SUICÍDIO: Um problema de ordem moral ou uma questão social?

 

Elias Inácio de Moraes

São sempre louváveis os esforços que pessoas e organizações desenvolvem, todos os anos, aconselhando, ouvindo, dialogando, de modo a prevenirem o suicídio. Mas será isto suficiente? Quais são as reais causas do suicídio? Será possível reverter a crescente onda de suicídios sem atuar sobre as suas reais causas? Apesar das campanhas “em defesa da vida” que se renovam ano a ano, entre os anos 2010 e 2022 as ocorrências de suicídios aumentaram 72% no Brasil, de 9,5 mil para 16,2 mil casos, na contramão do que tem acontecido no mundo, onde houve redução de 8,8%.1 Mais preocupante ainda é o aumento de suicídios entre jovens de 11 a 19 anos, de 81%, sem contar a enorme quantidade de automutilações que tem assombrado as famílias.2

O que tem acontecido de diferente no Brasil que tem feito aumentar de tal maneira a quantidade de suicídios, enquanto no restante do planeta elas apresentam redução?

Em 1897 o sociólogo Émile Durkheim publicou um livro onde ele apresentou os resultados de uma pesquisa realizada a partir dos registros oficiais de suicídios ocorridos ao longo das últimas décadas em mais de uma dezena de países europeus, inclusive alguns estados norte-americanos, além de 26.000 dossiês de suicídios cometidos na França. Ele utilizou também um estudo desenvolvido por Brière de Boismont, um contemporâneo de Kardec, que analisou os escritos deixados por 1.507 pessoas que suicidaram, publicado em 1856 sob o título Do Suicídio e da Loucura Suicida. Kardec se refere a essa publicação na Revista Espírita de julho de 1859.

Em vez de estudar o suicídio sob o enfoque psicológico ou moral, buscando compreender as motivações dos indivíduos, Durkheim adotou um enfoque sociológico, ou seja, procurou analisar o contexto social no qual esses suicídios aconteceram. Foi assim que ele descobriu, por exemplo, que algumas sociedades apresentavam taxas de suicídio quase dez vezes maiores que outras, e que essas taxas variavam dentro de cada sociedade em razão crises econômicas, políticas, ou mesmo momentos de prosperidade. Na medida em que se modificavam as circunstâncias sociais a taxa de suicídios aumentava ou diminuía.

Um de suas constatações é que a taxa de suicídios em cada sociedade é mais ou menos constante e só varia muito lentamente ao longo do tempo. Mudam-se as pessoas, na mudança das gerações, mas a taxa permanece mais ou menos inalterada. Para que essa taxa sofra uma variação significativa é preciso que haja alguma mudança significativa no ambiente social, o que evidencia que não se trata de uma questão apenas “moral”, ou de conteúdo tão somente “psicológico” por parte dos indivíduos, como o senso comum nos faz crer. Há fatores sociais, externos aos indivíduos, que são determinantes para as ocorrências de suicídio. Isso ficou ainda mais evidente quando ele comparou as taxas europeias, sempre muito altas, com as de vários estados americanos para onde os europeus estavam migrando, sempre muito baixas. Era como se o simples fato de mudar de ambiente, de uma para outra sociedade, fizesse deixar para trás o desejo de desistir da vida.

Analisando as relações entre o suicídio e a religião Durkheim observou também que as taxas de suicídio eram maiores nas províncias protestantes do que nas ligadas ao catolicismo ou ao judaísmo. Ele percebeu que a questão principal, por trás dessas ocorrências, estava relacionada ao maior ou menor individualismo que caracterizava as relações interpessoais dentro desses grupos religiosos, à maior ou menor coesão social que eles ofereciam. Os protestantes europeus eram mais individualistas, enquanto os católicos e os judeus, mais solidários. Isso explicava porque na Inglaterra, protestante anglicana, as taxas de suicídio eram menores que nos demais países protestantes; é que os protestantes anglicanos formavam grupos coesos, menos individualistas. Disso ele conclui que não é a crença religiosa que minimiza os riscos do suicídio – tanto que a taxa de suicídio entre espíritas não difere significativamente das dos demais grupos – mas o nível de comprometimento das pessoas umas com as outras dentro da sua comunidade de fé.

Quanto à relação entre o suicídio e a estrutura familiar Durkheim constatou que nas famílias mais integradas, mais coesas, ele é mais raro, e mais frequente nas famílias onde a coesão social interna é menor, onde cada um vive mais para si. Entre pessoas solteiras que vivem sozinhas ele é mais frequente do que entre as pessoas casadas, e entre as casadas, a presença de filhos também comparece como fator que reduz a taxa de suicídio. Em uma constatação que ainda hoje é ratificada pelas modernas pesquisas, pessoas idosas apresentavam maior propensão para se matar do que as pessoas mais jovens; e desde aquela época os homens também se matam mais do que as mulheres. Qualquer das instituições sociais – família, sociedade, religião – que deixe a desejar do ponto de vista da coesão social, pode deixar uma lacuna no sentimento dos indivíduos. Se duas delas falham nessa esperada oferta de coesão social o problema se torna ainda mais grave. Se as três falham, inevitavelmente muitas pessoas, dentre as mais prejudicadas, renunciarão ao seu direito de viver.

Ao final Durkheim conclui que há uma perfeita correlação entre as ocorrências de suicídio e o grau de coesão interna dos grupos sociais aos quais esses indivíduos pertencem, ou seja o suicídio resulta de um estado de “miséria moral” da sociedade, e não de disposições psicológicas dos indivíduos. Sempre que falta essa coesão, esse sentimento de pertencimento, o risco de suicídio aumenta. Uma sociedade “anômica”, adoecida pelo dogma do “progresso de qualquer modo e o mais rápido possível”, com seus vínculos sociais enfraquecidos, “é uma das fontes em que se alimenta o contingente anual” de suicídios. Quando as taxas de suicídio se elevam, como ocorre agora, isto é sinal de que está ocorrendo uma “ruptura dos laços sociais”, e não há outra forma de combatê-lo nas suas causas senão atuando sobre os elementos que estão causando essa ruptura.3

Assim sendo, o aumento da quantidade de suicídios em uma dada sociedade deve ser tratado como um fato que somente se explica em termos sociológicos, e não por motivações pessoais. Isso não significa que elas não existam, e o Espiritismo e a Psicologia nos oferecem elementos para que também elas sejam levadas em consideração, mas, significa que, para reduzir as ocorrências de suicídio, não basta atuar sobre os indivíduos, é preciso atuar sobre a sociedade como um todo.4

Ainda como decorrência de suas consistentes demonstrações, a correlação que se faz no meio espírita entre a ocorrência do suicídio e as questões morais do indivíduo precisam, no mínimo, de serem relativizadas. Ninguém pode afirmar-se “melhor” ou mais “evoluído” por não apresentar ideações suicidas; a pessoa pode simplesmente estar situada em um contexto social e familiar mais favorável. Não há como garantir que alguém se manteria inume a esses sentimentos se viesse a experimentar situações realmente adversas nas quais outros sucumbem. Assim também ninguém deve sentir-se “inferior” ou “desequilibrado” porque apresenta ideações suicidas, ou por ter realizado alguma tentativa; Kardec já havia observado que a pessoa pode estar sob o jugo de constrições sociais que lhe estão sendo insuportáveis, daí o desistir de viver.5

É o que explica, por exemplo, a elevada taxa de suicídio entre pessoas LGBT. Quase sempre, tanto a religião quanto a sociedade são hostis a essas pessoas, e seu refúgio termina sendo a família, único ambiente onde ela pode encontrar algum acolhimento. Quando até mesmo família a rejeita, eleva-se consideravelmente o risco de suicídio. E aí entra outro fator agravante: família, religião e sociedade se influenciam reciprocamente, fazem parte de um mesmo ambiente cultural. Se a sociedade é preconceituosa, dificilmente a religião e a família não serão afetadas por esse preconceito. Uma pessoa que reencarna na condição LGBT terá que enfrentar a dura estatística que a coloca com quatro vezes maior probabilidade de sucumbir ao suicídio.6

As pessoas não se matam por “fraqueza” ou “covardia moral”, ou por “terem se distanciado de Deus”, como é comum ouvir nos meios religiosos; as pessoas se matam porque as condições sociais, aí incluída a religião e a família, as afetam de tal modo que elas não veem mais sentido em continuar vivendo. Sua situação psicológica fragilizada tanto pode ser decorrente de experiências traumáticas em vidas passadas quanto também do contexto social em que ela se acha envolvida na sua atual experiência, e não há como estabelecer qual desses motivos é mais prevalente.

Não resta dúvida que a atuação individual de escuta, de acolhimento, pode salvar vidas, mas para reduzir efetivamente a quantidade de suicídios é preciso atuar sobre as estruturas sociais, sobre a cultura, sobre os valores que norteiam a vida em família e na sociedade, e é aí que se encontra o maior desafio, pois essas estruturas são altamente resistentes à mudança.

Um exemplo disso se viu quando da proposta de uma ação educativa junto às escolas, desde a infância, apresentando o comportamento homoafetivo em crianças como algo natural, de modo a minimizar o preconceito e o bullying contra pessoas LGBT. Foi proposto um projeto denominado Escola Sem Homofobia, que provocou as mais acaloradas reações em virtude do preconceito que permeia toda a sociedade. O que se pretendia era que, atuando através da escola, se alcançasse a família e, no longo prazo, se reduzisse o preconceito na sociedade, reduzindo assim, as ocorrências de suicídio nessa população específica. Ocorre que os mesmos grupos sociais que dizem “defender a vida” não aceitam a existência de pessoas LGBT. Neste caso, venceu o preconceito.

Outro exemplo é a depressão, que pode ser agravada pelo stress no trabalho, na escola, pela insegurança e o desemprego. Ações orientadas para uma maior proteção ao trabalho, para um amortecimento da competitividade desenfreada e para uma maior garantia de emprego atuam como um importante fator de redução nas ocorrências de suicídio. Segundo o pesquisador da FioCruz, Paulo Amarante, “a questão do suicídio não deve ser equacionada exclusivamente como um problema de assistência à saúde. Ela deve ser refletida à luz de todo o processo de desenvolvimento social, de um projeto de nação e construção da sociedade”.7

Tão importante quanto atuar individualmente, auxiliando as pessoas que se acham expostas aos seus fatores causais, é atuar sobre as causas sociais do suicídio, cooperando para a mudança nas estruturas e nos valores sociais que levam ao individualismo, à competição desenfreada pela sobrevivência, ao preconceito, ao julgamento recíproco, fortalecendo o sentimento de coletividade, de pertencimento, de solidariedade, de cooperação mútua, de valorização da diversidade étnica e de gênero, de não julgamento entre as pessoas, na vida familiar e no ambiente das religiões.

Como são várias as causas, é preciso que sejam enfrentadas todas elas, cada qual mediante estratégias específicas. Os resultados não têm como serem visualizados de imediato, mas o impacto dessas mudanças sociais poderá ser observado na redução gradativa da taxa de suicídio que, com certeza, poderá ser observada ao longo dos anos. As taxas serão menores não apenas porque os indivíduos terão se tornado mais resistentes ao arrastamento ao suicídio, mas porque a sociedade também terá se transformado em um ambiente mais acolhedor, mais humano, mais solidário, mais conforme àquela ponderação de Jesus segundo a qual “os meus discípulos serão conhecidos por muito se amarem”.

1Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 pag. 123. FBSP, São Paulo/SP.

2 https://portal.cfm.org.br/eventos/taxa-de-suicidio-cresce-43-em-uma-decada-no-brasil/

3Durkheim, Émile. O Suicídio, pag. 328. Ed. Martins Fontes, São Paulo/SP, 2000.

4Durkheim, Émile. O Suicídio, pag. 258. Ed. Ed. Martins Fontes, São Paulo/SP, 2000.

5Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 350, 944, 946 e 947. FEB, Brasília/DF.

6Vide https://www.cartacapital.com.br/blogs/suicidio-da-populacao-lgbt-precisamos-falar-e-escutar/

7https://www.epsjv.fiocruz.br/podcast/aumento-das-taxas-de-suicidio-entre-adolescentes-exige-reflexao-social-e-coletiva.

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