Elias Inácio de Moraes
Reunião de estudos na Casa Espírita. Palestra esclarecedora e envolvente e, logo em seguida, os passes para as pessoas em sofrimento.
A moça entrou na sala
de passes meio cambaleante; teve que ser amparada pela senhora que orientava a
entrada. Findo o passe ela tentou levantar-se e sentiu fraqueza. Caiu em pranto
convulsivo como quem suplica por socorro. O grupo de passistas liberou os
demais pacientes enquanto lhe davam alguma atenção.
Controlando o choro
ela explicou que havia engravidado do namorado e, vendo-se rejeitada pelo pai
da criança, tomou medicamentos para o abortamento. A medida se mostrou
problemática, porque estava tendo uma hemorragia intensa e não tinha recursos
para procurar um médico particular da sua confiança. Também não tinha coragem
de procurar ajuda num posto de saúde pública com medo de vir a ser presa, como
já havia visto na Internet.
Os médiuns estavam
confusos, não sabiam como proceder. Um deles, que era Promotor de Justiça,
percebeu a gravidade da situação e propôs conversarem com o Dirigente da
reunião. Chamando-o à sala de passes, explicou que a moça havia cometido um
aborto e que, pelas leis brasileiras eles não poderiam deixar de denunciá-la
sob risco de serem acusados de omissão.
O dirigente lembrou-se
de imediato da passagem de Jesus diante da mulher flagrada em adultério.
Percebendo a delicadeza da situação, uma vez que seu colega era um agente da
Lei e poderia não compartilhar do seu entendimento, sugeriu que adotassem como
referência a recomendação de Jesus para os homens que levaram à sua presença a
mulher surpreendida em adultério.[1]
Momento de silêncio e
reflexão.
Uma senhora mais idosa
deu parecer contrário à medida. "Quem de nós nunca errou?" Outro
senhor lembrou-se de drama semelhante vivido com sua filha quase uma década
atrás e também entendeu que não seria o caso de denunciar a moça, além de ser
perigoso expor sua situação em um posto de saúde pública.
O Promotor de Justiça,
com a voz embargada, pareceu recordar-se de algum episódio doloroso da sua
própria juventude. Tomou a frente e ofereceu-se para levar a jovem no seu
próprio carro a um médico amigo que saberia cuidar da saúde da moça com a
misericórdia e a discrição que o caso requeria, sem a preocupação de denunciá-la
às autoridades.
...o0o...
Sob a perspectiva
doutrinária o Espiritismo concorda com o aborto somente naquela situação a que
se refere à questão 359 de O Livro dos Espíritos, ou seja, quando a vida da mãe
está em risco. Apesar de as leis brasileiras já o permitirem nos casos de
violência sexual e de malformação do feto, entende-se que mesmo nestes casos
seria bom que fosse evitado. Trata-se de experiências que podem ser importantes
tanto para a mulher e sua família quanto para o espírito reencarnante.
Fora destes casos a
legislação atual prevê pena de detenção por um a três anos para a mulher que
provoque aborto em si mesma ou consinta que outra pessoa o provoque.[2] Já
houve casos de moças que tentaram provocar o aborto mediante uso de
medicamentos e que, em tendo hemorragias intensas, foram presas em flagrante ao
tentar conseguir atendimento médico em postos do SUS. Algumas mortes foram
registradas por falta de atendimento médico tempestivo. Normalmente essa
situação atinge apenas as moças de famílias pobres, que não dispõem de recursos
para a assistência médica que esse tipo de situação requer.
Em uma pesquisa
recente a respeito dessa temática um ator foi colocado na condição de pai de
uma moça que havia cometido aborto. Ele buscava orientação junto a palestrantes
espíritas, indagando se deveria ou não denunciar sua própria filha à polícia,
já que o aborto é um crime. Em todos os casos ele foi orientado a não
denunciá-la à justiça humana e a deixar que ela respondesse apenas à Justiça
Divina, que cuidaria do caso de maneira amorosa.
Colocados diante de
situações concretas, nós espíritas tendemos a defender a não aplicação da lei,
mas, se consultados a respeito, a maioria de nós defende que o aborto deve
continuar sendo crime diante das leis humanas. Dois pesos e duas medidas. Ao
próximo, a Justiça Divina; ao distante, a justiça do mundo.[3]
O Espiritismo, em
sintonia com o Evangelho de Jesus, propõe fazer aos outros como gostaríamos que
os outros nos fizessem. Sua principal diretriz é a educação do espírito, com
atuação preventiva para evitar o mal antes que ele aconteça. Depois de
acontecido, seja qual for a lei humana que o regule, prevalece a
obrigatoriedade da reparação. André Luiz esclarece que o critério da Justiça
Divina é sempre o da pena mínima[4], voltado para a conversão do pecador e não
para o seu sacrifício[5]. Na expressão de Emmanuel, “a misericórdia é alicerce
da Lei de Deus”.[6]
A esmagadora maioria
dos abortos que acontecem atualmente são provocados mediante orientações
obtidas em sites da Internet. Uma moça que se veja pressionada a abortar – o que
é o mais comum – simplesmente digita no celular uma consulta a respeito de como
realizar um aborto e já encontra dezenas de sites que oferecem os medicamentos
abortivos e ainda disponibilizam gratuitamente toda a orientação a respeito dos
modos de usar e das precauções a serem observadas. Esses sites afirmam que em
90% dos casos o aborto acontecerá sem maiores complicações.
Isso coloca em debate
a eficácia da lei atual para evitar que os abortos aconteçam. Não resta dúvida
de que ela funciona muito mais como uma punição severa para uma ou outra moça
que não foi bem sucedida no seu intento, mas também como uma pena de morte
antecipada para o futuro bebê, na medida em que afasta a mulher de qualquer
possibilidade de orientação e assistência que possa evitar o ato infeliz.
Existem projetos de
lei tramitando no Congresso Nacional propondo a criação de políticas públicas
de prevenção do aborto até a 12ª semana da gravidez, mediante orientação e
assistência prévia à mulher que porventura pretenda abortar. O ponto crítico é
que uma política pública dessa natureza só é possível se o aborto deixar de ser
considerado crime quando forem atendidas essas condições. E é neste ponto que
muitos espíritas, por não concordarem com o aumento das situações de
descriminalização do aborto, preferem deixar a situação como está, apesar das
mortes maternas – que poderiam ser evitadas – e dos milhares de abortos
clandestinos que continuam acontecendo à revelia da lei.
Em uma dessas
propostas qualquer mulher que desejasse abortar sem incorrer em prática
criminosa deveria buscar um posto de saúde pública, onde seria atendida por um
médico, que a encaminharia obrigatoriamente para entrevistas com uma psicóloga
e uma assistente social.
A favor dessa proposta
existe o argumento de que esse procedimento, em sendo obrigatório, pode
possibilitar à espiritualidade meios de influenciar pessoas no sentido de
ajudar essa mulher a perceber o equívoco em que está incorrendo, e a refletir
sobre outras possibilidades, inclusive a de uma adoção futura. Desse modo se
auxiliaria também ao espírito reencarnante, evitando talvez uma ocorrência tão
dramática para a história espiritual de ambos, como é o abortamento.
Do lado contrário
existe o fato de que, se mesmo com toda a orientação essa mulher persistir na
intenção de cometer o aborto, o fato de não ser mais crime configuraria uma
certa aceitação social do ato, se não sob o ponto de vista moral, ao menos sob
o ponto de vista legal. Isso implica também que atividades hoje clandestinas
passariam a ser realizadas à luz do dia, sob o respaldo da legalidade, o que
não deixa de ser desconcertante.
Por outro lado, em se
estabelecendo um paralelo com aquela passagem de Jesus, é muito difícil admitir
que ele concordasse com a prisão de uma mulher que tivesse incorrido na prática
de um aborto, por mais grave que se possa considerar esse ato. “Eu também não
te condenarei” é a sua sentença, desprovida de qualquer julgamento ou censura.
Segue-se então uma recomendação, que revela um sentido profundamente educador:
“Vai-te e, de futuro, não tornes a pecar”.
Não se trata de uma
questão fácil. Se aceitar a ampliação das situações de descriminalização, mesmo
mediante a adoção de políticas públicas de prevenção, implica em validar de
algum modo uma conduta claramente danosa ao espírito reencarnante, manter a
legislação atual significa tão somente deixar a mulher que deseja abortar à
mercê dos próprios conflitos e angústias, sem qualquer tipo de apoio ou
orientação, com a vida – ou a morte – do futuro bebê à distância de apenas um
toque na tela do celular.
[1] Bíblia de
Jerusalém. Evangelho de João, 8:1-11
[2] Código
Penal brasileiro. Vide em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm
[3] Vide a
pesquisa completa no link goo.gl/sDZldW
[4] Xavier,
Francisco C; VIEIRA, Waldo. Evolução em Dois Mundos. Pelo Espírito André Luiz.
FEB. 2ª parte, cap. XIV.
[5] Bíblia de
Jerusalém. Evangelho de Mateus, 9:13.
[6] Xavier,
Francisco C. Palavras de Vida Eterna, lição 80 – Ed. CEC, Uberaba/MG, 1987.
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