"A CARIDADE TAMBÉM PROGRIDE"

 

Elias Inácio de Moraes

Lembro-me do Wolney, ex-presidente da FEEGO, defendendo o lema que ele adotou como causa pessoal ao final da sua vida, e que dá o título a este artigo: “a caridade também progride”. Wolney da Costa Martins era um visionário, presidente da FEEGO por duas vezes, e vice-presidente quando o estatuto o obrigava a deixar o cargo, ocasião em que assumia a presidência o amigo Cássio Ribeiro Ramos, que defendia um lema parecido: “assistir promovendo”. Juntos, os dois eram carne e unha, e se revezaram no cargo por mais ou menos uma década.

Dentre os vaticínios que Wolney fazia, um deles era que "dentro de trinta anos já não haveria mais necessidade de caridade material". Ele dizia isso na segunda metade da década de oitenta, quando o Brasil vivia uma esperança de novos tempos, superada a ditadura militar, lutando pela promulgação de uma nova constituição federal, o que culminou na chamada “constituição cidadã”, de 1988.

Segundo sua antevisão, com a consolidação dos programas de bem-estar social, todas as famílias pobres estariam protegidas por programas de renda mínima, o sistema público de saúde estaria universalizado e nós espíritas poderíamos nos concentrar na caridade mais importante, que é a caridade moral. Seria o "mundo de regeneração" se estabelecendo na Terra. As casas espíritas não teriam mais que distribuir cestas de mantimentos e roupas usadas, por absoluta desnecessidade, e poderiam se transformar em pronto-socorros espirituais, um serviço que o Estado não tem e jamais teria condições de prover na sua condição de estado laico.

Foi nesse movimento que ele e Cássio convidaram para compor a diretoria da FEEGO a nossa saudosa Margarida Horbylon, dirigente de uma instituição elevada a modelo internacional no "trabalho com meninos e meninas de rua", situada na cidade de Ipameri, e que defendia um lema que completava o deles. Também ela insistia em que era urgente "rever as nossas práticas em nome da caridade". Fazia-se necessário superar o assistencialismo então vigente, que apenas alimentava a situação de pobreza e de miséria, em vez de combater-lhe as causas. E, dentre essas causas, ela destacava a necessidade de uma educação que fosse formadora do espírito.

Neste ponto específico ela se ancorava em Kardec, que comentava, em uma resposta dos espíritos, sobre a necessidade da educação como fator de transformação social: "não nos referimos, porém, à educação moral pelos livros, e sim à que consiste na arte de formar os caracteres, à que incute hábitos, porquanto, a educação é o conjunto dos hábitos adquiridos."1

O tempo passou e, de fato, as profecias do Wolney se concretizaram, ao menos parcialmente. Implementaram-se programas de renda mínima, consolidou-se o SUS como uma das referências mundiais em saúde pública, houve uma melhoria generalizada nas condições de vida das famílias mais pobres. As famílias que buscavam cestas de mantimentos nas casas espíritas desapareceram. Em seu lugar, surgiram os doentes da alma, os dependentes químicos, que pegavam as cestas de alimentos para trocarem pelo dinheiro que lhes possibilitava atender ao seu vício. Era um novo público requerendo uma nova concepção de caridade e de assistência, ou mesmo promoção social.

Mas aí surgiu o problema; em vez de “progredir”, como dizia o Wolney, no entendimento da palavra caridade, muitos colaboradores valorosos do meio espírita passaram a investir contra às políticas públicas que, a seu ver, "estavam criando um bando de preguiçosos". Se Margarida dizia para “não apenas dar o peixe, mas ensinar a pescar”, algumas novas lideranças espíritas, que não entenderam a ideia, retomaram a proposta antiga e descaridosa de “não dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Fazendo eco a políticas conservadoras que eram contrárias às políticas de bem-estar social que haviam sido implementadas, houve até mesmo quem acreditasse, sem nenhuma fundamentação na doutrina espírita, que “se alguém estava passando pela situação de miséria é porque havia feito por merecer”.

Em vez do salto adiante proposto pelo trio constituído por Wolney, Cássio e Margarida, o que vimos foi um retrocesso. Uma parte significativa do movimento espírita, atraída por discursos ideológicos absolutamente distanciados da ideia de amor ao próximo e do princípio de solidariedade apregoado pelo Evangelho, passou a apoiar o desmonte do pouco que havia sido conseguido em termos de Estado de bem-estar social.

Uma leitura do cenário atual sugere que estamos novamente diante da urgência de "rever as nossas práticas em nome da caridade". Se, como dizia o Wolney, "a caridade também progride", estamos novamente diante do desafio de encontrar novas maneiras de fazer face aos problemas sociais que afligem, sobretudo, as classes despossuídas de recursos mínimos. Mesmo com o retorno dos programas de renda mínima e da retomada de investimentos nos serviços de saúde pública, há muito ainda a ser feito de modo a garantir uma educação de qualidade para os filhos dessas famílias.

Mas não se trata de uma educação resumida em formar mão de obra barata para alimentar o consumismo desenfreado, que depreda os recursos naturais, na ganância de acumular fortunas astronômicas nas mãos de poucas pessoas, que a ninguém serve e a todos explora, e que tem colocado em xeque a própria sobrevivência da espécie humana na Terra. O atual modelo de produção e consumo, além de aprofundar o abismo da desigualdade social, tem promovido uma degradação ambiental de tal ordem que até o clima do planeta está sob ameaça.

A educação que o Espiritismo propõe é a educação orientada para o desenvolvimento dos valores do espírito, para o desenvolvimento do gosto pelo saber e pelas artes, para o desenvolvimento da sensibilidade humana, para uma visão crítica de sociedade, comprometida com a construção de um mundo melhor para todos, voltada para a formação de hábitos de ordem e previdência, que possibilitem a todos os seres humanos atravessar com dignidade os maus dias, inevitáveis ainda, no quadro de aprendizado em que vive atualmente a sociedade terrena.

O que o momento atual cobra de nós espíritas é uma revisão não apenas do nosso conceito de caridade, como também do nosso entendimento a respeito do processo de "transformação social" para o qual, segundo o que propunham Kardec e os espíritos, o Espiritismo deveria contribuir. Para ele, não seria o Espiritismo que promoveria a transformação social. Ele, por si só, não tinha poder para isso, mas ele seria um forte coadjuvante. Descortinando à humanidade uma perspectiva espiritual de vida, ele contribuiria para construir uma nova mentalidade, não mais orientada para o materialismo existencial, que afeta até mesmo as religiões – espiritualistas na teoria e materialistas na prática – mas orientada para valores espirituais, como a solidariedade e o compromisso com o bem-estar de todos os seres humanos.

É a um entendimento ampliado da palavra caridade que o Espiritismo novamente nos convida. Sabemos hoje que o "mundo de regeneração" não será estabelecido automaticamente, por uma espécie de Vontade Divina, como muitos chegaram a esperar ao longo dos anos que se passaram. A história recente já nos mostrou que o progresso se constitui de idas e vindas, conforme as nossas escolhas humanas, podendo retroceder, se fizermos escolhas que não condizem com o objetivo maior a ser atingido.

Mas isso não significa que a caridade material deixa de ser necessária, e que, de agora em diante, bastará praticar a caridade moral. Não. Haverá situações, como bem lembrou Jesus na parábola do bom samaritano, em que será inadiável socorrer a pessoa caída à beira do caminho, mas sem nos esquecermos do seu convite permanente para contribuirmos na edificação do "Reino dos Céus".

Mas é preciso compreender que, mais desafiadora que a caridade material, muitas vezes confundida com a distribuição de uma pequena parte dos recursos acumulados em nosso favor, é a caridade moral, que exige dar de nós mesmos, do nosso tempo, da nossa atenção, do nosso cuidado e até mesmo do nosso afeto. Para aliviar a fome de milhões de pessoas, basta as vezes o dispositivo de uma política pública, que será demandada e apoiada por nós, como uma forma de “caridade no atacado”. Do mesmo modo em relação aos programas de moradia orientados para famílias de baixa renda, que aliviam o drama de milhões de famílias, drama esse oculto sob o nome dissimulado de "déficit habitacional".

Atender às necessidades materiais é fácil, basta apoiar governos e programas realmente comprometidos com o bem-estar da coletividade, o que é muito mais efetivo que a caridade no varejo praticada portas a dentro das nossas instituições espíritas, ou pela boa-vontade de corações amorosos que não se permitem ser indiferentes à necessidade alheia.

Entretanto, para aliviar as dores do espírito, somente um coração que se abra verdadeiramente ao outro, desprovido de preconceitos e sem fazer exigências, dispondo-se a caminhar, não mil passos, mas dois mil, ajudando o outro a superar bloqueios e atavismos, na direção de uma nova consciência espiritual, que será a base para a condição de felicidade relativa que a vida na Terra pode proporcionar a todos e cada um de nós.

1Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 685-a. Trad. Guillon Ribeiro, FEB, Rio de Janeiro/RJ.

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