“Mundo de regeneração”: uma utopia kardequiana?

 

Elias Inácio de Moraes

A esperança de um mundo melhor, onde as pessoas possam ser felizes, faz parte da nossa tradição judaico-cristã desde a antiguidade, com a promessa da “terra prometida”, que “mana leite e mel”, e que estava destinada pelo deus Yahweh ao seu “povo eleito”. Essa mesma promessa se renova na voz dos profetas, após a destruição de Jerusalém, com a promessa de uma “Jerusalém restaurada”, e, mais tarde, com a proposta de Jesus de um “Reino dos Céus” aqui mesmo, na Terra.

Essa esperança se materializou mais tarde no sonho igualitário de João Crisóstomo, depois na Cidade de Deus de Santo Agostinho, na Cidade do Sol de Tommaso Campanella, na Utopia de Thomas Mórus, na Nova Cristandade de Saint Simon, nos falanstérios de Fourier e, por que não, até mesmo no sonho comunal de pensadores materialistas e ateus como Marx e Engels.

Haveria alguma correlação entre essa esperança histórica e a ideia de “mundo de regeneração” inserida por Allan Kardec no corpo doutrinário do Espiritismo?

Não resta dúvida de que uma dose razoável de evolucionismo social foi apropriada por Allan Kardec como um dos princípios do Espiritismo. Não apenas os espíritos, mas também os mundos e suas sociedades, evoluem material e moralmente. Para efeitos didáticos, ele classificou os zilhões de planetas existentes no universo em cinco categorias: mundos primitivos, mundos de expiação e provas, mundos de regeneração, mundos ditosos e mundos celestes e divinos.1

Um dos resultados dessa perspectiva evolucionista é o entendimento de que o planeta Terra estaria vivendo uma fase de transição, que era atestada pelo progresso tecnológico que se observava nos principais países da Europa ao longo do século XIX, e que o movimento de colonização estendia, ainda que à custa de dominação, violência e mortes, a todos os continentes.

A fome e a miséria se espalhavam pelas principais cidades europeias em decorrência do acelerado processo de industrialização; o mundo parecia estar em convulsão. Nos idos de 1860, um clima de revolução pairava no ar, anunciando o fim da monarquia e da ditadura de Napoleão III, e o estabelecimento definitivo do tão sonhado sistema republicano.

O Iluminismo havia rompido com a fé cega, a filosofia e a ciência estabeleciam as bases para uma nova civilização baseada na tríade “igualdade, fraternidade e liberdade”. As mensagens mediúnicas daquela época retratavam esse clima de expectativa. Uma comunicação mediúnica dizia que “as coisas estão por um fio de aranha meio partido” e que a guerra abriria o caminho para as esperadas “transformações sociais”.2 Até uma pandemia de cólera aconteceu naquela época, o que também favorecia crer que as profecias da Bíblia estavam se cumprindo.3

Conforme artigo publicado na Revista Espírita de outubro de 1868, Kardec entendeu que a humanidade havia chegado “a um desses períodos de crescimento”, e que estaria, “plenamente, desde um século, no trabalho de transformação”. Essa era a explicação para a agitação que se observava em toda a sociedade, “como que movida por uma força invisível, até que retome o equilíbrio sobre novas bases”.4

Nos termos de uma das mensagens mediúnicas atribuídas ao espírito Agostinho de Hipona,

...este mundo esteve material e moralmente num estado inferior ao em que hoje se acha e se alçará sob esse duplo aspecto a um grau mais elevado. Ele há chegado a um dos seus períodos de transformação, em que, de orbe expiatório, mudar-se-á em planeta de regeneração, onde os homens serão ditosos, porque nele imperará a lei de Deus.5

Outras mensagens diziam que “os tempo são chegados” e que uma “terceira revelação” de Deus para a humanidade estaria preparando o mundo para uma “nova era”, uma nova fase no ciclo de evolução planetária. Uma “transformação social” elevaria a humanidade da condição de “mundo de expiação e provas” para a de “mundo de regeneração”.

Predita foi a transformação da Humanidade e vos avizinhais do momento em que se dará, momento cuja chegada apressam todos os homens que auxiliam o progresso. Essa transformação se verificará por meio da encarnação de Espíritos melhores, que constituirão na Terra uma geração nova.6

Ante aquele clima de expectativa social, o Espiritismo tinha a missão de preparar o mundo para que se estabelecesse “o Reino de Deus na Terra”. Ao descortinar a vida além da morte, as comunicações com o mundo espiritual e a reencarnação, o Espiritismo promoveria uma nova consciência, que seria uma alavanca propulsora das mudanças de que o mundo necessitava. Com uma visão mais espiritual da vida, as pessoas promoveriam mudanças na política, na religião, na legislação. Instituições mais sólidas e mais justas estabeleceriam na Terra o reinado da fraternidade e da solidariedade, criando as bases para uma vida mais espiritual, um mundo de paz e de solidariedade, um “mundo de regeneração”.7

É interessante observar que, partindo de uma sociedade fortemente católica, como era a França daquela época, e sob a influência de um cristianismo dominante em toda a Europa, há nessa perspectiva uma boa dose de crenças apocalípticas que marcam a tradição judaica desde os antigos profetas, bem como do milenarismo que caracterizou a história do cristianismo nas suas origens. Paulo já esperava a volta de Jesus ainda no seu tempo; mais tarde João teria previsto que isso ocorreria depois de mil anos. Essa esperança atravessou os séculos, retornando várias vezes ao longo dos dois milênios de história do cristianismo.8

Analisando a continuidade da história, Kardec morreu em 1869 e em 1870 explodiu a guerra da França contra a Prússia. A França foi derrotada, Napoleão III foi deposto, o governo se rendeu, mas os operários não aceitaram a derrota, e resistiram à ocupação de Paris. Assustada, a elite francesa fugiu deixando tudo para trás. Abandonados, os operários criaram comissões de fábrica, comitês de saúde, de educação, de moradia, uma nova forma de organização social, sem patrões, sem burocratas e sem estado. Surgiu a Comuna de Paris; retomando o ideário dos primeiros cristãos, cada um receberia segundo as suas necessidades e colaboraria com o esforço coletivo segundo as suas possibilidades.9

A reação da elite foragida foi brutal. Se até então haviam dado tudo por perdido, ao perceberem os operários no comando de suas ex-fábricas eles não admitiram o ultraje. Aliando-se ao exército prussiano eles aliciaram mercenários e libertaram milhares de soldados franceses que, agora sob o comando franco-prussiano, invadiram Paris promovendo um massacre. Fala-se em mais de 20.000 operários mortos e mais de 17.000 homens, mulheres e crianças fuzilados, o que colocou fim ao movimento.

De qualquer modo, foi uma transição. Estabeleceu-se um período de profundas mudanças em toda a Europa, velhas monarquias ruíram e estabeleceu-se em definitivo a república, abrindo os horizontes para uma época que foi chamada de “Belle Époque”. Era como se o “mundo de regeneração” estivesse, finalmente, sendo implantado na Terra, ou pelo menos na Europa.

Mas essa ilusão foi logo desfeita; em 1914 eclodiu a Primeira Guerra Mundial, um evento inimaginável para a época. O avanço tecnológico que, segundo se esperava, deveria promover melhores condições de vida para toda a humanidade, trouxe maior capacidade destrutiva para a guerra. Mais de 20 milhões de pessoas perderam a vida no conflito, sendo 10 milhões de soldados e em torno de 13 milhões de civis. Outros mais de 20 milhões ficaram feridos ou mutilados.

O mais grave é que, com o fim da guerra, o conflito não foi adequadamente solucionado, e o clima de ressentimento gestou as condições que, menos de vinte anos depois, deflagrariam a Segunda Guerra Mundial.

Em 1938, quando esse novo conflito era iminente, Chico Xavier psicografou, em coautoria com Emmanuel, o livro A Caminho da Luz. Criando uma narrativa toda espiritual para a epopeia humana na Terra, ele retoma como história o mito de Atlântida, afirma sua esperança de que os Estados Unidos da América seriam o condutor da paz no pós-guerra e, ao atualizar a esperança kardequiana de uma “transformação social”, atribui ao conflito armado a criação das condições para que, finalmente, se estabelecesse na Terra o tão esperado “mundo de regeneração”.

Só que, de novo, isso não aconteceu. Ao contrário, em vez de assumirem a liderança pela paz os EUA se consolidaram como a maior potência bélica do planeta, explodindo as duas primeiras primeiras bombas nucleares da história sobre população civil, como demonstração de força, em Hiroshima e Nagasaki. Nas décadas seguintes seus exércitos invadiram e arrasaram vários países, instalando centenas de bases militares em todo o mundo para garantir seus interesses comerciais.

As mensagens mediúnicas que foram sendo produzidas a partir de então já retratavam uma nova expectativa; a grande mudança aconteceria mais próximo da virada do milênio, no último quartil do século XX. Seria o “terceiro milênio” que marcaria na Terra a chegada do “mundo de regeneração”. Médiuns anunciaram a vinda de “espíritos de luz”, de planetas distantes, para promover na Terra a tão sonhada “transformação social”. As narrativas mediúnicas reafirmavam as previsão do Rei Luís de França em O Livro dos Espíritos, para quem “os Espíritos dos maus, que a morte vai ceifando dia a dia, e todos os que tentem deter a marcha das coisas serão daí excluídos”.10

Não resta dúvida quanto ao extraordinário progresso tecnológico observado no panorama social. O homem chegou à lua, enviou sondas para todo o sistema solar e colocou veículos de reconhecimento no planeta Marte; integrou o mundo com a Internet e desenvolveu os robôs e a Inteligência Artificial. Mas, quando se analisa o panorama social, é inevitável constatar que as mudanças não foram tão relevantes. Houve avanços no campo do Direito e uma melhora significativa nas condições de vida para muitos. A população mundial saltou de 1,2 para 8 bilhões, mas, com isso, aumentou também a quantidade de famintos, de miseráveis, de sem-teto, sem-terra, sem-trabalho, sem-direitos.

Nunca o abismo entre ricos e pobres foi tão profundo; 1% da população detém 50% de toda a riqueza acumulada no planeta, sob a proteção de 7% de burocratas, agentes públicos e gerentes, que detém mais 35%. Os outros 92% disputam entre si os míseros 15% restantes. Apesar de algum avanço nas leis, o preconceito social, racial e de gênero ainda persistem. Pessoas morrem todos os dias em terra e no mar tentando atravessar as fronteiras estabelecidas pelo egoísmo dos ricos. O consumismo, a ganância, o uso desenfreado dos recursos naturais estão empurrando o planeta na direção de um colapso ambiental. Nunca, também, a ameaça de uma guerra total foi tão presente.11

Essa sequência histórica sugere uma indagação: será que não estamos diante da necessidade de rever o nosso entendimento a respeito desse tão sonhado “mundo de regeneração”? A quê Kardec se referia ao adotar essa expressão? Ainda que ele tenha acreditado na possibilidade de uma transformação social mais próxima, não era uma mudança no panorama social o que ele esperava? Faz sentido continuar atualizando essa expectativa sob o impulso de uma fé religiosa sem uma reflexão consistente a esse respeito? Não foi ele quem propôs que, se algum dia a ciência demostrasse que o Espiritismo estivesse equivocado em algum ponto, que mudaria o Espiritismo?

Muitas das ideias que norteavam o pensamento daquela época, têm sido hoje colocadas em discussão, como os conceitos de civilização, evolução e progresso. O que se pensava a respeito desses três conceitos experimentou profundas mudanças ante as evidências hoje observadas. Toda aquela visão de mundo, constata-se hoje, era muito mais uma visão de mundo europeia, que sequer levava em conta as diversas cosmovisões da maior parte do planeta, com culturas milenares, como China, Índia, África e América, invadidas e saqueadas pelos europeus.

Uma análise que leve em conta essas outras culturas nos leva a constatar que nunca houve, não está havendo e nem haverá qualquer “transição planetária” para um imaginado “mundo de regeneração”, a menos que ele seja entendido como o resultado das lutas políticas, dos avanços e recuos que se estabelecem no mundo visando a superação do egoísmo e da exploração do homem pelo homem. Aquela parece ter sido apenas a maneira pela qual Kardec traduziu o anseio coletivo da sua época por uma sociedade melhor, mais justa, mais igualitária, mais feliz. Inserido em uma sociedade com forte expectativa milenarista, ele acreditou, como tantos pensadores de sua época, que estaríamos alcançando um estado superior de “civilização”, onde o egoísmo, a cobiça e o orgulho não teriam mais espaço; “onde o fraco encontre sempre amparo contra o forte; onde a vida do homem, suas crenças e opiniões sejam respeitadas (…), onde todo ser humano esteja certo de lhe não faltar o necessário.”12

Ante essas constatações, faz sentido continuarmos esperando que venham de algum lugar “espíritos bons” para promover as mudanças de que nós, enquanto sociedade, necessitamos? Não é o caso de repensarmos essa postura e admitirmos a necessidade de atuar politicamente – ainda que não partidariamente – para que as tão sonhadas “transformações sociais” aconteçam?

Kardec, sabiamente apontou o caminho, assim como, a seu tempo, os antigos profetas e Jesus de Nazaré. Para que se estabeleça um mundo melhor é necessário que se promovam mudanças nas nossas instituições sociais, nas nossas leis, nos nossos costumes, nos nossos sistemas econômicos. Não haverá mudança sem que substituamos nossos sistemas baseados em competição por outros baseados na solidariedade; sem que substituamos valores como ambição, desejo de lucro e egoísmo por generosidade, desprendimento e altruísmo; individualismo por senso de coletividade. É imperioso repensar a atual ênfase no deus dinheiro, ou no capital, e estabelecer uma economia baseada nos ensinamentos de Jesus e dos grandes líderes espirituais que passaram pela Terra.

Aliás, tudo indica que era esse o sonho por trás da ideia de “mundo de regeneração”. A “Jerusalém restaurada” e o “Reino de Deus na Terra” são os antecessores do sonho kardequiano por um mundo melhor, que ele traduziu como sendo o advento desse “mundo de regeneração”, mas que somente será possível mediante a atuação social responsável e consciente de cada um e da maioria de nós, no nosso dia a dia, nas rodas familiares, nos comentários postados nas redes sociais, nas nossas opiniões e escolhas políticas, no nosso voto, e nos temas que se discutem no dia a dia das nossas casas espíritas.

1Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. III item 4. FEB, Brasília/DF, 2004.

2Kardec, Allan. Obras Póstumas, pag. 340. FEB, Brasília/DF.

3Kardec, Allan. Revista Espírita, nov/1865, trad. Evandro Noleto. FEB, Brasília/DF.

4Kardec, Allan. Revista Espírita, out/1868, trad. Evandro Noleto. FEB, Brasília/DF.

5Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. III item 19. FEB, Brasília/DF, 2004.

6Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 1019. FEB, Brasília/DF, 2004.

7Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, em diversas questões, em especial a 917 e a 1019; O Evangelho Segundo o Espiritismo, principalmente o cap. XX, “Os tempos são chegados”.

8Bíblia de Jerusalém, I Tessalonicenses, 4:15, e Apocalipse, 20:3 a 6. Ed. Paulus, xxxx

9Bíblia de Jerusalém. Atos dos Apóstolos, cap. II v. - Os primeiros movimentos comunistas europeus tinham como inspiração a Casa do Caminho, em Jerusalém. Era esse o mote da Liga dos Justos, mais tarde Liga Comunista.

10Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 1019, trad. Guillon Ribeiro. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

11A indiferença ante o naufrágio de um barco com 700 pessoas no mediterrâneo em 14/06/2023 e inúmeros outros que ocorrem quase todos os dias, vitimando fugitivos da guerra e da fome devidas aos conflitos na África e na Ásia por conta da disputa das riquezas naturais, nos oferecem uma boa medida do atual estado da humanidade.

12Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, comentários à questão 707, trad. Guillon Ribeiro. FEB, Rio de Janeiro/RJ.


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