PORQUE ADMIRO OS “COMUNISTAS”



Elias Inácio de Moraes

Um amigo a quem quero muito bem insinuou que eu estaria defendendo o aborto, a liberação das drogas, a erotização das crianças, e que isso tinha a ver com ser “comunista”, como se “comunista” fosse o barbudo comedor de criancinhas disseminado pelos militares na época da ditadura. Me lembrei que Kardec também ouviu insinuações semelhantes, quando chegaram a afirmar que “o Espiritismo vem destruir a família, aviltar a mulher, pregar o suicídio, o adultério e o aborto, preconizar o comunismo, dissolver a sociedade”. [1]
Ao ler o comentário do meu amigo no WhatsApp tive um impulso de compaixão, porque percebi que ele acredita mesmo no que diz, por puro desconhecimento, sem um pingo de maldade. Como sei que muita gente anda em dúvida por conta de tantas mensagens semelhantes nas redes sociais achei melhor responder publicamente.
No seu libelo o meu amigo pontuava o que o diferencia dos “comunistas”:
1 – Ser crente em Deus – Há controvérsias. Não só Karl Marx, mas também Kardec, bradaram contra a hipocrisia religiosa que louva a Deus nas orações de domingo, mas ignora o sofrimento dos seus irmãos. É essa mesma hipocrisia que leva muitos “crentes” a distribuírem cestas de mantimentos nas filas dos centros espíritas enquanto condenam um programa social que minimiza a miséria de milhões; que defendem que o “cidadão de bem” tem o direito de portar a sua arma e que “bandido bom é bandido morto”. Enquanto isso vejo os “comunistas” e “ateus” defendendo a piedade para com os criminosos e os mesmos direitos para todos os seres humanos. Talvez tenha sido por isso que Jesus disse que as prostitutas e os publicanos entrariam primeiro que os religiosos no reino dos céus, e tomou como exemplo de caridade o samaritano, considerado ateu e imundo, e não o sacerdote ou o levita tementes a Deus.
2 – Ser contra o aborto (meu amigo colocou entre parênteses: lê-se assassinato de bebês) – Realmente essa diferença também existe e é importante. Os “comunistas” e mesmo os ateus que conheço acham um absurdo as pessoas “crentes” não se importarem com quantos bebês estão sendo abortados todos os dias, com quantas mulheres morrem ou são aviltadas e até presas por conta de uma abordagem legalista, truculenta e ineficaz ao problema do aborto. E ainda justificarem isso usando o nome de Deus! Confesso que admiro nos “comunistas” a visão mais acolhedora para com a mulher, a confiança em um processo educativo de longo prazo, a sua crença de que as leis devem ser modificadas de acordo com as necessidades humanas visando salvar vidas e evitar sofrimento, enquanto muitos “crentes”, do alto da sua santidade, vociferam: É crime! Pune! Prende! Acho curioso ver os “comunistas” e “ateus” perdoando e os “crentes” condenando.
3 – Ser contra a liberação das drogas – Isso me lembra outro amigo espírita, que é contra a descriminalização das drogas porque, segundo ele, só um determinado coronel que ele conhece, também espírita, já matou onze traficantes. Imagina – disse ele – se liberam!... Como fica a consciência desse amigo que acredita que matou no cumprimento do seu dever? Outro amigo espírita me disse em termos gerais que “não interessa quantos morram; eu quero que meu filho cresça sabendo que usar drogas é um crime inaceitável”. Pois é!!! Meus amigos “comunistas” não pensam assim. Como pode uma pessoa que se afirma “crente” defender a morte de tantos jovens pobres nas periferias porque eles alimentam o mercado do vício nos bairros nobres? Será que ele acredita mesmo que o problema está em quem fornece, e não em quem usa? Como pode uma pessoa que se afirma “crente” insistir em gastar tanto dinheiro com mais armas, mais soldados, mais cadeias, helicópteros, munições caríssimas, em vez de investir em educação, prevenção e tratamento dos doentes?
4 – Ser contra a sexualização/erotização precoce de crianças – Este foi o ponto que mais me causou compaixão! Coitado do meu amigo, que parece acreditar mesmo que ensinar uma criança a respeitar os diferentes seria “erotizar” as crianças. Ensiná-las que alguns coleguinhas podem se sentir diferentes, mas que é assim mesmo que funciona o mundo... Que não convém fazer bulling com sua coleguinha de sala apenas porque ela adora jogar futebol e não brinca com bonecas... ou com o menino que aparece maquiado na escola porque brincou com as amiguinhas na hora do recreio. Confesso que admiro os “comunistas”, porque vejo neles sensibilidade para essas questões, porque eles não aceitam os assassinatos de pessoas LGBTI que muitos “crentes” acham “normal”. Acho lindo os “comunistas” se preocuparem com que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens e que o nosso mundo se liberte do preconceito sexual e da homofobia.
5 – Respeito à propriedade privada – Isto dito por uma pessoa que se afirma cristã me assusta! Justo o cristão, que se diz seguidor de um mestre que não tinha “uma pedra onde repousar a cabeça”! Será mesmo que meu amigo acredita que Jesus se preocuparia em defender a “propriedade privada” em vez de se preocupar com que a ninguém faltasse o necessário? Será que ele se esqueceu de que apenas três coisas nós levamos deste mundo ao partir: “a inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais”?[2] Prefiro mil vezes os “comunistas”, que lutam por um mundo mais parecido com Nosso Lar, que nós espíritas tanto admiramos, um lugar onde tudo pertence a todos, onde todos colaboram na medida das suas possibilidades e tenham garantidas todas as suas necessidades sem que ninguém se preocupe em acumular tesouros na Terra, onde “os ladrões roubam e a traça corrompe”.
6 – Valores morais da família – Fiquei me perguntando o que seriam esses “valores morais da família”... Me lembrei de um amigo que espancava seu filho de 5 anos porque era afeminado e ele queria ensiná-lo a ser “homem”. Nunca aceitou o filho, que saiu de casa adolescente, sem formação escolar adequada e suicidou-se antes dos vinte anos. Esse amigo meu até hoje condena o “casamento gay” que, segundo ele, “vai destruir o mundo, porque homem com homem não faz filho”. Tenho pena dele! Ele não compreendeu – e meu amigo também parece não ter compreendido – que ninguém está querendo que ele se case com outro homem, ou que as mulheres se casem com mulheres. O que os “comunistas” defendem, e muitos “crentes” abominam, é simplesmente o direito de cada pessoa viver e afirmar-se como se sente, sem ter que submeter-se a uma pauta de valores estabelecida pela maioria heterossexual.
Ao final de sua mensagem o meu amigo reafirmava, como quem pontua uma diferença importante: “Comunista em não sou mesmo. Estou muito, mas muito longe disso!!!”
Com toda certeza ele não compreendeu que o que afastava Kardec dos comunistas da sua época eram o ateísmo, o materialismo e, por incrível que pareça, a proposta de mudança pelas armas, que está sendo defendida hoje por muitos “crentes”, e que os “comunistas” e “ateus” de hoje estão combatendo a todo custo.
Talvez meu amigo nem saiba que Kardec considerava os comunistas como “homens bem intencionados, tocados pelos sofrimentos de uma parte de seus semelhantes”, e que supõem “encontrar o remédio para o mal em certas doutrinas de reforma social”. Talvez ele nem tenha percebido que Kardec concorda que a sociedade se divide em “explorados e exploradores”, e que “disso resulta um antagonismo perpétuo, que faz da vida um tormento, um verdadeiro inferno.”
Para Kardec, o homem, tendo alcançado o progresso material, trazia também um vazio na alma, e por isso “aspira qualquer coisa de superior, sonha com melhores instituições, deseja a vida, a felicidade, a igualdade, a justiça para todos.” Embora Kardec considerasse ingênua a proposta de transformação da sociedade sem uma transformação moral dos indivíduos, nem por isso ele deixava de reconhecer no comunismo um sistema que requer a abnegação em sentido tão amplo que tem por princípio essencial “a solidariedade de todos para cada um e de cada um para com todos.” [3]
Portanto, meu amigo me perdoe, mas fico desconfiado de que hoje as pessoas que estão sendo consideradas “comunistas” podem estar muito mais próximos de Jesus e de Kardec do que muitos “crentes” que dizem defendê-lo, mas continuam apegados à forma, às leis, às regras, se esquecendo do ser humano em razão das quais elas existem. É entre essas pessoas, que estão sendo pejorativamente consideradas “comunistas”, que observo mais preocupação sincera com o outro, com o ser humano e com uma vida que possa ser digna para todos.
E aí, meu amigo, eu realmente sinto pena de você por se sentir tão longe de tudo isso, porque, a meu ver, é isso o que melhor caracteriza a nossa condição de humanos, e nos possibilita nos sentirmos todos, sem exceções, como sendo filhos de um mesmo Pai.



[1] Kardec, Allan. Revista Espírita, Fev/1863. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[2] Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI item 9. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[3] Kardec, Allan. Viagem Espírita em 1862. Discurso III em Lyon e Bordeaux. Ed. O Clarim, Matão/SP.

Comentários

  1. Brilhante resumo da situação atual no meio espírita. Essa análise também é útil para compreendermos os diferentes pontos de vista à nossa volta e nos dá forças para permanecermos firmes no propósito de reformar a nós mesmos para reformar o mundo. Vejo, por esse texto, que ainda existem verdadeiros cristãos. Espero e torço para que não volte a perseguição aos verdadeiros cristãos, se a intolerância prevalecer nas próximas eleições.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Meu bom Deus, amigo, você é um Oasis no meio do deserto que se tornou o "establishment" do meio religioso (e o espiritismo não é exceção à regra, infelizmente) e até o Papa Francisco está sendo atacado, por pregar um mundo mais humano (a pecha de "comunista" para tentar desqualificá-lo para mim é um elogio) . Você não só demonstra conhecer bem o espiritismo, ter o estudado com verdadeiro interesse mas que conseguiu compreendê-lo profundamente. Parabéns, isso ninguém vai tirar de você, porque o Espiritismo já entrou em você e todas suas luzes. Obrigada!!!

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    1. Adriana, seu feedback me alimenta o espírito. Muito obrigado...

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    2. Boa noite. Texto mito bem escrito. Porém nao deixemos apenas uma visão nos leitores. Vejam a opinião do Divaldo a fim de haver um equilíbrio

      https://www.youtube.com/watch?v=XyT8VLMtRNE

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    3. Obrigado por dialogar conosco, Sérgio. Não sei por que motivos Divaldo fez esse comentário tão em desacordo com a sua mentora, Joanna de Ângelis, que afirma claramente que "O pensamento de homens e mulheres audaciosos, como Allan Kardec, Charles Darwin, Karl Marx, Sigmund Freud, Marie Curie, Albert Einstein, produziu uma revolução de tal porte nos conceitos e costumes das criaturas, que até hoje tentam adaptar-se ao novo mundo por eles descoberto." Talvez ele estivesse também preocupado com as questões políticas do momento. Daí a importância do diálogo entre nós, para conseguirmos analisar estes temas para além dos limites das circunstâncias. Um abraço.

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