RESENHA – Revisitando O Livro dos Espíritos com o ChatGPT - Parte Segunda

 


Elias Moraes

A questão 585 de O Livro dos Espíritos é um bom exemplo de aplicação da Inteligência Artificial – IA – como ferramenta para uma releitura de um texto. A pergunta parte de pressupostos típicos do século XIX, da divisão da natureza em “três reinos” e duas “classes”, a dos “orgânicos” e a dos “inorgânicos”; e do ser humano como uma classe especial, uma “quarta classe”. Hoje a ciência trabalha com outras referências, dispersas por uma vasta literatura científica, e não é fácil acompanhar todas essas mudanças. Ao submeter a resposta à análise pelo ChatGPT é possível reunir, pelo menos de maneira superficial, boa parte das atualizações ocorridas no universo da ciência e da filosofia. A resposta apresenta as classificações mais aceitas atualmente e explica por que a ideia de uma classe especial para a espécie humana não tem prevalecido.

Assim como nessa questão, em várias outras é possível constatar uma análise mais bem estruturada. Por exemplo, na 134 a pergunta “que é a alma?” tem como resposta a simples afirmação “um espírito encarnado”, e que “antes de unir-se ao corpo” a alma era simplesmente um “espírito”, na revisão há todo um tratamento do tema com base no “contexto filosófico” atual e na “psicologia moderna”. O mesmo se observa também na questão 146, sobre a “sede da alma”, e na análise das “parecenças físicas e morais”, que vai da 207 à 217. Na questão 215 a resposta original restringia-se à “analogia dos seus pendores”, refletindo o darwinismo social da época que hierarquizava as sociedades, considerando o outro como “rude e grosseiro”; na revisão a IA incorpora à análise os estudos relacionados à cultura, que inexistiam no tempo de Kardec:

215. O que dá origem ao caráter distintivo que se nota em cada povo?

O caráter distintivo de cada povo é resultado de uma combinação de fatores culturais, históricos, geográficos e espirituais. As tradições, crenças, modos de vida e experiências coletivas contribuem para moldar a identidade de uma nação ou grupo. Esses aspectos são transmitidos de geração em geração, criando uma continuidade que reforça características particulares, como valores, comportamentos e formas de ver o mundo.

A IA amplia a análise na questão 376 ao discutir o suicídio nas situações de transtornos psiquiátricos, e na 389 ao alertar para a necessidade de “trabalhar o perdão e a harmonia”. Em várias questões ela substitui a ideia de uma atuação pessoal de um Deus antropomórfico pela de “espíritos superiores” como seus prepostos. As “influências dos espíritos nos acontecimentos da vida” (425 a 435) encontram uma abordagem mais racional, menos teológica. Nas questões 344 a 360 ela desenvolve muito melhor as noções de vida intrauterina, e na 370 e seguintes ela amplia o sentido da “influência da matéria”, corrigindo simplificações das respostas originais e até uma ênfase punitivista em fatores expiatórios. Na questão 321 ela chega a oferecer elementos para uma atualização teórica da mediunidade, ao trocar o paradigma fisiológico em que Kardec se baseia pelo paradigma psicológico atual, baseado na “sensibilidade mediúnica de cada pessoa.”

Uma das principais virtudes desse trabalho é incorporar as abordagens psicológicas e até uma pitada de sociologia e antropologia na sua análise. Ao estudar “o sono e os sonhos” (400 a 412) o texto é enriquecido mediante os atuais estudos da Psicologia e da Neurofisiologia. Na questão 361, a respeito das qualidades morais, em vez de restringir a explicação ao “grau de evolução do espírito”, a IA explica que “as qualidades morais são um entrelaçamento entre progresso espiritual, aprendizado social e desenvolvimento pessoal.” E até corrige erros, como o da questão 293, cuja resposta “Não” é trocada por um sonoro “Sim”. Ela troca o “não” pelo “sim” também na questão 551 e, na 361-a, troca o “Sim” por um “Não necessariamente”. Mas é preciso estar atento que ela também erra, como nas questões 314 a 317, muda a abordagem (555 e 556), altera indevidamente o sentido das respostas (442 e 559), ou adota algumas abordagens questionáveis. E mantém algumas crenças da época que, sob um olhar atual não encontram a menor sustentação, como ao admitir a ação direta dos espíritos sobre a matéria nas questões 536 a 539.

Não se pode perder de vista que a IA é apenas um sistema computacional respondendo. Como regra o ChatGPT não foge à base conceitual que lhe é apresentada de início, a menos que seja orientado nesse sentido. Expressões como “fluido vital”, “fluido magnético”, “fluido universal”, “dupla vista” e outras, que são parte das explicações do século XIX, são mantidas como base conceitual, ainda que hoje não façam mais sentido.

Há conceitos que não apresentam um substituto atual, como nas questões 422 a 438 e 447 e seguintes. Em vez de reformular esses conceitos com base no que se pensa atualmente no meio filosófico e científico, o ChatGPT os valida, como ocorre com alguns elementos da teologia católica presentes em O Livro dos Espíritos; ou da psiquiatria, ao discutir os temas “idiotismo, loucura” (371 em diante); da neonatologia, ao justificar a violência contra a criança ao nascer, quando sabe-se hoje ser desnecessário provocar o choro (384). O uso de expressões como “são geralmente vistos” ou “são considerados” ou ainda “de acordo com a visão espiritualista”, entra em cena para reafirmar o senso comum sem uma análise crítica. Disso resultam algumas pérolas, como concluir que “os anjos são o resultado de uma longa evolução” (129), ou afirmar que é possível um corpo biológico sem alma, que era apenas uma figura de linguagem na questão original (136-b).

Em razão disso, teorias que tinham como base o evolucionismo social, o eurocentrismo e a visão racializada de mundo que caracterizava o pensamento da época, não foram solucionadas, e continuam fazendo presença em uma ou outra resposta. Nas questões 191, 221 e no ensaio de Kardec sobre reencarnação (222) observa-se a reafirmação da autodeclaração de superioridade europeia, considerando os demais povos como em um “estado evolutivo mais simples, no sentido de estarem em fases iniciais de desenvolvimento espiritual e intelectual” e de constituírem “contextos culturalmente primitivos”. O Revisitando continua supremacista e racista, e isso não é uma questão de menor importância. É não apenas desejável como necessária uma releitura que analise critica e historicamente o uso das palavras “selvagem” e “civilizado”, tanto quanto a consideração dos “hotentotes” como sendo pessoas de uma “raça inferior”, ou dos “canibais” (271 a 273). O segundo parágrafo da questão 273 tenta solucionar esse problema, mas muito timidamente. Nesse sentido recomenda-se ler as considerações ao item 141 na edição antirracista de O Que é o Espiritismo, onde as teorias da época são questionadas e são apresentados os atuais entendimentos no campo da antropologia.

Outro ponto crítico da revisão é a reafirmação de um preconceito social recorrente, que situa espiritualmente as pessoas em razão da sua condição social (509). Ainda nas considerações a respeito da reencarnação (222) a IA recorre ao senso comum e erra feio ao ignorar os fatores econômicos que promovem a desigualdade social. Ao comentar os motivos que levam as pessoas a nascerem em diferentes condições sociais a IA recorre ao senso comum traduzido no “carma”:

Por que algumas pessoas nascem em condições de grande sofrimento, enquanto outras desfrutam de privilégio e felicidade? A pluralidade das existências sugere que as circunstâncias de cada vida são fruto de ações anteriores, tanto para aprendizado como para reparação, promovendo um entendimento mais profundo da justiça divina.

Ao tomar como base os conhecimentos que estão em discussão nas redes sociais, o ChatGPT faz escolhas. Por exemplo, ele toma partido nas discussões a respeito da existência ou não de ambientes espirituais como os descritos em livros como Nosso Lar, e transforma os “mundos transitórios” (234 - 236) da abordagem original em ambientes espirituais ao estilo chicoxavierano, destinados a “preparar (os espíritos) para futuras encarnações, ajustando-se às lições que precisarão enfrentar e assimilando as experiências de vidas passadas”. Para quem aprecia essa perspectiva o texto do ChatGPT ficou muito melhor e mais coerente; já para quem discorda...

Como o ChatGPT não adota a linguagem teológica de O Livro dos Espíritos, ele melhora muito a análise de certas questões, como a possibilidade de antevisão do futuro (243). Nesse sentido, a resposta que a IA apresenta é muito mais coerente e racional, pois leva em conta “o livre-arbítrio e as escolhas individuais” na criação do porvir, fugindo à ideia de fatalidade, ou de que “o futuro Deus o conhece”. Isso fica ainda mais evidente na parte referente às “percepções e sensações dos espíritos” (237 – 256), onde a análise da IA apresenta um ganho expressivo no que tange à atualidade das análises e dos conceitos utilizados.

Mesmo assim, não se assuste se encontrar elementos da teologia evangélica ou católica em meio aos argumentos; como a IA está lidando com assuntos da religião, vez por outra pode surgir uma pérola como esta: Deus tem um plano para cada um de seus filhos. É isso que está dito no final da resposta à questão 81, a respeito da criação dos espíritos: “A individualidade e a singularidade de cada Espírito são vistas como parte do plano universal, assegurando que cada consciência tenha um propósito e um caminho de evolução próprios.” Ou a reafirmação de que “Deus tudo pode”, como aparece na questão 119 em que a IA, em vez de discutir a nossa compreensão a respeito de Deus, simplesmente se contradiz ao afirmar que “Deus poderia, em Sua onipotência, isentar os Espíritos das provas e desafios necessários ao seu progresso, mas isso não estaria em harmonia com as leis de justiça e evolução que regem o universo.”

Também não espere uma análise crítica mais sofisticada, como aquela que discute algumas crenças fundantes do espiritismo, como ocorre nas questões 85 e 86:

85. Qual dos dois, o mundo espírita ou o mundo corpóreo, é o principal, na ordem das coisas?

O mundo espírita, que preexiste e sobrevive a tudo.”

O algoritmo não foi orientado a questionar essa ordem de prioridade, se ela apenas reflete o imaginário cristão de “céu” e “vida futura”, em detrimento da realidade objetiva da existência humana. Para o espiritismo, o mundo material é o grande palco da luta humana; é aqui que o processo de aprendizado se estabelece e que as relações se aprimoram. Nas palavras da IA, “a encarnação oferece oportunidades de amadurecimento, evidenciando o potencial de transformação de todos os seres humanos” (362). Ocorre que aquela resposta considera o mundo espiritual como “principal”, o que suscita importantes questões existenciais, inclusive do ponto de vista da responsabilidade da espécie humana para com o seu habitat natural. Esses questionamentos só tem como serem obtidos do ChatGPT se forem solicitados, induzidos. A IA não tem vontade própria. Portanto, em muitos pontos esse tipo de reflexão crítica estará ausente.

Não se pode pretender que o ChatGPT filosofe onde é preciso filosofar; não é essa a sua especialidade. Ao que parece esta continuará sendo uma faculdade humana. Por exemplo, ao analisar a questão da “forma dos espíritos”, que Kardec tentou responder na questão 88, a IA surge com resposta tão inusitada quanto “dependendo do contexto e do nível de percepção de quem os observa”, como se fosse possível a alguém observar um espírito. Ou ao dizer que a “cor do espírito” tem a ver com a sua pureza, sabedoria e “energia”. Ou ainda, afirmar que os “espíritos mais evoluídos têm total liberdade em relação à matéria e podem movê-la ou influenciá-la de maneiras específicas, se necessário” (91), sem a menor preocupação se isso é ou não uma afirmação sustentável pela observação. Também não consegue se afastar da ideia de “espíritos errantes” e manter a sua opção anterior, que os espíritos podem constituir “comunidades espirituais”.

O mesmo ocorre com relação a romper com determinados paradigmas muito bem consolidados no universo espírita, e que estão sendo questionados no ambiente da filosofia. Um evolucionismo social elementar orienta muitas das respostas (vide a questão 130), sem qualquer reflexão a respeito da sua pertinência. Do mesmo modo, a abordagem individualista, as referências baseadas no modelo platônico em que tudo se dirige a um ideal de perfeição, o uso indiscriminado dos conceitos de perfeição e imperfeição ou resumir a complexidade humana ao “intelecto e moral” (364). A IA reafirma a ideia questionável de que a memória espiritual reside no perispírito (135), que este seria uma forma sutil de matéria, e até algumas contradições em relação ao pensamento de Kardec sem a devida justificativa, como na questão 156 quando Kardec considera a possibilidade de um final de vida com funções orgânicas apenas residuais, já desligados corpo e espírito, e o ChatGPT insiste em que o desligamento total “depende da parada completa das funções vitais.” O mesmo na questão 186, quando o ChatGPT inventa que nos mundos superiores os espíritos mais elevados “interagem com o ambiente (material) de forma mais direta e eficiente”.

Ao que parece, deve ter sido solicitado ao ChatGPT que analisasse e desenvolvesse cada questão segundo os conceitos atuais no campo da ciência e da filosofia. Em razão disso, quase como um padrão, a maioria das respostas estão apresentadas em três parágrafos onde o primeiro desenvolve a ideia original, o segundo estabelece alguma contextualização com os conhecimentos atuais e o terceiro simula uma possível conclusão, começando, quase sempre, com a palavra “portanto”. É assim que, ao revisar temas como o perispírito (93 – 95) ou a “escala espírita” (96 a 113) a IA termina repetindo conceitos e argumentos presentes no capítulo, acrescentando algo a respeito da visão atual no universo do espiritualismo e estabelecendo alguma relação com o que se estuda hoje no campo da ciência, oferecendo uma análise desprovida de profundidade. Às vezes ela esboça uma abordagem baseada nos atuais estudos sociais, mas falta-lhe um direcionamento para a sociologia e a antropologia. Ainda assim, a maioria das respostas oferece alguma contribuição útil. Ao responder, na questão 92-a, se “os espíritos irradiam com igual força”, a IA encerra sua revisão do texto observando que “esse conceito de irradiação não tem uma correspondência direta na ciência moderna, mas é amplamente aceito nas tradições espiritualistas como uma forma de descrever o impacto que os Espíritos podem ter no mundo espiritual e material.”

Um exemplo de como a IA melhora algumas das respostas é a questão 115, que aborda a maneira como os espíritos se desenvolvem e adquirem conhecimentos:

Eles começam sem saber, e é por meio das vivências, desafios e escolhas que fazem no decorrer de suas encarnações e experiências no mundo espiritual que acumulam sabedoria e desenvolvem suas qualidades morais. Esse processo de evolução é contínuo e guiado pelo uso do livre-arbítrio, que lhes permite crescer e se aperfeiçoar ao longo do tempo.

Também ao revisar a questão do desenvolvimento das faculdades do espírito; na questão 118, em que Kardec afirma a impossibilidade de o espírito degenerar, ou de “não retrogradar”, o ChatGPT agrega observações interessantes, a saber:

Do ponto de vista filosófico e psicológico moderno, a ideia de evolução contínua é mais complexa. O comportamento e as atitudes de um indivíduo podem ser influenciados por circunstâncias externas, traumas ou escolhas que parecem representar retrocessos. Ainda assim, o conhecimento e as experiências adquiridas continuam fazendo parte da consciência, mesmo que temporariamente ofuscados por desafios.

Portanto, embora o progresso espiritual seja geralmente visto como um caminho ascendente e permanente, é reconhecido que a jornada pode incluir momentos de dificuldade e resistência. No entanto, o potencial para retomar o crescimento sempre permanece, reforçando a ideia de que a evolução espiritual é um processo contínuo, ainda que não linear.

O mesmo pode-se dizer da questão 144, a respeito da “alma do mundo”. A resposta oferecida pela IA remonta à filosofia grega e conclui com abordagens baseadas no holismo e na ecologia profunda, portanto, muito mais rica que a abordagem original. Mesmo assim ela não consegue captar sutilezas filosóficas contidas na resposta, como a ideia de que “por alma da Terra se deve entender o conjunto dos Espíritos abnegados que dirigem para o bem as vossas ações”, ou a de que qualquer espírito está sujeito a reencarnar em uma posição socialmente desvantajosa em uma próxima experiência terrena (193).

Pelos seus inúmeros acertos o trabalho merece elogios e justifica-se sua utilização por palestrantes e coordenadores de grupos de estudo, mas não se pode perder de vista que, assim como se dá com a mediunidade, no texto original, a IA também faz afirmações questionáveis e até sem sentido (579), o que mantém a necessidade de uma criteriosa leitura crítica.

O último ponto a considerar é que muito da beleza de O Livro dos Espíritos está na linguagem utilizada, no diálogo que se estabelece em alguns momentos do texto. Mesmo a linguagem teológica adotada com bastante frequência por Kardec, possui sua beleza, sua poesia. As provocações, a fina ironia, o diálogo espirituoso, o humor refinado, compõem um conjunto que é típico da obra, como na questão 138:

138. Que se deve pensar da opinião dos que consideram a alma o princípio da vida material?

É uma questão de palavras, com que nada temos. Começai por vos entenderdes mutuamente.”

Essa riqueza se perde na revisão feita pela IA. Em lugar desse confronto de ideias possibilitado pelo diálogo via mediunidade, temos um texto frio com uma análise quase técnica de cada assunto. Os comentários de Kardec, seus longos ensaios filosóficos (222, 257), quase sempre muito mais ricos que as respostas atribuídas aos espíritos, as longas e belas dissertações mediúnicas, ainda que retratando a visão de mundo do século XIX (385 e 495), deixam de existir ao submeter o texto à IA. Perde-se a beleza dos elementos comparativos, o brilho de alguns exemplos tirados da vida cotidiana; o algoritmo simplesmente junta tudo em uma única análise, às vezes extremamente resumida, às vezes desnecessariamente mais longa. Algumas ideias que só podem ser percebidas pela perspicácia de uma análise mais sofisticada, como a da ação de cocriação na questão 132 ou da evolução do princípio espiritual na 540, se perdem na frieza da análise binária, por mais bem desenvolvida e até surpreendente que a questão se apresente na elaboração feita pela IA.

Por isso que esse texto serve apenas de apoio para quem deseja ler Kardec sob um olhar mais atual; sob todos os demais aspectos, o texto original continua insubstituível.

Comentários