Elias I. Moraes
Embora com uma abordagem doutrinária, o autor demonstra uma intenção de fazer ciência espírita. Tanto que ele resulta de uma atividade realizada com critérios e procedimentos muito bem definidos, com um grupo estruturado com essa finalidade e realizando os devidos registros. Assim, ele começa por apresentar a fundamentação teórica – kardequiana – e a sua proposta metodológica, que servirá de base aos quarenta casos que ele apresenta em seguida, devidamente documentados, resultado do projeto desenvolvido no grupo de pesquisa espírita por ele coordenado.1
Sob essa perspectiva – doutrinária – o livro tem como pontos fortes a riqueza e a beleza dos casos, muito envolventes, um exemplo do quanto uma atividade mediúnica bem orientada pode oferecer de consolo e reconforto espiritual às famílias que lidam com o luto decorrente do falecimento de um ente querido. Além disso ele oferece uma consistente proposta metodológica para grupos espíritas que desejem adotar a prática das evocações nas suas atividades mediúnicas.
A apresentação de alguns detalhes da reunião possibilitam ao leitor acompanhar mentalmente o desenvolvimento do caso ao longo da sessão mediúnica, a reação dos médiuns, suas percepções, o que resulta de psicografia, de psicofonia ou de percepções medianímicas, que ele chama de psicoscopia. Cabe destaque para outro método por ele apresentado, o da “varredura medianímica”, que consiste em destinar um tempo para que os médiuns direcionem suas percepções mediúnicas e anímicas tendo em vista um caso específico (pág. 44).
No início de cada caso há uma descrição bastante resumida – talvez excessivamente resumida – destinada a orientar o entendimento do que foi obtido na sessão mediúnica na qual o mesmo foi apresentado. Nesse ponto já se pode destacar uma das limitações do texto: ele não apresenta a data da reunião e nem qualquer elemento que possibilite ao leitor distinguir os diferentes médiuns que participam daquela ação e nem o horário em que cada comunicação foi obtida. A falta desses dados compromete qualquer pretensão, por parte do leitor, de uma análise mais detalhada dos possíveis aspectos científicos do projeto.
Outra dificuldade é definir o período temporal em que o projeto foi desenvolvido; o autor não apresenta nenhuma informação nesse sentido. A apresentação do livro data de abril de 1999, e a mensagem “objetivando o frontispício deste livro”, de setembro de 1998. Como existem solicitações de familiares datadas de 1995 (pág. 161), deduz-se que o projeto deve ter sido desenvolvido entre 1995 e 1998. Em razão disso, as datas apresentadas ao longo texto são um desafio para o leitor mais analítico, que deseja compreender como se deu o desenvolvimento de cada caso e do conjunto das evocações.
É um trabalho corajoso, no qual o autor pretende resgatar as práticas adotadas por Allan Kardec, devidamente atualizadas para o nosso tempo. É assim que ele realiza até mesmo a evocação de um espírito encarnado, “um jovem em dificuldade”. Nesse caso específico, não se trata apenas de um experimento, como os de Kardec, mas de uma intervenção em favor de um jovem que enfrentava conflitos existenciais. Pelos resultados subjetivos observados ele entende que o objetivo foi alcançado, que foi o de “acalmá-lo e reconduzi-lo aos caminhos da paz” (pág. 153).
Talvez fosse melhor que o autor já tivesse afirmado de partida que ele é médium, e que atuou em alguns casos como médium. A impressão inicial é a de que ele apenas coordena as atividades, o que seria um atestado de um possível distanciamento em relação ao objeto de estudo. O leitor descobre por si mesmo que há algumas comunicações em que ele atuou como médium, o que não deixa de ter implicações importantes para o conjunto do trabalho, em especial suas conclusões.2
Falta uma análise mais crítica em torno das faculdades mediúnicas utilizadas na pesquisa, tanto quanto da dificuldade, já apontada por Kardec, de identificação dos espíritos. Em alguns casos houve duas e até três comunicações por médiuns diferentes, atribuídas ao mesmo espírito, ao que tudo indica, psicografadas ao mesmo tempo. Qual delas pode ser seguramente atribuída ao espírito? E não se trata de versões diferentes da mesma ideia; observam-se tanto semelhanças quanto contradições nos seus conteúdos.3 O autor não discute essa questão, muito importante para ter sido desconsiderada num estudo a respeito de mediunidade e, sobretudo, de evocações.
O mesmo se verifica em relação às semelhanças e contradições entre as mensagens psicografadas.4 São elas que evidenciam os limites e as possibilidades do processo medianímico, possibilitando uma rica discussão em torno das suas implicações teóricas, especialmente em se tratando das contradições. Uma análise mais crítica, num viés minimamente científico, não deixaria de levar em conta também a grande quantidade de mensagens de cunho genérico, que apresentam baixa ou nenhuma relação com o caso objeto de atenção do grupo.
Isso nos remete também à questão dos critérios de identificação adotados pelo autor que, além de possíveis evidências contidas no texto, toma como base a “identificação vibratória” do espírito, ou seja, a reação emocional do familiar ao tomar contato com o comunicado medianímico.5 Será esse um critério confiável? Em alguns casos esse é um critério apenas auxiliar, mas há casos em que esse é o principal critério, na falta de outros elementos.
Não há como negar que o autor se convence facilmente tanto da identidade dos espíritos quanto dos relatos apresentados. Leves indícios e pequenas convergências nas narrativas são tidos como “garantia de realidade” (pág. 198).
Embora pretendendo realizar um trabalho de natureza científica, o autor continua atuando no limite das suas crenças espíritas sem nenhuma preocupação em testar a validade dessas hipóteses, como a de que os “espíritos superiores” controlam a reunião (pág. 40); que os médiuns “veem” os espíritos (pág. 74 e 106); que pessoas são “retiradas da vida corpórea (…) pois alguma coisa estava se armando para complicar-lhe a existência” (pág. 109); que as vítimas são culpadas pelos crimes que as vitimaram (pág. 155); que tudo obedece a uma rígida “programação reencarnatória” (pág. 158).
A mais questionável é que o espiritismo não é uma criação de Allan Kardec, que “tudo lhe foi dado (faltou dizer pronto) pelo Espírito de Verdade e os seus assessores espirituais” (pág. 244). Inclusive, as últimas linhas do livro denunciam um viés fortemente religioso, quando ele lamenta; “Ai daquele que interferir com a verdade, enganando os mais humildes e pequeninos, impedindo-os de terem contatos com os seus entes queridos que já partiram para o além.” De fato, ao longo de todo o texto ele sacrifica a cientificidade em favor da crença.
Inclusive a sua abordagem à questão do suicídio é pautada na visão moralista vigente até então no meio espírita, visto como “ato de fuga intempestiva da vida, de quem não tem Deus no coração” (pág. 199), um “ato criminoso” (pág. 200), ainda que o texto mediúnico já incorpore a ideia de que o suicídio tem como causa a depressão, e não a “covardia” moral (pág. 137) .
Confirmando a tese defendida em O Processo Mediúnico,6 os médiuns reproduzem nos seus textos e relatos orais aquilo que permeia o seu imaginário, inclusive suas crenças, como no caso do “avô amigo”, onde os sofrimentos pós-morte do espírito são associados à necessidade de “resolver suas questões com a lei divina” (pág. 134). A grande maioria dos textos evidencia o que temos defendido como sendo o aspecto performático da mediunidade: os textos obedecem a um padrão de ideias e argumentos típicos da mentalidade espírita.
O mesmo se verifica com relação à descrição dos ambientes espirituais. Reproduzindo o imaginário chicoxavierano que se estabeleceu no Brasil a partir da chamada série André Luiz, “o mundo espiritual assemelha-se quase totalmente ao terreno, no que concerne à sociedade organizada”. As narrativas falam de cidades, hospitais, escolas, pousadas (pág. 185), “casas de repouso e readaptação” (pág. 151) e uma “casa simples, humilde, mas cheia de paz” (pág. 169). Não que se deva considerar essa realidade como impossível, mas seria desejável no mínimo uma análise comparativa dessas descrições com aquelas verificadas em outras culturas e tradições espirituais, como os relatos de Davis e Swedenborg, bem como os das tradições não cristãs.
Embora demonstre uma razoável compreensão dos processos medianímicos envolvidos na prática mediúnica, o autor não desenvolve qualquer tentativa de teorização a esse respeito. Seu viés é confirmativo das teses de Allan Kardec, e seu objetivo principal é estimular que outros grupos adotem sua proposta metodológica. Para o autor, “um bom termômetro para a avaliação das tarefas é justamente a possibilidade de atender aos grandes desesperados. A nossa capacidade de amar é posta à prova” (pág. 50).
É uma pena que, diante de tão rico material, o autor tenha se contentado com uma abordagem puramente doutrinária e consoladora, e ter passado longe de uma discussão minimamente científica, especialmente porque, inicialmente, ele apresenta este como um dos objetivos de seu livro.
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1Na pág. 30 o autor informa terem sido tratados oitenta e nove solicitações. Destas, quarenta foram publicadas.
2Nas páginas 225, 227 e 231 há textos que ele afirma ter “canalizado”. É possível que haja outros não informados.
3Isso fica muito evidente nas pág. 79 e 80, 85 e 86, 90 e 91, 94 e 95, 123 e 124 e 229.
4Nas pág. 98, 126 e 150 há bons exemplos de semelhanças entre as narrativas medianímicas, e nas pág. 126, 150, 167, 178, 195, 223 e 224 exemplos de contradições.
5Ele afirma ter se baseado nesse critério nas pág. 39, 76, 211, 227 e 241.
6Moraes, Elias. O Processo Mediúnico: Possibilidades e Limites na Produção do Conhecimento Espírita. Ed Aephus, 2023.
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