O ESPIRITISMO ANTE AS IDEOLOGIAS DE ESQUERDA E DE DIREITA

 

Elias Moraes

O movimento espírita não teve como se furtar ao acirramento das disputas ideológicas no campo político partidário, observadas nas duas últimas décadas; ao contrário, foi fortemente atingido por essas disputas. A princípio, mediante manifestações ostensivas de muitas das suas principais lideranças em defesa das pautas do campo ideológico da Direita, ainda que sob a forma de uma fingida neutralidade. A essas manifestações seguiu-se uma forte reação dos que discordavam dessa postura, e que foram estigmatizados sob o rótulo de "espíritas de Esquerda".

Ante o clima de confronto que se estabeleceu, o argumento mais utilizado pelos que adotavam a negação como estratégia de silenciamento das discussões era que o Espiritismo não era nem de Esquerda e nem de Direita, mas "de cima", ou "do alto", como se a doutrina espírita não tivesse posições muito bem definidas a respeito de cada um dos temas colocados em pauta pelos atores de ambos os campos ideológicos em disputa.

Apesar da presença, na formulação teórica do Espiritismo, de pensadores socialistas como Léon Denis, Lacordaire, Lamenais, Robert Owen, Henri Heine, Maurice Lachâtre, Leopoldo Cirne, Manuel Porteiro, Herculano Pires e uma enorme lista de outros nomes, sempre prevaleceu no meio espírita brasileiro uma postura mais conservadora, de Direita, fruto da forte presença de militares e magistrados aposentados, de médicos e de empresários, representantes de uma classe média historicamente alinhada com o ideário capitalista.

Na sua formulação, Kardec procurou estabelecer para o Espiritismo uma postura apartidária, mas não apolítica, de vez que os temas mais candentes da sociedade da sua época – e que pautam as agendas dos partidos políticos ainda hoje – estão todos presentes e quase sempre muito bem definidos no corpo da doutrina por ele formulada. Assim, desde Kardec o Espiritismo se posiciona firmemente a favor da igualdade de direitos, não apenas entre homens e mulheres, mas de todos os seres humanos; contrário ao racismo, ao preconceito de classe social, de gênero, de etnia; contrário à escravidão e a qualquer forma de exploração do trabalho alheio; contrário à pena de morte e a todas as diferentes maneiras pelas quais se atenta contra a vida de seres humanos.

Por mais que, na sua origem, se observe uma valorização do processo de colonização como um “movimento natural” destinado a levar o “progresso” aos povos “primitivos”, “atrasados” e mesmo “selvagens” do planeta – uma visão equivocada do século XIX que hoje não é mais aceita1 –, a forte censura à crueldade, à violência e a todas as formas de opressão deixam claro que o Espiritismo sempre se colocou fortemente contrário ao genocídio perpetrado nos últimos cinco séculos contra os povos indígenas e africanos, como não apoia hoje o extermínio sistemático, pelas forças policiais, de jovens pretos e pobres das periferias.

Filho do Iluminismo, o Espiritismo abraçou desde o início o ideário da democracia, dos Direitos Humanos, da laicidade do Estado, sob o guarda-chuva da trilogia Igualdade, Fraternidade e Liberdade, que foram os motores da Revolução Francesa. Elaborado em meio a profundos questionamentos em torno da revolução industrial que, por um lado, promovia o progresso tecnológico e econômico, melhorava as condições de vida de muitos e, por outro criava uma legião de miseráveis, não havia unanimidade em relação a um modelo ideal de sistema econômico que pudesse atender aos anseios de espiritualidade presentes naquele momento histórico. Ao contrário, havia um conflito e uma indefinição, que estão presentes na obra kardequiana, em relação às três principais posições que se materializariam nas décadas seguintes em termos de propostas sociais, o Capitalismo, o Socialismo e o Comunismo.

É interessante lembrar que essas três palavras não eram utilizadas naquela época tal como ocorre atualmente, razão pela qual elas praticamente não aparecem no texto kardequiano. As três haviam sido inventadas recentemente. Na virada do século Nicolas Restif havia criado a palavra “comunismo”; em 1832 Pierre Leroux cunhou a palavra “socialismo” e, somente em 1850 a palavra “capitalismo” foi utilizada por Louis Blanc com o seu sentido atual. Essas três expressões somente entrariam em uso corrente ao longo da década de 1870, quando Kardec já havia falecido. Mesmo assim, saltam aos olhos sua acirrada crítica ao sistema social vigente à época, traduzido muitas vezes sob o termo “egoísmo”, e sua admiração – embora também permeada de críticas – pelos “homens bem intencionados, (que) tocados pelos sofrimentos de uma parte de seus semelhantes, supuseram encontrar o remédio para o mal em certas doutrinas de reforma social”.2

À sua maneira de ver, o socialismo e o comunismo exigiam “a abnegação mais completa da personalidade (…) o devotamento mais absoluto”, razão pela qual ele os considerava utópicos, requerendo, antes de sua implantação, a preparação dos seres humanos mediante uma educação baseada nos princípios da caridade. Mas era nessa direção que se daria a “transformação social” da Terra, pois era assim que se organizavam os “mundos superiores”. A pequena sociedade comunal de Koenigsfeld, na Alemanha, é apresentada por ele como “o mundo futuro em miniatura”, exemplo “do que será o mundo quando for regenerado”.3

É impossível proceder uma leitura atenta de O Livro dos Espíritos e não encontrar, em meio à defesa do direito de propriedade e da liberdade de iniciativa, que são causas abraçadas pelo capitalismo, uma evidente defesa de ideias que se constituem em pauta dos movimentos socialistas e até mesmo comunistas, como a não exploração do trabalho alheio em proveito próprio, a defesa do fraco contra o forte, a criação de sistemas previdenciários de proteção à velhice e ao desemprego, a universalização dos cuidados com a educação e a saúde. Sim, porque foram os partidos socialistas e comunistas que conseguiram, mediante duras lutas e até mesmo mortes, conquistar direitos como a jornada de trabalho de 44 horas semanais – já foram mais de oitenta – e todos os demais direitos que beneficiam os trabalhadores e as famílias pobres. E são os partidos do campo ideológico da Direita que sempre têm minado essas conquistas e defendido as causas que são do interesse dos ricos e dos poderosos.

Ainda que de maneira contraditória, há no texto kardequiano uma interessante discussão a respeito do direito de propriedade, às vezes defendido como um direito do indivíduo, às vezes como uma proposta comunal, "como as abelhas", mas jamais para gozo unicamente pessoal.4 Ao longo de toda a sua obra Kardec posiciona-se firmemente a favor do uso social da propriedade, o que é flagrantemente contrário à centralidade do lucro, à acumulação ilimitada de riquezas, à desigualdade social e ao consumismo desenfreado, que são norteadores do sistema capitalista. É curioso como a questão 888 apresenta uma forte correlação com as ideias de um dos principais autores comunistas da época, o anarquista Joseph Proudhon, autor do livro A propriedade é roubo.

Houve, nesses dias turbulentos, quem procurasse associar os ideais socialistas e comunistas a alguma forma de materialismo existencial, relacionando essa ideia ao materialismo metodológico adotado no meio científico – inclusive por Allan Kardec, diga-se de passagem. Trata-se de um esforço por ocultar o materialismo existencial e até mesmo um niilismo, traduzido em hedonismo desenfreado, que norteia o ideário capitalista, que tem como deus o capital, como apelo moral a luxúria, e como ideal de relação entre os seres humanos a competição desenfreada em busca do sucesso material.

Isto posto, qual o sentido de submeter o Espiritismo compulsoriamente a qualquer forma de alinhamento ideológico partidário – especialmente em se tratando do campo ideológico da Direita – sem levar em conta a rica discussão que o Espiritismo possibilita a esse respeito? Qualquer assunto, quando analisado sob o "ponto de vista" da eternidade do espírito, ou sob a perspectiva espiritual, ganha novo colorido, tem suas dimensões ampliadas. A vida humana deixa de ter como objetivo o imediatismo da vida material, inerente ao sistema de produção capitalista, e passa a ser regida por objetivos espirituais, o que está na base das propostas socialistas e comunistas, desde a histórica experiência comunal da Casa do Caminho, dos primeiros cristãos, passando por João Crisóstomo, Tomas Mórus, Tomaso Campanella, Saint Simon e até a Liga dos Justos, em 1847. Desapego, altruísmo, bem comum, solidariedade, passam a ter implicações muito mais amplas, incompatíveis com um ideário que tem na acumulação de riquezas um valor primordial.

Todo esse ideário aparece traduzido, ainda que em meio a contradições, no livro Nosso Lar, da dupla Chico Xavier/André Luiz, psicografado em 1944, quando a União Soviética sacrificava milhões dos seus soldados para impedir a expansão nazista e a continuidade do horror que foi o holocausto. Seria em razão desse cenário que a cidade Nosso Lar é apresentada como um modelo de sociedade, funcionando em regime comunal, centralmente planejada, sem a presença da propriedade privada, do dinheiro, da competição entre pares e do consumismo, absolutamente divorciada dos valores capitalistas?

Não resta dúvida de que, consideradas as tentativas de implementação de modelos alternativos ao sistema capitalista ocorridas desde a Comuna de Paris até as bem-sucedidas experiências da China, do Vietnã e de outras economias de menor expressão na atualidade, nada impede conciliar o Espiritismo com valores como a liberdade de iniciativa, o regime das trocas e até mesmo uma parcial descentralização da economia, que são pautas importantes defendidas pelos partidos de Direita.

Mas não há como negar que continua sendo o campo ideológico da Esquerda o que mais tem abraçado as pautas que são caras à proposta espírita de transformação social visando uma sociedade mais justa e solidária, mais voltada para o espiritual, para o bem viver, e não para o muito possuir. São os partidos desse campo ideológico que têm combatido, mediante enorme esforço, a desigualdade social; que têm criado e defendido, a duras penas, leis que protegem os trabalhadores da exploração por empresários gananciosos que somente visam o lucro, ainda que mediante o sacrifício das vidas das pessoas pobres; a criação e manutenção de sistemas públicos e gratuitos de saúde e educação, de saneamento urbano e moradia, visando condições dignas de vida para todos, independentemente de renda.

São os partidos de Esquerda que têm resistido às reiteradas tentativas de alguns partidos do campo ideológico da Direita de validar a tortura como meio de obter confissão de crimes – condenada desde 1848 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos –; de justificar o assassinato de jovens pobres e pretos das periferias sob a alegação de “já ter passagem pela polícia”, como se isso tornasse alguma vida menos importante; de fazer vistas grossas e até proteger os invasores de áreas de proteção ambiental e de reservas indígenas, em uma afronta às condições de vida da própria espécie humana, e em um evidente genocídio contra as populações originárias do Brasil.

Feitas essas considerações, é forçoso reconhecer que, assim como não se justifica defender qualquer alinhamento ideológico automático com o campo ideológico da Esquerda, essa insistente defesa de um alinhamento automático do Espiritismo com o campo ideológico da Direita só pode ser entendida como a manifestação de um absoluto desconhecimento da proposta espírita e das implicações políticas da mensagem do Evangelho. Mas também pode ser resultado de uma profunda ingenuidade política ou mesmo de uma alienação levada a efeito pela guerra informacional em curso, sem excluir a possibilidade de que seja, pelo menos em alguns casos, o resultado de uma mal disfarçada má-fé.

1Os estudos da Antropologia já jogaram por terra qualquer ideia de superioridade do povo europeu em relação aos demais povos, mostrando que suas diferenças são apenas culturais e não morais ou espirituais como se pensava no século XIX. Se existia alguma superioridade dos europeus era em relação à sua brutalidade, sua ganância e ao seu poderio militar para invadir, subjugar e exterminar outros povos visando se apropriar de suas terras e riquezas.

2Kardec, Allan. Viagem Espírita de 1862, Discurso III pronunciado nas cidades de Lyon e Bordeaux.

3Kardec, Allan. Revista Espírita de julho/1865, Estudos Morais.

4Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 880 a 885.


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