Elias Inácio de Moraes
A Austrália tornou-se hoje o 27º país do mundo a reconhecer como um direito o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Alguns movimentos religiosos bradam que estamos vivendo a destruição da família e a perversão da sexualidade, pressionando sociedades e governos para que estes assuntos não sejam abordados nas escolas, o que representaria o reconhecimento oficial da diversidade sexual que caracteriza a humanidade.[1]
E quanto a nós, espíritas, qual deve
ser a nossa posição diante dessas questões?
Primeiramente, convém esclarecer que diferentes
modelos de organização familiar não eram objeto de discussão na época de Allan Kardec,
até porque prevalecia o modelo imposto pela igreja, representado pela família
nuclear. E mesmo a homoafetividade não era objeto de tanto preconceito quanto
hoje, pelo menos na França, onde as ideias de liberdade caminhavam sempre à
frente das demais sociedades. Kardec chega a comentar que a homossexualidade se
devia ao fato de o espírito reencarnar como homem ou como mulher de acordo com
a sua necessidade, levando de uma vida para outra muitas das impressões da sua
existência anterior.[2]
Mais de um século depois, já em 1970,
Emmanuel vem esclarecer que em decorrência disso o fenômeno da bissexualidade é
“mais ou menos pronunciado em quase todas as criaturas”, inexistindo uma
especificação psicológica absoluta nesse sentido. Ao contrário do que afirma o
senso comum, a humanidade se constitui de uma grande variedade de gêneros, que
vai do “acentuadamente masculino” ao “acentuadamente feminino”, resultando
disso os fenômenos da homoafetividade, da transexualidade e outras
manifestações da diversidade sexual humana.[3]
Em razão disso Chico Xavier esclarece
em entrevista à TV Tupi, ainda em 1971:
"Acreditamos que o comportamento sexual na humanidade sofrerá de futuro revisões muito grandes porque nós vamos catalogar do ponto de vista da ciência todos aqueles que podem cooperar na procriação e todos aqueles que estão em uma condição de esterilidade. A criatura humana não é só chamada à fecundidade física, mas também à fecundidade espiritual."[4]
Portanto, sob uma perspectiva
espírita, nunca existiram motivos justificáveis para que se negasse aos casais homoafetivos
o direito de se estruturarem como família, inclusive no que se refere à
possibilidade de terem filhos mediante adoção ou mesmo reprodução assistida, tanto
no caso dos casais formados por dois homens quanto naqueles formados por duas
mulheres.
Há teólogos que afirmam que até mesmo
as alegadas restrições bíblicas às uniões homoafetivas mais não são do que
manifestação do preconceito daqueles a quem ficou incumbida a responsabilidade,
a princípio, do registro das tradições orais na forma de texto e, mais tarde,
das sucessivas atualizações e traduções que o texto tem recebido ao longo dos
séculos.[5]
Portanto, se desejamos ser fiéis ao
pensamento espírita, não podemos fazer coro aos movimentos que resistem em
reconhecer o direito das pessoas que formam famílias com diferentes conformações
de desfrutarem da cobertura legal proporcionada pelo instituto do casamento, tanto
quanto não lhes podemos negar pleno acolhimento e aceitação no corpo de
trabalhadores da Casa Espírita, facultando-lhes o direito de participarem em
igualdade de condições com os casais heterossexuais das mais variadas frentes
de atuação.
E se desejamos ver, no futuro, uma
sociedade livre da homofobia e das variadas formas de violência de gênero que
hoje chegam até mesmo a ceifar a vida de pessoas que nada fizeram senão se
perceberem e se manifestarem de modo diferente da maioria dominante, precisamos
desde agora começar a educar as nossas crianças para a aceitação dessa
diversidade, tanto em termos de orientação afetiva quanto de estruturação
familiar.
Até porque pode dar-se que sejam as
nossas próprias crianças a se verem e se sentirem diferentes de outras crianças
na escola, ou a conviverem com a diferença alheia, com o dever do respeito e da
aceitação, inclusive para com colegas oriundos de famílias estruturadas de modo
diferente das que até então tem sido entendidas como habituais, muitas delas
formadas por dois pais ou por duas mães.
Talvez essa compreensão seja difícil para
a nossa geração, educada sob a pressão do preconceito religioso que nos levou a
rejeitar durante décadas essa realidade que hoje se impõe aos nossos olhos, mas
será muito bom que pelo menos nossos filhos possam se desenvolver em outro
clima de compreensão, certos de que esses diferentes modos pelos quais se
estruturam atualmente as famílias não afetam de modo algum o clima de amor e de
pertencimento que caracteriza a figura abençoada do lar.
[1]
Escolhemos a foto que encabeça este artigo como um ato de respeito à dor vivida
por muitos casais homoafetivos que, em virtude do preconceito até então vigente,
sentiram-se no dever de ocultar a sua condição durante anos ou até mesmo
décadas, e que só agora vislumbram a possibilidade de manifestarem livremente
na sociedade o seu afeto.
[2] Kardec,
Allan. Revista Espírita, Jan 1866.
Ed. IDE, Araraquara/SP.
[3]
Xavier, Francisco C. Vida e Sexo,
pelo Espírito Emmanuel. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4]
Resposta de Chico Xavier em entrevista concedida ao Programa Pinga Fogo, da TV
Tupi, em 1971.
[5] Vide
artigo a respeito, citando fontes, disponível em http://www.ggb.org.br/cristao.html
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