Elias Inácio de Moraes
Sugestivo o tema da Roda de Conversa promovida
pela AEPHUS – Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais –
no último final de semana: Divergência e
Fraternidade: uma difícil equação. Tendo como convidados o psicólogo
Alan Castter e a professora da UFG Ângela Teixeira, o que ficou claro ao final
do diálogo é que não se trata de uma equação apenas difícil; ela é também
inevitável, uma vez que a diversidade é um fenômeno social cada vez mais
presente, e com ela emerge também a pluralidade de ideias, de visões, de modos
de ver e compreender a vida e o mundo.
Alan Castter abriu o evento com uma reflexão a respeito dos
diversos papeis sociais que cada um de nós representa, em especial nas
atividades espíritas, e da possibilidade de exercermos de modo exagerado esse
papel. Quando isso acontece, caracteriza-se um quadro que pode ser considerado
como de “neurose”, que é quando a pessoa julga-se a “dona da verdade” ou o
“salvador do mundo”, e esse sentimento a impede de ouvir e compreender o outro.
A partir daí ele faz uma provocação: “Temos espaço interno para ouvir e
entender o que o outro pensa?
Ângela Moraes pontuou em seguida que nas sociedades não
democratizadas há uma concentração de poder de fala nas vozes de poucos, o que
gera a falsa impressão de que existe um modo de pensar único. Na medida em que
se consolidam os mecanismos democráticos de participação surge o espaço para a
manifestação da diversidade, e é quando ela começa a emergir. É o que ocorre no
momento atual do Espiritismo; começa a ocorrer uma democratização do movimento
e, com isso, vozes que até então permaneciam silenciosas começam a se fazer
ouvir.
Há quem insista em negar a existência da diversidade no
meio espírita, pondera Ângela, o que é uma ilusão. A diversidade é uma
realidade em todo e qualquer meio social; se ela não se manifesta em um determinado
meio social é porque existem relações de dominação e subjugação que obrigam as
pessoas que pensam diferente a silenciarem a sua voz em favor de uma
pseudo-harmonia. Quando a pessoa não consegue convencer pelo argumento, ela
parte para a violência verbal ou para a desqualificação do outro mediante
afirmação de que ele é “polêmico”, “questionador”, ou, o que é muito comum no
meio espírita, que “está sendo instrumento de obsessores”.
Quando a diversidade não é reconhecida começam a
verificar-se incoerências nos discursos dos diversos agentes sociais. A
Assistente Social Jane Eyre, do Centro Espírita O Semeador, narrou o caso de
pessoas espíritas que se manifestam publicamente contra o programa federal
Bolsa Família sob a alegação de que o programa “alimenta vagabundos” e que
acham importante ampliar a distribuição de cestas na Casa Espírita para atender
os “necessitados”.
Normalmente, quando questionadas a respeito de mau uso da
cesta por parte de beneficiários da Casa Espírita essas mesmas pessoas costumam
justificar que o dever da casa é o da caridade, mas que o uso fica por conta do
livre-arbítrio e da consciência de quem recebe. Mas elas não conseguem perceber
a contradição no seu próprio discurso: ao mesmo tempo em que são contra os
programas sociais enquanto política de governo elas defendem como dever social
das Casas Espíritas a distribuição de ajuda material.
O professor Luís Signates observou que até mesmo a nossa
assistência social “é excludente; ajudamos o pobre com a condição de que ele
permaneça onde está. Em 150 anos de Espiritismo a elite que o integra – a
pesquisa do IBGE comprovou que o Espiritismo sempre foi e continua sendo uma
religião da elite – nunca se misturou efetivamente com os pobres. Sua prática
preserva as demarcações de classe social."
O Sr. Luís Gomes, colaborador da casa que sediou o evento,
observou que "lemos muito, mas estudamos pouco e refletimos menos ainda.
Não seria possível construir mais convergências a partir das nossas
divergências? Não é uma questão de haver vencedores ou derrotados, mas da busca
do bom debate”. No entendimento de Adolfo Martins, da mesma Casa, “uma postura
de alteridade é o mínimo que se espera de qualquer pessoa que se diz espírita”.
Alteridade é a nossa capacidade de reconhecer o outro como
um ser distinto de nós e de nos colocarmos na sua perspectiva com a intenção
sincera de compreender o modo pelo qual ele percebe a vida e o mundo.
Segundo o filósofo Sandro Henrique, diretor da Casa de
Eurípedes, “fomos educados, a partir da cultura grega, para vencer o outro
através do debate. Há uma neurose narcisista de não aceitação do outro que não
se identifica comigo, ou com o que eu penso”. Isso traduz um desconhecimento do
pensamento de Allan Kardec, para quem a verdade não tem medo da luz. A verdade
está sempre aberta à reflexão.
Alan Castter pondera: diz-se muito que Espiritismo é
Filosofia e Ciência; ora, para que isso seja verdadeiro é imperioso que haja
divergências; ou então paremos de dizer que é Filosofia e Ciência, porque na
Ciência e na Filosofia a divergência é considerada como fator de crescimento.
Precisamos criar nas Casas Espíritas uma cultura em que a diversidade seja um
valor a ser estimulado." O Antônio Sahium, do GEF, acrescenta:
"Precisamos estimular, pelo estudo espírita, a formação de livres
pensadores. O questionamento deve existir a todo momento, pois não podemos
construir ídolos humanos, e nem nos erigirmos a essa condição. Nossa referência
precisa ser Jesus."
Mas "que atitudes e hábitos devemos cultivar para
proporcionar a consolidação de uma sociedade plural?" – questiona Alan
Castter. É a professora Ângela Moraes quem responde: "Precisamos criar nas
Casas Espíritas espaços de aprendizado para uma comunicação plural.
Fraternidade não pode ser um modo de relação que implique no fim da pluralidade;
ao contrário, deve ser um modo de convivência entre pessoas que se reconhecem
como indivíduos que pensam diferente, e que aprendem umas com as outras a
partir das suas diferenças."
Alan Castter alerta que "nossos processos democráticos
ainda não são democráticos. Precisamos de uma educação para o debate e para a
pluralidade." À medida em que for se intensificando o processo de
democratização das Casas Espíritas, a tendência é que haja mais espaço para o
diálogo, o contraditório, o debate saudável.
O próprio modelo de reuniões, em que apenas uma pessoa fala
e todos os demais apenas ouvem, pode sofrer melhorias, permitindo o
esclarecimento de dúvidas e – por que não? – o questionamento, ou o próprio
debate que, entre pessoas que se pautam pelo Evangelho e pelo pensamento
espírita, será sempre respeitoso e colaborativo, em vez de competitivo.
Mas nem tudo podem ser divergências, pondera Ângela Moraes:
"alguns consensos são necessários, para não inviabilizarmos a convivência
em sociedade”. Estabelecidos os consensos essenciais em torno dos pontos que
são comuns para o bom andamento das atividades, tudo o mais deve permitir a
possibilidade do livre exame.
Talvez seja o caso de se criar reuniões distintas, umas
onde as necessidades de esclarecimento e consolo sejam priorizadas, até porque
há muitas pessoas que buscam as Casas Espíritas na intenção de encontrar
aconchego espiritual, longe das questões que possam suscitar discussões, e
outras onde prevaleça o interesse pelo estudo e pelo diálogo em torno dos
pontos onde possam existir visões divergentes, de modo a atender também as
pessoas que desejam aprofundar seus estudos em torno da Doutrina Espírita.
Aliás, esta seria uma forma de atender as pessoas mais jovens, que são mais
críticas, e que não abrem mão de valores como o livre exame, a discussão aberta
e o exercício do contraditório, possibilitando a renovação das nossas
lideranças e a garantia de continuidade do movimento espírita.
Feita essa distinção, não há por que ter receio de
problemas relacionados à harmonia, porque qualquer situação de harmonia que
dependa dos temas em exame não é verdadeira harmonia; a verdadeira harmonia se
manifesta pela possibilidade de se conversar a respeito de pontos que são
divergentes sem que isso afete a postura de fraternidade das pessoas que, por
se reconhecem como iguais, se atribuem também o pleno direito de pensarem de
modos diferentes.
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