Elias Inácio de Moraes
Quando faltava apenas
o estudo sobre a gênese para que Kardec pudesse concluir o seu projeto
estrutural do Espiritismo, já no ano de 1866, foi publicado na cidade de Brno,
no que é hoje a Tchecoslováquia, um pequeno livro a respeito das pesquisas levadas
a efeito no silêncio do seu mosteiro pelo monge agostiniano Gregor Johann
Mendel com o título Ensaios com Plantas
Híbridas. Neste pequeno livro ele apresentava o resultado de experiências
realizadas com plantas, combinando conhecimentos de Biologia com cálculos matemáticos,
em especial mediante o cruzamento de ervilhas. Suas descobertas a respeito da
transmissão de características na reprodução de seres vivos constituem as bases
para o que hoje conhecemos como sendo a Genética.
No mundo do século XIX,
quando as comunicações eram extremamente precárias em comparação com o que
existe hoje, a probabilidade de Kardec tomar conhecimento desses estudos era
praticamente nula, o que explica o fato de ele não ter feito nenhuma referência
a este assunto. Os estudos de Mendel só apresentaram algum impacto sobre o meio
científico no ano de 1900, quando três outros pesquisadores chegaram às mesmas
conclusões que ele e trouxeram a público o seu trabalho, pelo que ele foi
reconhecido postumamente como o “pai da Genética”.
Quanto à outra
vertente, a da sociedade, a Sociologia já começava a se consolidar como uma
nova área da ciência dentro da própria França, onde vivia Kardec. Desde o
século anterior que Jean-Jacques Rousseau havia revolucionado o conceito de
educação com sua obra Emílio, e sua
visão de sociedade com o Contrato Social,
e em 1838 Augusto Comte, que faleceu no mesmo ano em que Kardec publicou O Livro dos Espíritos, já havia lançado
as bases dessa nova ciência, à qual ele mesmo batizara com o nome de Sociologia.
As evidências sugerem que Kardec, por discordar dos fundamentos materialistas
em que Conte assentava as bases da Sociologia, pode ter optado por evitar
qualquer menção a este termo nos seus escritos, embora tenha abordado algumas
de suas teses.
Não é sem razão que a
questão da transmissão de características dos pais para os filhos, que está
presente na obra de Kardec sob o título de “Semelhanças físicas e morais”, é
analisada apenas sob o viés da influência moral, através da educação, sem levar
em conta os aspectos biológicos. Esse viés educacional se explica também pelo
fato de Pestalozzi, o mestre do então garoto e jovem Hippolyte, ter sido
fortemente influenciado por Rousseau.
207. Frequentemente,
os pais transmitem aos filhos a parecença física. Transmitirão também alguma
parecença moral?
“Não,
que diferentes são as almas ou Espíritos de uns e outros. O corpo deriva do
corpo, mas o Espírito não procede do Espírito. Entre os descendentes das raças
apenas há consanguinidade.”
a) — Donde se originam as parecenças
morais que costuma haver entre pais e filhos?
“É
que uns e outros são Espíritos simpáticos, que reciprocamente se atraíram pela
analogia dos pendores.”
Ademar Arthur Chioro,
médico sanitarista espírita, analisando a reencarnação sob a ótica das ciências
contemporâneas, chama a atenção para dois fatores, os genéticos e os sociais,
que, para além da influência que os pais exercem sobre o comportamento dos
filhos através da educação, determinam de modo significativo as condições da
existência humana:
A princípio a ciência
materialista acreditou encontrar nos fatores genéticos e sociais a explicação
completa para as questões relativas ao comportamento humano, mas os estudos têm
deixado claro que existem outros fatores que escapam ao determinismo genético,
deixando largo campo ao espírito. Os seres humanos não transmitem aos seus
descendentes as próprias características físicas ou comportamentais, mas uma informação
genética, registrada nos seus cromossomos, e que pode ou não manifestar-se.
“Não há genes que tornem alguém um músico ou um cientista. Os genes criam as
bases para os traços culturais, mas não forçam o desenvolvimento de nenhum
traço em particular.”[1]
O espírito utiliza essas predisposições conforme as suas necessidades e
possibilidades.
Estudos com gêmeos
idênticos, famílias e crianças adotadas, demonstram que cerca de metade das
características comportamentais humanas são resultado da hereditariedade. O Dr.
Dráuzio Varella chama atenção para alguns estudos que comprovam que, entre
gêmeos univitelinos, quando um deles é homossexual a probabilidade de o outro
também ser aumenta de 20% a 50%, mesmo que separados desde bebês e criados por
famílias diferentes. Mas esses estudos também deixam evidente que “a simples
identidade de genes não justifica todos os casos.”[2]
O espírito André
Luiz, valendo-se da sua condição de ex-médico e através do médium e médico
Waldo Vieira, tece breves comentários a respeito do assunto no livro Evolução em Dois Mundos, em 1958, quando
a descoberta do DNA era ainda um assunto recente.
o Espírito, entregue ao
comando da própria vontade, determina com a simples presença ou influência, no
campo materno, os mais complexos fenômenos endomitóticos no interior do ovo,
edificando as base de seu próprio destino, no estágio da existência cujo início
o berço assinala.[3]
E com isso ele
acrescenta uma abordagem inovadora ao afirmar que é o espírito que, mediante a
sua simples presença e influência mental, determina os processos de divisão
celular desde a fecundação até a sua vida adulta, regendo, assim, os processos
da genética e fazendo com que se manifestem ou não determinadas características
hereditárias, tendo como fator determinante as suas próprias condições e
necessidades. Se esta é uma afirmação de difícil comprovação científica, sob o
ponto de vista filosófico ela amplia imensamente o horizonte de entendimento do
ser humano.
Estes estudos ampliam
a compreensão da resposta dada à questão 259 de O Livro dos Espíritos, segundo a qual nem todas as tribulações que
experimentamos na vida nós as previmos e buscamos, assim como, embora o
presente seja sempre o resultado de toda uma construção realizada no passado,
nem todas ocorrências de hoje terão, forçosamente, uma causa específica e
identificável em alguma vida pregressa. O espírito escolhe “apenas o gênero das
provações; as particularidades correm por conta da posição em que vos achais;
são, muitas vezes, consequências das vossas próprias ações.” Ou da ação de
terceiros, uma vez que estamos situados em um mundo de relações que tem como
base o livre arbítrio dos inúmeros participantes.
Sociais – Não é o homem, sozinho, quem constrói a própria história; quando ele
renasce no mundo ele já o encontra estruturado, com suas leis, crenças e
costumes. Não é ele quem escolhe o que comer e o que vestir, ou como irá
produzir o de que necessita, pois ele já renasce em meio a uma cultura à qual
ele simplesmente é obrigado a se amoldar mediante uma pressão social
irresistível. Deste modo o homem não é tão somente aquilo que ele deseja ser,
mas é também fruto de um sistema social que já se acha estabelecido. Nem mesmo
a sua moral e as suas crenças são propriamente suas, pois ele é condicionado a
reconfigurá-las a partir do sistema de moral e de crenças do meio onde ele
renasce, e que foi socialmente constituído.
Sem contar o
imperativo das condições sociais. O modo como a sociedade se acha organizada,
combinado com os vínculos espirituais de onde ele procede, determinam para o
espírito as condições do seu renascimento em termos de pobreza ou riqueza
material, de oportunidades ou falta de acesso aos recursos sociais de quais a
pessoa necessita para afirmar-se na existência. Conforme a maior ou menor
desigualdade estrutural na sociedade em que ele venha a renascer, tais serão as
suas oportunidades em termos de conforto material e de acesso a estudo,
trabalho, e a condições dignas de existência.
Neste sentido,
entretanto, é importante distinguir as questões relativas à consciência de si e
do outro, ou do éthos, enquanto
comportamento, modo de ser, caráter, das questões relativas à moral, do latim mores, que se refere a costumes, normas
e leis. Aliás, essa é uma confusão de conceitos muito antiga, e que se fazia
presente na época de Kardec como acontece ainda hoje. Os próprios espíritos, ao
lhe responderem a respeito da moral, o fazem segundo o conceito vigente na
época, sem adentrarem nas suas implicações sociais:
629. Que definição se pode dar da moral?
“A
moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se
na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de
todos, porque então cumpre a lei de Deus.”
Cabe destacar na
resposta a associação entre a “lei de Deus” e a forma de cumpri-la, que se
resume em “tudo fazer pelo bem de todos”; nisto é que consiste a “observância
da lei de Deus”. A resposta desconsidera o que é hoje compreendido como a moral
cultural. Por exemplo: o modo de se vestir ou de se casar estão marcados por
diferenças relevantes entre o oriente e o ocidente. O senso comum tenta
relacionar esses hábitos a questões de ordem moral, quando hoje fica claro que
são apenas diferenças culturais.
Cabe também ressaltar
que inexistia na época o significado sociológico da palavra “cultura”, que só
foi criado após a desencarnação de Allan Kardec, em 1871, pelo antropólogo
britânico Edward Burnett Tylor, que conceituou cultura como sendo o “complexo
que inclui conhecimento, crenças, artes, moral, leis, costumes e outras
aptidões e hábitos adquiridos pelo homem na sua condição de membro da
sociedade”.
Não é por outro motivo
que a palavra “cultura” com este significado também inexiste na obra de Kardec.
Deste modo, ao
reencarnar o espírito está sujeito, além dos fatores espirituais, também a estes
dois fatores de influência, que são os genéticos e os sociais. Mas nenhum deles
é determinante absoluto para o seu comportamento. Como o próprio termo afirma,
são fatores de “influência”.
Escolhendo, por exemplo, nascer entre
malfeitores, sabia o Espírito a que arrastamentos se expunha; ignorava, porém,
quais os atos que viria a praticar. Esses atos resultam do exercício da sua
vontade, ou do seu livre-arbítrio. Sabe o Espírito que, escolhendo tal caminho,
terá que sustentar lutas de determinada espécie; sabe, portanto, de que
natureza serão as vicissitudes que se lhe depararão, mas ignora se se
verificará este ou aquele êxito.[4]
A resposta se refere
a “nascer entre malfeitores”, mas seu conteúdo pode e deve ser estendido às
situações de vulnerabilidade social, de desassistência, de falta de recursos.
Como decorrência,
A vida é vivida no mundo das probabilidades, das múltiplas
possibilidades em que os acontecimentos vão se desenrolando e que as escolhas
são efetuadas, nos limites – individuais e coletivos – determinados pelas
circunstâncias da vida. Mas sempre, em qualquer circunstância, serve como
processo de aprendizagem para o espírito encarnado e para os que com ele
compartilham a existência.[5]
Isto significa que o
espírito reencarnado desenvolverá a sua experiência na vida em um cenário de
possibilidades, onde ao genético e ao social se acrescenta, então a sua própria
condição de espírito atemporal. Dispõe ele, portanto, da possibilidade de
aproveitar-se dos elementos determinados pela genética até os limites impostos
pela hereditariedade, bem como dos fatores sociais. Isso lhe permite acentuar
ou atenuar determinados fatores, conforme o seu estado mental, melhorando ou
agravando a própria situação de acordo com as suas escolhas diante das mais
variadas circunstâncias com as quais será defrontado a cada momento da sua
passagem pela vida física.
Deste modo, mais do
que simples oportunidade de “resgate de dívidas contraídas”, como o senso comum
às vezes quer fazer crer, a reencarnação pode ser compreendida como parte de um
amplo processo de crescimento espiritual que se dá através de um riquíssimo
campo de experimentação e de aprendizado que se desenvolve no palco da vida
física. Regida por complexos sistemas biológicos e sociais, estabelecidos com
base na genética e nas relações humanas, a vida oferece ao espírito a
possibilidade de ampliar a sua consciência de si mesmo e de desenvolver o seu
potencial de atuação como co-criador junto de Deus, no Universo, através do
autodescobrimento e da sua emancipação espiritual.
Quando Jesus diz “eu
e o Pai somos um” o que ele nos apresenta é uma condição de consciência em que
o espírito se sente e age como quem participa com Deus na obra da construção do
mundo e da vida, a princípio restrita ao seu nível micro de manifestação no
contexto de uma existência, mas que se expande pouco a pouco, abrangendo
gradativamente o nível de comunidade, depois sociedade, nação, alcançando o nível
planetário ou, ainda mais, aquele que levou Albert Einstein a afirmar: “sou um
cidadão do universo”.
Chico Xavier/André
Luiz usam a ideia de um ciclo nascimento-experiência-morte-experiência-renascimento
para representar esse universo de possibilidades infinitas descortinadas pela
oportunidade da vida física, no mesmo sentido daquela sentença registrada pelos
amigos de Allan Kardec no seu túmulo: “nascer, morrer, renascer de novo e
progredir continuamente, tal é a lei.”
[1]
Pinheiro, Marta. Comportamento humano –
interação entre genes e ambiente. Educ. rev . nº 10 Jan/Dez 1994.
Curitiba/PR.
[2]
Varella, Dráuzio. Homossexualidade, DNA e
Ignorância. Art. disponível em https://drauziovarella.uol.com.br em
01/05/2018.
[3]
Xavier, Francisco C. Evolução em Dois
Mundos, pelo espírito André Luiz, cap. 7. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4]
Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos,
questão 259. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[5]
Reis, Ademar A. C. e Nunes, Ricardo de M. Perspectivas
Contemporâneas da Reencarnação. Ed CPDoc e CEPABrasil, Santos/SP.
Comentários
Postar um comentário