Elias Moraes
Para quem coordena grupos de estudos ou realiza palestras nos centros espíritas, vale a pena adquirir ao preço de R$ 18,40 na Amazon o e-book intitulado Revisitando o Livro dos Espíritos: Uma releitura com o auxílio de uma IA Generativa. Nesse trabalho o autor teve por objetivo promover uma releitura de todas as questões de O Livro dos Espíritos com base nos conhecimentos científicos e filosóficos atuais mediante auxílio da inteligência artificial (ChatGPT).
Não se trata de um novo Livro dos Espíritos, é bom que se diga isso logo a princípio. Nas palavras do próprio autor do trabalho, é apenas uma “releitura moderna das respostas dadas às perguntas de Kardec, utilizando como referência os avanços da ciência, da filosofia, da ética contemporânea e do pensamento espiritualista”, feita com a ferramenta da Inteligência Artificial – IA. Sua utilidade consiste em
...incorporar perspectivas contemporâneas em um diálogo com a obra original. Ao abordar temas que evoluíram significativamente desde o século XIX, como neurociência, ética, física quântica e direitos humanos, esta releitura visa promover uma ponte entre o pensamento espírita e os avanços da humanidade.1
O autor afirma, logo na Introdução, que seu propósito “é respeitar o legado de Allan Kardec enquanto explora novas formas de entendimento que possam enriquecer o conhecimento espiritual e filosófico.” Muitas mudanças ocorreram ao longo dos cento e sessenta anos que nos separam do trabalho de Kardec, e nem sempre é fácil identificar essas mudanças quando se estuda a sua obra. Portanto, sua importância se justifica pelo “esforço de alinhar o pensamento espírita às questões e desafios do mundo atual.”
O ponto alto do trabalho, que justifica seu uso cotidiano, é a revisão de questões que se tornaram obsoletas em razão dessas mudanças. Ao analisar novamente essas questões o ChatGPT mostra o que mudou e quais novas teorias devem ser consideradas para uma visão atualizada em torno de cada assunto. É o que se observa, por exemplo, nas questões de números 40 (sobre os cometas), 42 (tempo de formação dos mundos), 44 e 46 (geração espontânea), 47, 48 e 53 (surgimento da espécie humana) e 50 (Adão). Mas é preciso ter cuidado, pois, como o texto base foi o próprio O Livro dos Espíritos, muitas das respostas não conseguiram se desprender da base de pensamento sobre a qual a pergunta foi estruturada, como se observa na questão 47. Em vez de responder apenas com base nos conhecimentos atuais o ChatGPT continua utilizando a ideia de “germes da vida”, que é parte das teorias que foram superadas.
Em vários casos se observam contribuições relevantes, como na questão 69, “por que uma lesão no coração causa a morte mais rapidamente do que em outro órgão?”. A resposta original é bem típica do que se pensava no século XIX, quando foi elaborada, e muito pouco ante o que pode ser discutido na atualidade. Já a resposta gerada pela IA enriquece a nossa compreensão a respeito do funcionamento do corpo humano. O mesmo se dá na questão 72, que deseja discutir “qual a fonte da inteligência”. A resposta original é um tanto vaga, “a inteligência universal”. A IA constrói uma abordagem muito mais consistente ao associar a inteligência ao espírito, ainda que falhe, ao final, ao colocar o espírito como “responsável por dirigir o corpo”, como se o espírito não tivesse existência por si só, independente de corpo material.
Outro exemplo de ganho relevante é o breve resumo gerado pela IA a respeito de instinto e inteligência. Enquanto a resposta original à questão 73 é um tanto tímida, a resposta gerada pela IA é bem mais detalhada e consistente, além de alinhada com os conhecimento atuais a esse respeito. Vale a pena aproveitar todo o tópico sobre inteligência e instinto, que vai da questão 73 à 75. Nessas questões a IA contribui para ampliar a compreensão do assunto em pauta.
Como ponto frágil, que continua exigindo do estudante de espiritismo um tanto a mais de discernimento, observa-se na IA uma dificuldade de lidar com determinadas terminologias que eram utilizadas no século XIX, ou mesmo ideias e argumentos que não encontram paralelo na atualidade, o que limita a qualidade da atualização. É o que se dá, por exemplo, com relação às ideias de “fluido universal” (27 e 29), “germes da vida” (49), “princípio vital” (60 a 68 e 70) e “fluido vital” (71). Nas questões 60 a 68 e na 70 a IA cria toda uma explicação baseada na ideia de “força vital ou princípio vital”, que são termos do século XIX sem correspondência na atualidade. O mesmo se dá na questão 71 com a ideia de “fluido vital” e, mais ainda, na 72a, onde a pergunta parte da ideia de uma “inteligência universal” que seria fonte da inteligência. Na falta de um paralelo adequado com base nos conhecimentos atuais, a IA reafirma a resposta original de maneira um tanto desconexa. Ou seja, nem tudo são flores no uso da IA.
Outra dificuldade é quando o modo como a questão foi formulada originalmente induz a uma contradição, segundo o que se sabe hoje a respeito de um determinado assunto. Um exemplo é a questão 57 que indaga se, “não sendo uma só para todos a constituição física dos mundos, seguir-se-á tenham organizações diferentes os seres humanos que os habitam”. Ao tratar a pergunta, o ChatGPT fica preso à formulação inicial, que existem “seres que habitam esses mundos”, e a resposta entra em contradição com as anteriores, em que se discute a ideia, hoje questionada, de todos os mundos serem habitados. A IA tem seus limites e é preciso estar atento a isso.
Ao que parece a IA bugou inteiramente ao analisar a questão 8:
A ideia de que a formação primária do universo é resultado de uma combinação fortuita da matéria, ou do acaso, encontra grande resistência tanto na filosofia quanto na ciência. A extraordinária complexidade e ordem do universo, desde as leis físicas que o governam até a estrutura da vida, tornam difícil aceitar que tudo tenha surgido por mero acaso, sem qualquer causa orientadora ou princípio organizador. (grifei)
Não seria o contrário? Essa é a tese da ciência; o paradigma materialista afirma exatamente isso, que “a formação primária do universo é resultado de uma combinação fortuita da matéria”. São as religiões, em particular as judaico-cristãs, que têm insistido no contrário.
O mesmo se verifica na questão 20, em cuja resposta a IA não traduz o pensamento científico hegemônico. Indagada se é dado ao homem receber comunicações de ordem mais elevada sem ser por meio da ciência, a IA responde que “sim”, mas continua dizendo que “muitos acreditam” que isso é possível, e depois apresenta as ressalvas da ciência ao final. Ou seja, a resposta fica de todo incoerente, indo do “sim” ao “não” em breves três parágrafos. Em outras questões ela não consegue contextualizar os conhecimentos da época, como se observa também na 27 em relação à ideia de “fluido universal” e de “fluido vital”.
Em alguns grupos de WhatsApp vários amigos defenderam que o correto seria consultar novamente os espíritos, mas aí surge a pergunta inevitável: “se as respostas originais obtidas por Kardec nas reuniões mediúnicas do seu tempo apresentaram essas limitações hoje identificadas, pode-se confiar em que as respostas obtidas hoje seriam mais confiáveis? Há controvérsias quanto ao método das evocações em se tratando de discutir questões que são do universo da ciência.
No grupo de WhatsApp da Aephus – Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais – a pesquisadora Ângela Teixeira opinou que seria melhor refazer as perguntas diretamente aos cientistas de cada área, de vez que o conhecimento científico integra muitas variáveis que extrapolam as possibilidades do ChatGPT. Como exemplo dessa limitação, a Ângela apontou que, ao analisar o surgimento da espécie humana atual, “ela não considera outras espécies, como os neandertais, que cruzaram com o homo sapiens, e que não apareceram na África.”
Também o colega Alexandre Giffoni comentou que tem utilizado essa ferramenta para analisar temas na área da educação e tem percebido que a IA comete erros vulgares, principalmente quando ele busca aprofundar as questões. Por mais sofisticado que seja, o recurso da IA é baseado em algoritmos, ou seja, em elementos de lógica; é questionável se a sutileza dos raciocínios humanos pode ser capturada por uma lógica baseada em processos computacionais, por mais sofisticada que seja essa lógica.
Ainda assim, pelo menos na Primeira Parte de O Livro dos Espíritos, o material oferece um direcionamento mais atualizado à maioria das questões. Apenas por isso, a meu ver, justifica-se amplamente a sua utilização como material de consulta por parte de coordenadores de estudos e palestrantes, não apenas tendo em vista o estudo dessas questões em O Livro dos Espíritos, mas pela visão de conjunto que esse estudo proporciona. É óbvio que as respostas não podem mais ser atribuídas “aos espíritos”, como entende o meio espírita em relação ao original, mas, embora nem sempre completas ou mesmo corretas, podem ser um guia de pesquisa que facilita a contextualização do conteúdo original com relação aos conhecimentos atualmente disponíveis.2
1Transcrito da Introdução do trabalho em análise.
2Para a elaboração desse breve artigo foi analisada a Parte Primeira e parte da Parte Segunda. Ao final de toda a análise será publicada uma apreciação mais completa.
Ótimo texto. Revisitar conhecimento, informações sempre terá seus limites. Kardec, deu início a uma obra magnífica e deixou que, posteriormente, as respostas, suas conclusões e definições, fossem confrontadas pela Ciência, está em pleno desenvolvimento. O que vejo são pontos importantes que a Ciência pode e deve se aprofundar. Não precisamos de refazer, por exemplo, o Livro dos Espíritos e sim aprofundar as questões que são postas em dúvidas ou obsoletas, pelo desenvolvimento das Ciências.
ResponderExcluirOs cientistas espíritas já trabalham em alguma obra que inclua comentários atualizados a respeito de questões da Ciência que estejam desatualizadas em O Livro dos Espíritos?
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