aprendizado e de evolução espiritual ao longo dessa rica experiência na vida terrena.

É esse passo que nos possibilitará elaborar uma nova consciência, capaz de nos impulsionar e nos orientar na nossa atuação, em parceria com os demais movimentos de natureza social e política do mundo, visando a construção de uma sociedade melhor, de um planeta ambiental e socialmente sustentável, materialização da ideia do “reino de Deus” a que se referia Jesus, ou do mundo regenerado e feliz da proposta kardequiana.

1Vide o cap. XI de A Gênese, em especial os itens 38 em diante. Vide também um amplo estudo a respeito no cap. 17 do livro Contextualizando Kardec: do séc. XIX ao XXI de Elias Moraes, ed. Aephus, Goiânia/GO. 2020.

2Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural, pag. 24. Ed. Pólen, São Paulo/SP, 2019.

3Em Sabedoria de Preto Velho, de Robson Pinheiro, que é de 2010, os autores responsabilizam os povos africanos pela sua escravização, por terem “estacionado no tempo” e se recursado “a seguir o progresso da vida”. Em livros mais antigos, como Brasil Coração do Mundo Pátria do Evangelho, de Chico Xavier, os indígenas americanos e os povos africanos escravizados são apresentados como inferiores ao branco europeu. Esse tipo de referência é recorrente na literatura espírita, mediúnica ou autoral.

4Machado, Alexandre Cardia. Uma Breve História do Espírito, pag. 67.

5Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural, pag. 22. Ed. Pólen, São Paulo/SP, 2019.

6Vide no minuto 57 do vídeo disponível no link: https://www.youtube.com/live/ZsVI6gpxUsQ?feature=share

8O livro Brasil Coração do Mundo Pátria do Evangelho tem sido fortemente questionado em razão da sua perspectiva colonialista e preconceituosa em relação aos povos originários e aos negros escravizados.

9Ros, Alejandra A. Estrategias de resistencia y negociación de los bienes culturales em el chamanismo wixiritari: procesos de articulación. In Vaciaciones y apropriaciones latinoamericanas del new age, pag.96. La Casa Chata, México, 2013.

10Machado, Alexandre C. Uma Breve História do Espírito. Ed. ICKS, Santos/SP, 2022.

11Harari, Yuval N. Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, trad. Janaína Marcoantônio, pag. 23. Ed. L&PM,

12Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural, pag. 46. Ed. Pólen, São Paulo/SP, 2019.

13Machado, Alexandre C. Uma Breve História do Espírito, pag. 68. Ed. ICKS, Santos/SP, 2022.

14Harari, Yuval N. Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, trad. Janaína Marcoantônio, pag. 23. Ed. L&PM,

15Machado, Alexandre C. Uma Breve História do Espírito, pag. 65-67. Ed. ICKS, Santos/SP, 2022.

16Machado, Alexandre C. Uma Breve História do Espírito, pag. 64. Ed. ICKS, Santos/SP, 2022.

17Harari, Yuval N. Sapiens: uma breve história da humanidade, trad. Janaína Marcoantônio, pag. 147 e seguintes. Ed. L&PM,

18Machado, Alexandre C. Uma Breve História do Espírito, pag. 64. Ed. ICKS, Santos/SP, 2022.

19Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural, pag. 115. Ed. Pólen, São Paulo/SP, 2019.

Comentários

  1. Artigos como este nos instiga a pesquisa, nos convida a reflexão, e nos mostra que estamos em constante mutação. Precisamos estar abertos, receptivos as novas realidades apresentadas pela ciência, sem deixarmos de levar em consideração, os diálogos que possam ser constituídos com o Espiritismo.
    Gratidão Elias, e sigamos em frente!!!

    ResponderExcluir
  2. Este é o "Espírito do Espiritismo". Científico, argumentativo, dialético, progressista e não dogmático e estacionário conservadorista. Contextualiza Kardec no seu tempo e nas limitações de sua época social, dignificando - o por buscar o que ele indicou - coerência com os avanços das ciências, inclusive as Sociais e Humanas. Um primor de artigo. Obrigado Elias.

    ResponderExcluir

Postar um comentário