Literatura mediúnica é Espiritismo?


                                                                                                                            Elias Inácio de Moraes

Em um dado momento, Immanuel Kant (1724-1804) também se interessou pelos fenômenos mediúnicos vividos pelo filósofo, cientista e estadista sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772). Dotado de percepções mediúnicas raras, Swedenborg deixou um rico legado, com base no qual ergueu-se a Igreja Nova Jerusalém. Mas Kant não se deu por convencido, e concluiu: “ouse pôr em dúvida cada uma delas individualmente (as manifestações mediúnicas), e ainda assim dar alguma fé a todas tomadas em conjunto”.1 Ou seja, por mais que não tenha se deixado convencer pelo que viu em Swedenborg, ele percebeu que havia questões sérias que mereciam sua atenção desde que esses fenômenos fossem tomados em conjunto, comparados a outros casos e situações.

Também Kardec, ao se deparar com os fenômenos mediúnicos, entendeu que não poderia confiar indistintamente em tudo o que lhe era apresentado por aquelas manifestações extravagantes. A princípio, ao que se pode perceber na primeira edição de O Livro dos Espíritos, ele fez uma seleção muito mais baseada no seu bom senso do que em qualquer outro critério. O sucesso dessa publicação lhe rendeu não apenas vendas, mas também muitas manifestações que passou a receber através de cartas, relatos e mesmo textos psicografados que lhe chegavam das mais variadas localidades. Foi com base nesse extenso material, e também em experimentos conduzidos por ele próprio, que ele promoveu correções, algumas bastante radicais, e estruturou uma “nova obra”, a segunda edição de O Livro dos Espíritos.

Ao escrever O Evangelho Segundo o Espiritismo, em 1863, Kardec já tinha uma proposta metodológica bastante estruturada, que ele chamou de “controle universal dos ensinos dos espíritos”, ou seja, a concordância que se possa observar entre as comunicações espontâneas que se obtém de uma grande variedade de médiuns estranhos entre si e em lugares diferentes.2

O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura.3

Por “dados positivos já adquiridos”, entenda-se aquilo que se tornou objeto de consenso no meio científico, até porque não convém assimilar “todas as concepções novas, por mais sedutoras que sejam à primeira vista”, mas tão somente aquelas que já “chegaram ao estado de verdades reconhecidas.”4

Ao longo de toda a sua obra é possível observar a importância que ele atribui à ciência como parâmetro para validação de uma determinada ideia ou teoria. Em A Gênese ele analisa todos os “milagres e as predições” tendo como referência a lógica científica. Se não fosse possível explicar de alguma maneira com base nos conhecimentos científicos da sua época, aí incluídas as teorias do então chamado “magnetismo animal”, então é porque não deveriam ter ocorrido daquela forma.

Ocorre que o Brasil é um país singular e, ao recepcionar o trabalho de Allan Kardec, era inevitável que ele sofresse as alterações e ajustes decorrentes das características socioculturais do seu novo ambiente. Afeito a um misticismo decorrente da mistura de diferentes culturas, onde o catolicismo europeu se impôs fortemente, o brasileiro mostrou-se receptivo à ideia judaica de “revelação espiritual” associada à prática mediúnica, em especial às teses de J. B. Roustaing, de fundo essencialmente católico e místico, inteiramente apartado de qualquer cientificidade.5

Por conta disso, estabeleceu-se no Brasil uma verdadeira indústria de literatura mediúnica. Nesse novo mercado encontra-se de tudo; romances instrutivos em que a realidade material e espiritual se misturam; autoajuda orientada para reflexão moral baseada em trechos evangélicos; ficções a respeito do mundo espiritual. A lista é imensa; são livros e mais livros, supostamente mediúnicos, espíritas e não espíritas, e textos circulando nas redes sociais, criando uma cultura de espiritismo baseado na aceitação acrítica de conteúdos supostamente “revelacionais”.

Não que isso seja novidade em relação àquilo que Kardec encontrou quando da realização do seu trabalho. Embora em muito menor quantidade, em sua época já existiam livros mediúnicos. Cem anos antes Emanuel Swedenborg já havia publicado diversos títulos, com ricas dissertações morais e descrições detalhadas do mundo espiritual. Do outro lado do oceano Atlântico, Andrew Jackson Davis também já havia publicado livros de filosofia obtidos pela via mediúnica, e na mesma cidade de Kardec, em Paris, Ermance Dufoux já havia psicografado A História de Joana d’Arc ditada por ela mesma e A História de Luís XI ditada por ele mesmo.

Entre os diversos comentários sobre literatura espiritualista publicados por Kardec destacam-se alguns sobre o trabalho mediúnico de Swedenborg e um artigo a respeito do livro psicográfico de Ermance sobre Luís XI. Ele prometeu comentar também o livro sobre Joana d’Arc, mas deve ter refletido melhor e mudado de ideia, porque ele nunca mais tocou no assunto.

Para Kardec, nenhum médium ou espírito detinha a prerrogativa de falar em nome do Espiritismo. Era dos pesquisadores o trabalho de identificar as convergências entre as ideias apresentadas por espíritos diferentes, através de médiuns diferentes, em diferentes contextos sociais, e alinhar isso com o conhecimento científico disponível.

Só que, aqui no Brasil, esse critério foi ignorado. Em razão da riqueza da produção mediúnica de Chico Xavier, cujo primeiro livro, Parnaso de Além Túmulo, causou uma comoção social pelo caráter inusitado da obra, pouco a pouco seus livros foram conquistando o coração e a mente do público espírita. A FEB, que até então divulgava os romances psicografados por outros médiuns como “ficção” de caráter instrutivo moral, passou a considerar os romances de Emmanuel como “históricos” e os textos atribuídos a André Luiz como “revelações espirituais”. Sua obra mediúnica passou a ser vista como “complementar à obra de Allan Kardec”, à revelia de qualquer ideia de “controle universal”.

Houve até mesmo quem defendesse que Chico Xavier seria a reencarnação de Kardec, que teria retornado para complementar a sua obra. Aliás, há quem acredite e defenda isso ainda hoje, em que pese as inúmeras discordâncias e contradições apresentadas.

Mais de um século e meio desde a publicação das obras de Kardec, a Astronomia e a Física experimentaram uma revolução jamais imaginada com as teorias de Maxwell, Einstein e Max Planck; a Biologia consolidou estudos na área da Genética e da Neurofisiologia, e descortinou novas visões a partir da teoria de Darwin e Wallace, abandonando as explicações baseadas na teoria da geração espontânea, presentes em O Livro dos Espíritos e A Gênese. Novas áreas da ciência se consolidaram, como a Antropologia, a Sociologia, a Economia, a Ciência Política e a Psicologia. A História estabeleceu novos marcos, libertando-se do eurocentrismo vigente à época e elaborando outros olhares sobre a formação e o desenvolvimento das sociedades nos diversos continentes.

Perpetrada a tragédia de Hitler e do holocausto, rompeu-se a ilusão de que o povo europeu e a “raça ariana” seriam o suprassumo da evolução humana, de que povos chineses e indianos seriam “atrasados” em relação aos europeus, de que africanos e indígenas das Américas seriam “povos primitivos”, caracterizados pela brutalidade e pela “selvageria”. Estudando melhor esses povos, a Antropologia percebeu que não fazia sentido estabelecer hierarquias em se tratando de diferentes culturas. A teoria da “raça adâmica”, anterior a Kardec e por ele utilizada para explicar a metáfora bíblica dos “anjos decaídos” em O Livro dos Espíritos e A Gênese, caiu por terra.

O exame frio da extensa literatura mediúnica produzida no Brasil ao longo de todo o século XX deixa evidente que ela não acompanhou as mudanças que se processavam no meio científico. Ao contrário, observa-se que houve uma sacralização tanto dos textos de Kardec quanto da obra mediúnica de Chico Xavier, em paralelo à constituição de mitos e lendas em torno das suas imagens, reforçados por narrativas espetaculosas. Livros como A Caminho da Luz, de 1938, e Brasil Coração do Mundo, de 1940, continuam sendo tomados como referência, sem se levar em conta que as narrativas históricas e diversas teorias que ali constam já foram abandonadas há muito tempo pelos setores – como dizia Kardec – mais “esclarecidos” da sociedade.

As questões sociais continuaram a ser analisadas sob a ótica do indivíduo, desconsiderando-se os fatores sociais envolvidos; o personagem Moisés continua a ser reconhecido na literatura espírita como histórico, por mais que a Antropologia já o considere mitológico, porque é assim que consta na obra de Kardec e de Emmanuel. Os espíritos, tanto os da época de Kardec quanto os de agora – argumentam –, não poderiam ter-se equivocado.

Se consta no livro Pensamento e Vida que “o pensamento é força eletromagnética”6 e um físico espírita alerta que essa hipótese não se confirmou, o físico espírita está equivocado, porque o médium Chico Xavier e o espírito Emmanuel estão acima de qualquer “suspeita”. Não interessa o que diga a ciência, a obra mediúnica está agora colocada acima das afirmações científicas. Há até mesmo um entendimento de que a ciência está longe de alcançar o que dizem as “revelações espíritas” contidas nos livros mediúnicos e na obra de Allan Kardec.

Não foi isso o que Kardec propôs para a continuidade do Espiritismo. Para garantir a constante atualização do pensamento espírita ele havia proposto a realização de congressos periódicos onde os pesquisadores apresentariam os resultados dos seus estudos, feitos sempre a partir da análise da extensa fenomenologia mediúnica disponível, e mediante métodos consistentes, submetendo-os à crítica dos seus pares e ao contraditório. Para ele o Espiritismo caminharia “lado a lado” com a ciência, sem o que ele se suicidaria.7

Kardec nunca recomendou que se considerasse o que consta nos seus livros como “verdade” inquestionável. Muito menos o que consta nos livros mediúnicos, porquanto, espíritos são seres humanos como nós, só que desprovidos de corpo material. Assim como os médiuns, também eles podem se equivocar em relação a qualquer assunto.8 Para Kardec, o critério de verdade é a ciência, e se esta demonstrar que o Espiritismo está equivocado em algum ponto, muda o Espiritismo.9

Todo texto mediúnico deve ser submetido primeiramente ao critério da racionalidade, ou seja, da coerência com aquilo que já se acha consolidado no meio científico; em segundo lugar, ao critério da universalidade. Possíveis “revelações espirituais” – o que hoje já se discute se existem mesmo – somente seriam aceitas se elas surgissem espontaneamente em diferentes lugares, através de médiuns desconhecidos entre si e atribuídas a diferentes espíritos. Aliás, até mesmo o critério da universalidade mostrou-se de difícil aplicação ainda no seu tempo, o que sugere que outros critérios necessitam ser considerados na atualidade.

Isso posto, é preciso compreender que uma coisa é literatura mediúnica e outra coisa é Espiritismo. Por mais que no meio espírita haja um apreço por considerar o Espiritismo como algo transcendental, a “terceira revelação” de Deus para a humanidade, a análise racional de todo o conjunto da obra de Kardec o apresenta como um modo de compreender a vida, a experiência humana e a realidade social a partir da análise racional dos fenômenos mediúnicos. Já literatura mediúnica são todos os textos e livros produzidos sob uma possível influência espiritual, nem por isso detentores da “verdade”, e devem se constituir em material de estudo visando a formulação do entendimento espírita.

Nenhuma teoria ou explicação vem pronta do mundo espiritual para a Terra – nem mesmo com Kardec isso aconteceu – mas é “deduzida pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos (ou que ele investiga) e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações”. Qualquer teoria ou explicação espírita – para não insistir mais no termo doutrina, que também não é mais de uso corrente – será, do ponto de vista kardequiano, “fruto do trabalho do homem”.10


Referências bibliográficas:

1 Kant, Immanuel. Escritos pré-críticos, pag. 188. Ed. UNESP, São Paulo/SP, 2005.

2 Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item II. FEB, Brasília/DF, 2005.

3 Idem, ibidem, ibidem.

4 Kardec, Allan. Revista Espírita, jul/1868, pag. 286. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

5 Roustaing, J. B. Os Quatro Evangelhos: A revelação da revelação. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

6 Xavier, Chico. Pensamento e Vida, pelo espírito Emmanuel, lição 2. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

7 Kardec, Allan. Obras Póstumas, projeto 1868 e A Gênese, cap. I.

8 Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, itens 19, 46 e 244. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

9 Kardec, Allan. A Gênese, cap. I. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

10 Idem, ibidem, ibidem.


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