Elias Inácio de Moraes
Recentemente, na nossa
reunião mediúnica, atendemos um espírito que viveu a sua experiência mais
recente na condição de mulher, e que se encontra ainda marcada pelo remorso. O
simples fato de ver uma mulher dando a luz, que deveria ser para ela motivo de
encantamento, é motivo de perturbação, porque lhe traz à mente um aborto
cometido. Nossa ajuda não foi suficiente para libertá-la desse sentimento de
culpa e para propiciar-lhe a experiência do auto perdão, mas pudemos pelo menos
reconfortá-la mediante uma prece em seu favor.
As estimativas mais
confiáveis indicam que acontecem algo em torno de 500.000 abortos clandestinos
por ano no Brasil. Em uma cidade como Goiânia são quase 5.000, ou 50.000 em São
Paulo. Em uma pequena cidade de 20.000 habitantes estima-se que aconteçam 50
abortos clandestinos todos os anos. Ao todo são 1.400 por dia, 1 por minuto, distribuídos
pelos 5.571 municípios brasileiros. Como acontecem às escondidas, não há como
saber onde um aborto pode estar acontecendo neste exato momento para que se possa pelo menos
tentar evitá-lo.
O fato é que o aborto hoje
é quase um método contraceptivo. Se uma menina, moça ou mulher se vê grávida e
seu namorado, companheiro ou marido não querem que ela tenha o filho, ela
poderá integrar a dura estatística das mulheres que fazem um aborto sob algum
tipo de pressão física, psicológica ou emocional por parte de um homem, e que
representam 67% do total. Muitas resistem. Das que acabam fazendo o aborto, a
maioria sofrerá sequelas psicológicas como sentimento de culpa, depressão, insônia, pânico, e até tentativas
de suicídio.
Atualmente, para se proceder um aborto
clandestino, basta ligar para um número de celular que pode ser localizado pela
internet; um motoqueiro entregará os comprimidos abortivos em casa, ou na
esquina mais próxima. A maioria dos abortos é realizada nos três primeiros meses, apenas mediante uso desses comprimidos, com baixo risco de complicação. A menina, moça ou mulher recebe todas as orientações pelo
WhatsApp sob condições de sigilo. Em 90% dos casos é como se fosse uma simples hemorragia.
Aqueles que
podem pagar por um “serviço de qualidade”, nas classes média e alta, recorrem a uma clínica clandestina (em um hospital convencional), onde a mulher estará cercada de cuidados. Nessa onda de banalização da vida a
indústria do aborto transformou-se em um negócio altamente lucrativo.
Alguns países que conseguiram
reduzir as ocorrências de aborto o fizeram com base, sobretudo, no
esclarecimento e no apoio à mulher que pensa em abortar. Especialmente nos
casos em que ela está sofrendo pressão por parte de um homem - o que representa dois em cada três casos, aqui no Brasil -, esse tipo de
ajuda é fundamental. Nesses países exige-se que a mulher seja primeiramente
orientada por um médico que lhe apresenta os riscos fisiológicos; em seguida,
por uma psicóloga que avaliará os aspectos emocionais e lhe informará os riscos
de danos psiquiátricos; por último uma assistente social verificará se ela está
sob pressão, se existe alguma necessidade material premente, ou se ela
concordaria em deixar o bebê nascer e disponibilizá-lo para adoção. Depois
disso ela ainda deve refletir por 3 a 5 dias antes de implementar a sua decisão. Muitas delas desistem.
Se for adotado algo
semelhante no Brasil poderemos ter algo em torno de 50.000 pontos de atendimento espalhados
pelos 5.570 municípios brasileiros, aí incluídas as unidades do SUS e dos
CREAS, todos orientados no sentido de acolher uma mulher que pensa em abortar.
Considerando que 72% dos brasileiros são contra o aborto, as possibilidades de
essa mulher encontrar alguém que a ajude a evitar esse equívoco são
extremamente promissoras. Mais ainda se considerarmos que ela deverá conversar
com três profissionais de saúde e ainda refletir a respeito durante cinco dias. Se as taxas de desistência por aqui forem
semelhantes às do Uruguai, teremos pelo menos 50.000 vidas de bebês salvas
todos os anos, além de eliminar totalmente as ocorrências de mortes maternas devidas a abortos feitos na clandestinidade.
Uma mulher brasileira que
já fez três abortos, dois no Brasil e um no Uruguai - onde o procedimento é
gratuito e realizado na rede pública - conta que lá é que "foi horrível", pois ela se sentiu constrangida
ao conversar com pessoas com quem ela não desejava, e ao ouvir o que não
queria, além de ter que refletir durante cinco dias antes de ter seu desejo
atendido. No Uruguai “foi mil vezes pior”, disse ela. No Brasil “a gente não
vê; toma anestesia, dorme, e acorda sem o bebê." E é assim mesmo: lá, onde é regulamentado, ela é esclarecida quanto à gravidade do ato que pratica; aqui, onde é clandestino, ela nem precisa pensar no que está fazendo.[1]
A educação de longo prazo
parece ser a única medida efetiva para a redução das ocorrências de aborto; daí
a proposta de substituir as políticas punitivas, baseadas na criminalização da
mulher, por medidas preventivas, que atuem na fonte do problema, chegando até à assistência e orientação no momento extremo. Mesmo quando não for possível salvar a vida do bebê, haverá ainda os ganhos de se evitar as mortes maternas e de se iniciar um processo de esclarecimento e sensibilização a longo prazo.
Não há escolhas fáceis diante de um problema social tão grave, mas há a necessidade de se buscar alternativas que sejam efetivas em minorar o problema, e não apenas deixar que ele continue na clandestinidade. Políticas públicas de prevenção representam uma possibilidade mais em sintonia
com uma visão espírita e cristã, além de ser mais respeitosa para com a futura mãe e mais eficaz em evitar os diversos tipos de sofrimento que acometem todas as partes quando o aborto não tem como ser evitado.
Na Espanha e em Portugal, que
adotaram medidas preventivas em lugar das simplesmente punitivas, foi observada uma redução na quantidade de abortos. Claro que isso não ocorre de um ano para o outro, mas ao longo dos anos seguintes, numa perspectiva de longo prazo. No Uruguai, com o fim da clandestinidade, os números fazem parecer que houve
aumento das ocorrências, mas é apenas o resultado de se
trazer à tona a imensidão do problema que estava sendo simplesmente ignorado.(*)
Mas essa mudança tem
encontrado um obstáculo: a religião. O pensamento religioso tradicional é
fortemente marcado pelo desejo de punir as ações que ele considera imorais.
Como o Brasil é um país com forte presença católica e evangélica, a punição
ainda é a única medida prevista em lei. Mesmo assim há movimentos minoritários
católicos, evangélicos e espíritas que defendem a descriminalização por verem na lei atual uma
medida inócua, discriminadora e preconceituosa contra a mulher, até porque ignora totalmente a responsabilidade do homem sobre a gravidez.
Entre os espíritas a
maioria (52%) acha que o aborto não pode ser descriminalizado, mas também não
concorda com a pena de detenção. O argumento
mais utilizado pelos que defendem a continuidade da criminalização da mulher é
uma resposta em O Livro dos Espíritos que afirma que “há crime
sempre que transgredis a lei de Deus”.[2] Essas pessoas
entendem que se é crime diante da lei de Deus deve continuar sendo crime diante
das leis dos homens; algumas até sugerem estender a penalização aos homens, mas nem sequer abrem espaço para refletir sobre as mulheres que continuam morrendo ou os bebês que continuam sendo abortados todos os dias.[3]
Quase metade dos espíritas
(48%) concorda em substituir a atual legislação punitiva por outra de caráter
preventivo, o que significa, na prática, regular as condições em que o aborto
não será considerado crime; algo parecido como o que acontece hoje nos países
que adotaram políticas de prevenção, como a Suíça e Alemanha (que apresentam as menores taxas do mundo) e o Uruguai. Na visão
desses espíritas, caso uma mulher mantenha sua decisão de abortar, ela responderá diante das Leis Divinas - e não diante de juízes humanos - pelos seus atos.
Enquanto isso, o
Congresso Nacional e o STF tornam-se palco de uma luta ideológica em torno da
questão; por um lado os grupos pró-criminalização tentam reforçar os dispositivos legais que podem ser utilizados para penalizar a
mulher e os demais agentes sociais envolvidos na prática do aborto; por outro
os grupos pró-legalização tentam, através de um projeto de lei, legalizar o aborto como um direito da mulher, desde que realizado até a 12ª semana da gravidez, mas quase sempre negando ao futuro bebê a sua condição de espírito reencarnante.[4]
A questão que se coloca, portanto, mais do que criminalizar ou legalizar o aborto, é: que alternativas podem ser mais efetivas no sentido de evitar que os
abortos continuem acontecendo? Será possível adotar políticas de prevenção que
promovam melhores resultados em termos de salvar a vida dos futuros bebês,
evitar as sequelas psicológicas para as mulheres e, ao mesmo tempo, reduzir as
mortes maternas?
A simples criminalização
já provou suficientemente que não funciona; apenas transferiu para a
clandestinidade uma prática tão grave, que é a de sacrificar a vida de um bebê não
desejado. Legalizar, simplesmente, representa, no mínimo, a aceitação tácita de uma
prática controversa, sem nenhuma tentativa de evitar que ela aconteça. Onde o
equilíbrio?
André Trigueiro, no
Congresso Jurídico-Espírita Brasileiro de 2017, foi direto ao assunto: “Eu
estou sugerindo uma reflexão: acolhimento, encaminhamento da questão com muita
psicologia, muito respeito por essa menina, por essa moça que é ela que sabe as
consequências. Eu como homem é fácil determinar: crime, prende, você é uma
criminosa! A gente precisa pensar nisso, porque não se resolve esse debate
apenas com a questão legal. Não se resolve. Os abortos vão continuar
acontecendo, se a gente não transferir a trincheira contra o aborto para outros
campos de batalha.”
Na nossa Casa Espírita,
como em muitas outras, nos foi possível evitar que uma mulher desesperada
incorresse nesse grave equívoco. Grávida do seu marido, que é dependente
químico e não aceita a ideia de se tratar, ela não queria “colocar mais um
filho no mundo para sofrer”. Graças ao carinho, ao acolhimento e às orientações
de pessoas que lhe são mais próximas ela concordou em ter o filho, que é hoje um lindo bebê, muito amado pela mãe e pelos avós.
Graças a Deus uma vida a
mais foi salva; mas quantas se perdem todos os dias sem que possamos sequer
dialogar com essas mães? Pelo menos se lhes fosse possível buscar a orientação devida antes
de uma decisão tão grave! Quem sabe se, em buscando informações em uma das 50.000 unidades do SUS e dos CREAS espalhadas por todos os municípios do Brasil, muitas delas não terminariam desistindo do seu intento?
Ao final da reunião citada
no início, um orientador espiritual comentou: “Nada justifica o aborto, mas
nada justifica, também, a condenação da mulher que o pratica.”
Em sintonia com essa
observação André Trigueiro ponderou, no encerramento do CONJEBRAS
2017: “A palavra chave não é guerra, é paz, é amor, é acolhimento.” E para
concluir, ressaltou, de maneira enfática: “Isso é Espiritismo no século XXI.”
[1] Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2017/11/15/aborto-no-uruguai-e-legal-e-seguro-mas-doloroso-relata-brasileira.htm
[1] Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2017/11/15/aborto-no-uruguai-e-legal-e-seguro-mas-doloroso-relata-brasileira.htm
(*)http://www.generonumero.media/portugal-espanha-e-uruguai-o-que-aconteceu-apos-legalizacao-do-aborto/
[4] Vide
consulta pública em https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=119431
Muito bom. Muito sábio
ResponderExcluirExcelente, Elias! Muito obrigado.
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