LEGISLAÇÃO ANTIABORTO: A difícil relação de equilíbrio entre duas vidas que se conflitam.



Elias Inácio de Moraes

Uma amiga que me é muito querida me apresentou uma série de perguntas, todas muito pertinentes. Achei que ela merece respostas mais cuidadosas e, portanto, um pouco mais extensas, que apresento nesta postagem:

“Gostaria que me respondessem algumas perguntas a fim de que eu consiga ampliar minha visão e até, quem sabe, mudar meu olhar sobre o tema:”

1 – Quais seriam as reais implicações na realidade social com a descriminalização, levando em conta a realidade social do Brasil e os sistemas públicos de saúde?

R – A expectativa é que haja uma migração gradual das ocorrências da atual prática clandestina para a prática regulamentada, através do sistema público de saúde, possibilitando melhor controle e tratamento do assunto. Não acontecerá de uma hora para outra, até porque hoje é muito fácil abortar clandestinamente, e muitas mulheres preferirão fazê-lo às ocultas, pelo menos até que isso deixe de ser tabu na sociedade.

2 – Como se daria o atendimento e a procura?

R – Nos países onde existe uma preocupação em prevenir as ocorrências de aborto a mulher é orientada a procurar o serviço público de saúde onde ela é entrevistada por profissionais – normalmente um(a) médico(a) ginecologista, um(a) Psicólogo(a) e um(a) Assistente Social -, que lhe apresentarão os principais argumentos pelos quais ela deve evitar um aborto. Riscos à sua saúde física, à sua saúde psicológica, bem como amparo a situações de pressão externa, como condição financeira ou violência de gênero. Depois ela deve aguardar alguns dias (entre três e cinco) destinados à reflexão antes de uma decisão definitiva. Muitas mulheres desistem de realizar o aborto durante esse período de reflexão.

3 – Toda e qualquer mulher teria o direito, independentemente de classe social?

R – Para que um sistema seja justo não pode haver qualquer discriminação de natureza social, econômica, etc. Todos os casos devem ser tratados a partir da mesma regulamentação. Mas isso precisa ser socialmente construído, e de preferência com foco na prevenção.

4 – A luta pela descriminalização é apenas para mulheres de baixa renda, uma vez que toda a argumentação aqui apresentada diz respeito às mulheres que não tem condição de pagar por um aborto "seguro e assistido"?

R – Não. Este não é o foco da discussão, pelo menos para os movimentos religiosos, que têm como principal objetivo criar condições adequadas a uma política de prevenção, mais do que em simplesmente resguardar um suposto direito da mulher, até porque esses movimentos levam em conta também o direito à vida do futuro bebê.

5 – Como é possível descriminalizar sem legalizar o funcionamento da rede privada de atendimento, incluindo convênios?

R – Nos países em que o aborto foi regulamentado, ao invés de simplesmente liberado, o Estado controla todas as ocorrências. Em vários países continua sendo crime o aborto fora das condições permitidas, ou realizados em clínicas clandestinas.

6 – Como funcionaria o processo de abortar em uma perspectiva de descriminalização da mãe? Apenas ela estaria livre de responder criminalmente ou todos os envolvidos?

R – Aí é que entra a importância da participação da sociedade na elaboração do sistema de prevenção. Em vários países os agentes que cooperam para a manutenção da clandestinidade são fortemente penalizados. Médicos e clínicas só não serão penalizados se estiverem agindo em estrita concordância com a lei, de acordo com os procedimentos estabelecidos. Os movimentos religiosos que defendem a descriminalização do aborto também têm restrições quanto à liberação pura e simples, e lutam por um sistema que seja mais preventivo, sob o controle do Estado.


Sobre os projetos que tramitam:


7 – Onde está a fronteira entre descriminalização e a legalização? Como esses projetos propõem o funcionamento da rede de assistência à mulher a partir da atual?

R – Há muitas alternativas em discussão. Como o assunto não está resolvido, há muitas correntes divergentes. Os movimentos laicos defendem a simples legalização, em qualquer período da gravidez, como um direito da mulher sobre o próprio corpo. Mas entre eles há os que propõem total controle pelo Estado para evitar que a mulher que pensa em abortar fique exposta à exploração comercial. Existe também um forte movimento, em especial de pessoas religiosas, que defendem uma regulamentação baseada em uma política pública de saúde, que estabeleça parâmetros claros, de modo a estabelecer uma política de prevenção, e não uma simples legalização. A questão, então, é lutarmos por um sistema mais justo, que leve em conta também as necessidades do espírito reencarnante.

8 – Como são descritas as propostas de prevenção visando a redução do número de abortos?

R – Juntamente com a descriminalização devem ser estabelecidas as políticas públicas de prevenção, conforme descritas na resposta à pergunta 2. A redução efetiva se dará com o melhor esclarecimento da sociedade, ao longo dos anos. Não adianta esperar resultados para o próximo mês ou para o próximo ano; é preciso compreender que é uma mudança no modo de abordagem, em um processo de longo prazo, com base na conscientização, no aprendizado coletivo.

9 – Qual é a justificativa principal para que haja mudança nos artigos 124 a 128 do código penal? E como eles ficariam?

R – Esses artigos apenas determinam penas a serem cumpridas depois do fato ocorrido. Será preciso elaborar uma nova legislação que contemple o aspecto preventivo e que defina claramente as punições em caso de ocorrências fora do legalmente previsto.

10 – Casos previstos, semanas permitidas etc.

R – Na maioria dos países em que o aborto é legalizado ele só pode acontecer até a 12ª semana, quando os riscos para a mãe ainda são menores. A partir daí, somente o aborto terapêutico. Fora de determinadas condições a prática continua sendo criminalizada. Esse prazo leva em consideração também o desenvolvimento do feto, que a partir daí já apresenta um sistema nervoso formado, o que leva muitos médicos a entenderem que o aborto só seria aceitável até esse período, e que a partir daí deve prevalecer o direito do bebê. Embora se deva evitar que o aborto aconteça em qualquer período da gravidez, sob certos aspectos esse período pode ser relacionado à questão 344 de O Livro dos Espíritos, que considera que "a união (do espírito ao corpo) começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento".

11 – Levando em consideração os casos de sucesso de países como Holanda e Portugal na diminuição e dos casos opostos onde continuam muito altos como Russia e China... como podemos encaixar as semelhanças e distâncias com a realidade brasileira?

R – A comparação de diferentes realidades não parece ser um caminho viável. Culturas não se comparam. Na China havia a preocupação, inclusive, de reduzir as taxas de natalidade. A Rússia passou por um longo período de negação do espiritual. Então é muito difícil estabelecer qualquer comparação nesse sentido. O Brasil é um país onde o espiritual assume uma relevância rara. É inevitável que, por aqui, até mesmo os profissionais do sistema público de saúde interfiram de algum modo a partir das suas perspectivas religiosas. Há até quem queira exigir que isso não aconteça, mas, com certeza, isso não deve prevalecer. Nenhum profissional da área de saúde aceitará imposições nesse sentido.

12 – Como os espíritas que defendem a legalização avaliam os impactos da descriminalização do aborto sob o aspecto espiritual dos envolvidos?

R – Na clandestinidade os problemas espirituais são os mesmos, ou até maiores. Com a migração gradativa das ocorrências de aborto do sistema clandestino para o sistema público a tendência é que, mesmo nos casos em que a mãe não desista da ideia de realizar o aborto, as ocorrências tenham sido melhor avaliadas, melhor discutidas e refletidas. Isso pode possibilitar ao espírito reencarnante uma melhor compreensão dos dramas ou motivações da mulher, facilitando o entendimento e o perdão. Claro que em muitos casos isso não atenuará os vínculos de ódio que podem já estar estabelecidos, mas isso existe tanto na condição de clandestinidade quanto na de regulamentação.

13 – Como esses se baseiam do ponto de vista doutrinário sobre essa questão?

R – A questão doutrinária é muito complexa para ser contemplada em uma resposta tão curta como a situação requer. Mas há alguns pontos que não deixam margem de dúvida. O “crime”, aos olhos de Deus (LE-358) não se altera; apenas se busca, mediante a legislação humana, evitar que ele aconteça. As pessoas envolvidas, e não só a mulher, continuam respondendo normalmente pelo seu ato, cada um na medida exata da sua responsabilidade. Nesse sentido, as Leis Divinas são sempre mais justas que as humanas; e mais amorosas, buscando sempre a reparação da falta cometida a partir do critério da “pena mínima”, conforme André Luiz afirma em Evolução em Dois Mundos. Ao demais, estaríamos aplicando o preceito de Jesus de não desejar para os outros o que não gostaríamos que fosse feito conosco, bem como o do perdão incondicional e o de buscar a conversão do pecador, e não o seu sacrifício, dentre vários outros. Por último, se estaria usando o critério de associar sempre à Justiça, a Caridade e o Amor, conforme Kardec brilhantemente estabeleceu em O Livro dos Espíritos, no cap. XI da Parte Terceira, compreendendo que Fora da Caridade não há solução para os problemas humanos, em particular para os problemas relacionados à prática do aborto.

14 – É possível então fazer uma separação completa entre o homem material e o espiritual nesses casos? Ou seja, do sujeito secular e o religioso?

R – Não existe essa separação; essa distinção é artificial. O homem é e será sempre um ser espiritual em uma experiência transitória na condição humana. O que deve mudar é o nosso entendimento a respeito do papel das leis humanas na regulação da vida social. Há um entendimento que as Leis Humanas devem expressar as Leis Divinas. Essa visão apresenta um equívoco de raiz, que é crer que a Lei Divina se estabeleça com base na punição. Isto é uma visão humana. A ser assim, o que deveria prevalecer seria a questão 621 de O Livro dos Espíritos, que diz que a Lei de Deus está escrita na consciência de cada ser humano.

15 – A mulher deve ser vista e respeitada somente enquanto cidadã social? Como fica a questão consciencial perante a realidade espiritual quando, para que se ampare, mudam-se as Leis que se baseiam no axioma da vida, a fim de tentar ao máximo que ela vingue?

R – A questão consciencial permanece a mesma, e cada uma das partes envolvidas – e não somente a mulher – continuará respondendo como sempre respondeu, pelo ato cometido. Emmanuel é muito claro nesse sentido quando afirma, no capítulo XI do livro Leis de Amor, que “o aborto provocado, mesmo diante de regulamentos humanos que o permitem, é um crime perante as leis de Deus.”

16 – Onde fica o verdadeiro mérito enquanto sujeitos sociais ao defender uma bandeira que busca resolver um problema pelo seu fim e não pela sua raiz?

R – Primeiramente, é muito difícil afirmar com segurança o que é mesmo o “fim” e o que é “raiz” em um problema dessa magnitude. Problemas sociais quase sempre decorrem de questões sociais, em que pese os aspectos espirituais sempre presentes. A raiz do problema não muda, seja qual for a abordagem adotada pela sociedade; o que muda são os modos de se lidar com o problema. Na solução atual, privilegia-se a punição, sem levar em conta que o problema continua existindo. O que se busca é um sistema social que privilegie a prevenção, reconhecendo a existência do problema e adotando como foco a sua solução, ainda que a longo prazo. O mérito, se é que existe, é o de se estar lutando por um sistema que seja mais eficiente em evitar que o aborto aconteça, o que é impossível com a legislação atual, que apenas relega à clandestinidade uma prática tão nociva às pessoas e à sociedade; é o de criar condições para um maior envolvimento da sociedade, através dos seus agentes públicos, na busca de solução para o problema.

17 – E a última: quais são os diversos motivos que levam uma mulher a abortar? A Lei ampararia quais?

R – Uma pesquisa realizada em uma unidade pública de saúde de Salvador/BA apontou que 67% das mulheres apresentaram como principal motivo alguma forma de abuso por parte de um homem, que seria o namorado, o companheiro ou marido, ou o pai. As restantes alegaram questões de interesse pessoal ou meramente econômico. Isso mostra que a solução para o problema do aborto envolve toda uma mudança cultural que não tem como ser levada a efeito apenas criminalizando o ato depois de cometido. É preciso investir em acolhimento e assistência a essas 67% que se veem desprotegidas, e em educação e prevenção para as 33% restantes. Todas as mulheres que pensam em abortar merecem ser amparadas, independente dos seus motivos. Aliás, Jesus, diante das que desejam abortar apenas por motivos pessoais, talvez fizesse a mesma rogativa que fez para os seus algozes: “Pai, perdoa-lhes; elas não sabem o que fazem.”

Comentários

  1. Que ótima reflexão! Bastante clara, precisa e considera os aspectos sociais, legais e espirituais. Minha pergunta é, por que no meio espírita é tão dificil, se não, impossível, ter uma conversa nesse nível?
    Espero que consigamos, a bem da sociedade e na busca de condições mais justas e esclarecidas nos entendermos nas questões maus polêmicas também. Obrigada

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    1. Muito obrigado, Luciana, pelos seus comentários. Vamos abrindo picadas que uma hora dessas a gente consegue estabelecer um diálogo na nossa Casa Espírita. Quem sabe divulgando este breve "perguntas e respostas"? Agradeço por divulgar. Um abraço.

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