FAMÍLIA: UMA QUESTÃO PLURAL


Elias Inácio de Moraes

Chamaram a atenção nas redes sociais do mundo inteiro os comentários em torno da presença do primeiro cavalheiro de Luxemburgo, o arquiteto Gauthier Destenay, ao lado das primeiras damas dos países participantes da reunião da OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte – em 25 de maio de 2017. Ele é casado desde 2010 com o advogado e político Xavier Bettel, que atualmente ocupa o cargo de primeiro-ministro daquele país.

Fenômeno social semelhante já havia ocorrido no início de abril quando o jovem André Lodi, 14 anos, participou do programa Altas Horas, da Rede Globo, e conversou sobre sua experiência como filho de Ana Cláudia e Ana Lúcia, duas mulheres que consolidaram uma família homoafetiva numa época em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não era regulamentado no Brasil. Além de André elas tiveram também a filha Ana Laura, ambos nascidos mediante inseminação artificial.

Nas duas situações houve manifestações de apoio, muitos elogios à atitude corajosa de todos em se exporem, como também houve manifestações de preconceito, inclusive muitas críticas maldosas. Ao mesmo tempo, um exemplo de aceitação e inclusão, tanto por parte do Programa Altas Horas quanto por parte da OTAN, que tratou o caso com toda a naturalidade, numa clara atitude de valorização das posições oficiais da ONU – Organização das Nações Unidas – que tem estimulado os países a adequarem suas leis a esse novo tempo, mediante o reconhecimento das uniões homoafetivas.

Essas duas ocorrências assumem um significado relevante pelo fato de neste momento estar havendo um embate no Congresso Nacional em torno de um projeto de lei denominado Estatuto da Família, em cujo texto a Câmara dos Deputados fez inserir ainda em 2015 uma definição de família como sendo “a entidade familiar formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”.

Essa inserção foi promovida por iniciativa de grupos religiosos visando excluir da cobertura legal do instituto do casamento as famílias homoafetivas, integradas por um casal de homens ou por um casal de mulheres, com ou sem filhos. Como agravante o texto da lei ainda em tramitação excluiu também uma gama enorme de outras configurações familiares ancoradas nas figuras de avós, tios e padrinhos, ou de filhos sem a companhia dos pais.

Um dos destaques rejeitados propunha que o conceito de família, para efeitos da lei, fosse estabelecido como sendo o “núcleo social formado por duas ou mais pessoas unidas por lanços sanguíneos ou afetivos, originados pelo casamento, união estável ou afinidade”. Como se vê, um conceito bem mais abrangente, que pretendia abrigar todas as formas de união atualmente existentes.

Recentemente, em mais um capítulo desse embate, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou uma alteração no Código Civil que muda o conceito de união estável, substituindo os trechos que se referem a união entre um homem e uma mulher para entre “duas pessoas” ou “cônjuges”, passando a incluir, assim, os casais homossexuais. O senador Magno Malta, pastor evangélico, apresentou recurso tentando reverter a decisão que ele considera uma “aberração”.

Examinando a questão sob a ótica da Doutrina Espírita é forçoso reconhecer que esse tipo de discussão não estava posto à época de Kardec. Um exame atento das obras da codificação, entretanto, deixa evidente que o conceito de família que os Espíritos apresentam a Kardec é abrangente, universalista, englobando tanto as relações do mundo material quanto as do mundo espiritual.

Formam famílias os Espíritos que a analogia dos gostos, a identidade do progresso moral e a afeição induzem a reunir-se. Esses mesmos Espíritos, em suas migrações terrenas, se buscam, para se agruparem, como o fazem no espaço, originando-se daí as famílias unidas e homogêneas.[1]

Ao discutir o casamento, Kardec faz ainda uma clara distinção entre a lei civil, ou seja, a lei dos homens, e a lei de Deus. “A lei civil tem por fim regular as relações sociais e os interesses das famílias, de acordo com as exigências da civilização; por isso, é útil, necessária, mas variável”. Mas acima da lei civil, o que prevalece em todas as uniões é a “lei de amor”, por ser imutável, já que se constitui em uma lei de Deus.[2]

Desse modo, “não são os da consanguinidade os verdadeiros laços de família e sim os da simpatia e da comunhão de idéias, os quais prendem os Espíritos antes, durante e depois de suas encarnações.”[3] Poder-se-ia concluir que, sob a perspectiva da codificação kardequiana, não são os vínculos formais estabelecidos segundo a lei humana que definem os laços de família, e sim os da simpatia e da comunhão de ideias e de ideais.

Na década de 1940, no seu livro O Consolador, o espírito Emmanuel já sinalizava nessa mesma direção, com uma visão ampliada do conceito de família e afetividade, ao afirmar que

Das expressões da sexualidade, o amor caminha para o supersexualismo, marchando sempre para as sublimadas emoções da espiritualidade pura, pela renúncia e pelo trabalho santificantes, até alcançar o amor divino, atributo dos seres angelicais, que se edificaram para a união com Deus, na execução de seus sagrados desígnios no Universo.[4]

Trinta anos mais tarde, no programa Pinga Fogo, o médium Chico Xavier responderia de modo bem mais claro, ainda sob orientação de Emmanuel, como ele mesmo afirma:

Acreditamos que o comportamento sexual na humanidade sofrerá de futuro revisões muito grandes porque nós vamos catalogar do ponto de vista da ciência todos aqueles que podem cooperar na procriação e todos aqueles que estão em uma condição de esterilidade. A criatura humana não é só chamada à fecundidade física, mas também à fecundidade espiritual.[5]

No censo de 2010 o IBGE já havia identificado a existência de 60.002 lares formados por casais do mesmo sexo, antes mesmo de o STF – Supremo Tribunal Federal – decidir formalmente, em 2011, pelo direito de os casais homoafetivos serem reconhecidos como “entidade familiar”. Nesse mesmo ano a Quarta Turma do STJ – Superior Tribunal de Justiça – decidiu em favor de duas mulheres que pleiteavam na justiça o direito de se casarem formalmente.

O Acórdão proferido no Recurso Especial nº 1.183.378/RS do STJ afirma que “a dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e que orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir família da proteção jurídica representada pelo casamento”.

Dois anos mais tarde, já em 2013, o CNJ – Conselho Nacional de Justiça – determinou que nenhum cartório de registro civil poderá negar-se a proceder o casamento civil para casais do mesmo sexo, incluída a respectiva cerimônia conduzida pelo Juiz de Paz. Desde então mais de 20.000 casais homossexuais já se casaram oficialmente.

Temos, portanto, neste tema, uma situação típica daquilo que Kardec nomeou em O Livro dos Espíritos como sendo um “progresso da legislação humana”.[6] Mediante o avanço verificado ao longo do último século estamos sendo naturalmente levados a reconhecer que família, na atualidade, é um conceito muito mais abrangente.

Neste novo conceito de família acham-se incluídos os núcleos tradicionais, formados por um casal heteroafetivo e seus filhos, se ele os tiver, bem como aqueles integrados por casais homoafetivos, com ou sem filhos, biológicos ou adotivos. Do mesmo modo que aqueles outros constituídos por avós, tios ou padrinhos que assumiram a responsabilidade por seus netos, sobrinhos ou afilhados; irmãos que vivem sozinhos sob o mesmo teto; além de outras possibilidades que o exame das particularidades pode ir descortinando.

Aliás, uma concepção sintonizada com o enfoque dado pelos espíritos a Allan Kardec, como sendo um grupo de espíritos que se atraem pela “analogia dos pendores”, ou “unidos pelos laços da simpatia e pelos fins a que visam”, e que, nas dimensões material e espiritual, podem viver juntos “unidos pela afeição”.[7]

Desde 2016 que até mesmo o dicionário Houaiss, internacionalmente reconhecido, mudou o seu verbete que define família como sendo um núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantém entre si uma relação solidária.

Importante, pois, que pelo menos nós espíritas defendamos como conceito de família toda essa multiplicidade de agrupamentos humanos regidos pelos laços do amor, tendo no instituto sagrado do lar “o templo de corações no qual as Leis de Deus nos situam transitoriamente o Espírito”[8], a fim de aprendermos as ciências da alma no aconchego do ambiente doméstico, independentemente da orientação sexual.

E que essa compreensão nos ajude a eliminar de vez todo tipo de preconceito e discriminação de que tem sido alvo as famílias homoafetivas ou as pessoas homossexuais, sobretudo portas adentro da Casa Espírita, que é o primeiro ambiente onde deve se materializar a proposta de Jesus, que é a construção do Reino dos Céus aqui mesmo, na Terra.


[1] Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, pág. 305. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 2005.
[2] Idem, ibidem, pág. 423.
[3] Idem, ibidem, pág. 299.
[4] Xavier, Francisco C. O Consolador, pelo espírito Emmanuel, questão 322. Ed. FEB, Rio de aneiro/RJ
[5] Resposta de Chico Xavier em entrevista concedida ao Programa Pinga Fogo, da TV Tupi, em 1971.
[6] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 794 e seguintes. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 2005.
[7] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 215, 278 e 517. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 2005.
[8] Xavier, Chico. Família, por Espíritos diversos. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 1981.

Comentários