O Espiritismo ante a cultura do estupro



Elias Inácio de Moraes

Ontem me foi possível participar de uma riquíssima discussão em um dos nossos grupos familiares de WhatsApp; algumas mulheres mais empoderadas resolveram colocar a boca no trombone e denunciar as inúmeras situações de abuso sexual, e até de estupro, vividas por elas mesmas no ambiente familiar ou na relação afetivo-conjugal.
Uma delas relatou violência sexual cometida por um tio abusador por anos seguidos. “Ele abusou de mim, da filha dele e da minha irmã”, ela conta. Na época, ela era ainda adolescente, sua família a orientou a não dizer nada, “porque poderia ser pior”. Outra contou como se sentiu ao ser estuprada aos dezoito anos pelo namorado, com direito à mordaça para que não gritasse. Situações de “sexo não consentido”, exigências abusivas, dentre outros casos, os mais variados, vieram à tona, mostrando como nas nossas famílias existem exemplos vivos desse quadro pavoroso que se manifesta todos os dias entre as quatro paredes dos “lares” do Brasil.
Conheci a brutalidade da violência sexual no meu tempo de mocidade espírita. A mãe de uma amiga entrou em pânico quando sua filha anunciou que pretendia se casar. Quando tentei tranquilizá-la ela me contou que havia sido estuprada pelo próprio marido na sua noite de núpcias, situação que passou a ser recorrente, e agora receava por cada uma de suas três filhas já moças. Seu romance havia sido convertido em tragédia logo nos primeiros atos, tragédia que prosseguia sendo ocultada cotidianamente dos olhares da própria família.
Ainda nos anos oitenta, nas atividades assistenciais da instituição espírita em que até hoje atuamos, uma mãe nos procurou desnorteada porque acabara de descobrir que seu marido havia estuprado sua filha de 12 anos. Sentindo-se apoiada, mais segura, abriu a discussão entre suas filhas, quando, para sua surpresa, descobriu que as duas filhas mais velhas também já haviam sido estupradas pelo pai. Agora ela temia pelas outras duas menores, gêmeas de dez anos, que iam avançando dia-a-dia na direção dessa lógica que justifica a maior parte dos estupros praticados pelos pais: “eu quem fiz; tenho o direito de usar primeiro”.
Há algum tempo que os estudiosos do assunto denunciam que também vivemos no Brasil o que mundialmente tem sido chamado, como forma de denúncia, de “cultura do estupro”. No entendimento desses pesquisadores há um acordo social tácito de silêncio quando o assunto é a opressão sexual do homem sobre a mulher.
Quando se pesquisa a respeito do assunto os números são assustadores. Somente os casos que são levados ao conhecimento das autoridades indicam mais de 60.000 ocorrências a cada ano. Algumas estimativas mais seguras sugerem que apenas de 10% a 15% dos casos chegam a ser notificados, o que sinaliza para algo em torno de meio milhão de ocorrências todos os anos. [1]
Destes, quase 70% são cometidos contra crianças ou adolescentes, e são cometidos por pais, padrastos, tios, primos ou outras pessoas conhecidas, sempre muito próximas da família. É mais comum do que se pensa a prática de acobertar o crime para não “expor” o problema familiar.
Embora a rua seja considerada um ambiente perigoso para as mulheres, a maioria desses crimes (quase 80%) acontecem dentro de casa. Quase a metade dos casos são recorrentes, ou seja, acontecem várias vezes seguidas envolvendo as mesmas pessoas.
Um dos argumentos usados no meio espírita para evitar discutir a respeito deste assunto é uma distorção de sentido da sentença de André Luiz, segundo a qual “o mal não merece comentário em tempo algum”[2], ou de outra que observa que “o comentário em torno do mal, ainda e sempre, é o mal a multiplicar-se”.[3] Omite-se que o autor está se referindo aos comentários vazios das conversações de rotina ou às discussões sem proveito, e jamais aos estudos sérios a respeito de temáticas relevantes sob o ponto de vista do interesse social.
No Facebook veem-se espíritas fazendo coro ao velho dogma de que “a educação sexual se realiza em casa”, somando forças à movimentação ideologizada destinada a impedir os programas de educação sexual nas escolas. Com isso inviabiliza-se a prevenção não apenas desse tipo de ocorrência, mas também das variadas formas de preconceito de gênero e da homofobia. Ignora-se que tem sido graças aos programas de educação sexual nas escolas que tem sido possível reverter nos últimos anos o crescimento das ocorrências de gravidez na adolescência, em que o Brasil fica mal na foto quando comparado aos países da América Latina e, mais ainda, ao restante do mundo.
Para reforçarem seus argumentos alguns citam Emmanuel e outros espíritos que afirmam que “a educação começa no lar”, mais uma vez distorcendo o sentido, já que esses espíritos se referem à necessidade de o lar tornar-se um santuário de equilíbrio e harmonia visando à educação do espírito reencarnante, e jamais questionando o papel do instituto da Escola nas sociedades civilizadas. Sobretudo quando se leva em conta a enorme quantidade de lares sem o mínimo preparo para uma convivência mais espiritualizada, quanto mais para o adequado esclarecimento dos seus filhos quanto às situações de abuso que ocorrem muitas vezes ali mesmo, no próprio ambiente doméstico.
O diálogo de ontem me fez desconfiar dos reais motivos pelos quais algumas pessoas insistem em que a educação sexual não deve ser realizada no ambiente da Escola, e permanecer restrita à família. Pergunto-me se, ao fechar posição diante desse tipo de questão, a grande maioria não deseja mesmo é manter silêncio em torno das suas relações abusivas, da dominação silenciosa exercida cotidianamente sobre as mulheres portas a dentro dos seus próprios lares. Desde a época da codificação que os espíritos alertam que a inferioridade da mulher decorre “do predomínio injusto e cruel que sobre ela assumiu o homem. É resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza” e que “a emancipação da mulher acompanha o progresso da civilização”.[4]
Certa vez, em uma cerimônia de casamento pretensamente cristã, o pregador permitiu-se dar um puxão de orelha nas mulheres empoderadas que se sentiam no direito de "recusar" sexo para os seus maridos; e lhes falou de "deveres conjugais assumidos diante de Deus", em um claro eufemismo para o estupro marital. Fico me perguntando: será que não são estes os mesmos que hoje bradam nas redes sociais por uma “Escola Sem Partido” e livre da "Ideologia de Gênero", que falam de “marxismo cultural” e que denunciam a “erotização precoce” das crianças?
Não seria o caso de perguntar a estes (a esmagadora maioria são homens) que insistem em que uma criança de sete, oito ou nove anos não deve ser informada na escola a respeito da sua sexualidade, do que são relações de abuso, dos riscos de ser bulinada, mesmo no ambiente familiar: qual é o seu receio em que essas discussões venham à tona? Não estariam, mesmo inconscientemente, desejando impedir que essas meninas desenvolvam a consciência da importância do seu corpo, da sua autonomia e do seu direito de serem respeitadas? Não estariam achando melhor que as mulheres cresçam sentindo-se inferiores e até mesmo subjugadas pelos homens, em especial seus maridos, felizes por se servirem de objetos de prazer, na maioria das vezes unilateral?
Pelo fato de um homem ser religioso, pastor ou padre, dirigente ou trabalhador da Casa Espírita, estaria ele isento de cometer abusos de natureza sexual? Uma senhora do nosso grupo familiar relatou o motivo pelo qual afastou-se definitivamente do Espiritismo: o assédio indecoroso e disfarçado de que foi alvo quando integrava a equipe de colaboradores de uma respeitável casa espírita. Em outra instituição o principal dirigente teve que ser afastado depois de repetidas ocorrências de assédio contra diversas mulheres.
Os diálogos que vêm à tona quando o assunto é colocado em questão mostram que não é a profissão de fé que faz de qualquer um de nós uma pessoa esclarecida quanto ao direito que as mulheres têm de serem respeitadas na sua dignidade e autonomia sexual. Nem é o pretenso sentimento de superioridade moral cultivado comumente no nosso meio que nos faz imunes à contaminação cultural que reafirma a posição da mulher como um objeto de prazer diante do homem como um valor social cultivado inocentemente desde a infância, às vezes até mesmo na casa espírita.
Se desejamos contribuir efetivamente na solução dos problemas sociais do nosso tempo é preciso criar espaço nas nossas reuniões para o estudo “sério” e “aprofundado da matéria”, fazendo uso de expressões adotadas por Kardec, de modo a contemplar temas dessa natureza. Não se justifica mais o silêncio lançado sobre o assunto, às vezes inconscientemente intencional, uma vez que, nas palavras de uma das participantes do nosso grupo, “a violência velada, sustentada por um silêncio escandaloso, mata um pouco da gente a cada dia.”



[1] Há diversas fontes confiáveis a respeito, como o Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; o Atlas da Violência, do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; o Relógio da Violência, mantido pelo Instituto Maria da Penha; o Human Rights Watch - Observatório dos Direitos Humanos; além de inúmeros artigos publicados em revistas especializadas das áreas de Ciências Sociais.
[2] Xavier, Chico. Agenda Cristã, pelo espírito André Luiz, lição 9. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[3] Xavier, Chico. Conduta Espírita, pelo espírito André Luiz, lição 46. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 818 e 822. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

Comentários

  1. Na minha insignificante opinião, porque não sou nenhuma cientista sobre o assunto, o texto está muito bem escrito. Cobra mudança de comportamento sem ser grosseira.

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  2. Excelente! Acrescente também a abusos cometidos à meninos.

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  3. Eis uma das causas das omissões de espíritas – a ignorância (ausência de conhecimento) sobre sua filosofia para um viver com mais responsabilidade. Uma vez mais (e sempre), a presença de Herculano Pires – Espiritismo – o grande desconhecido.
    Na questão 573 – Os espíritos dizem que nossa missão no aqui e agora é poder ajudar no avanço nos diversos setores da vida, pois todos podemos ser uteis.
    Não me recordo onde foi que li uma frase de Victor Hugo – “Temos deveres a serem cumpridos”.

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  4. Obrigado a todos pelos comentários e observações. De fato, Marcus, a questão dos abusos cometidos contra meninos é outro capítulo sério. É muito comum o bullying entre garotos, até mesmo na Casa Espírita. Se não começamos a discutir essas questões esse tipo de comportamento se naturaliza. É o mesmo que acontece nas Escolas, razão pela qual é preciso, sim, tratar disso no ambiente da Escola.

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  5. Muito bom. Muitas dores e até lutos podem ser evitados com educação sexual. As Casas e Sociedades Espíritas tem grande responsabilidade nisso. Abraços.

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  6. Emmanuel em 1938 no livro A Caminho da Luz já alerta sobre a grande necessidade da evolução moral, que está carente e atrasada na nossa sociedade. Por isso ele fala da missão do Espiritismo evangélico focar os estudos e vivência verdadeiramente cristãs, tão necessárias para uma vida melhor, mais Félix, principalmente baseada no respeito ao próximo. Então nessa situação e importãncia do lar o e da família na vida e no comoromisso se coloca como primeira escola e oportunidade de educar e instruir, até pelo exemplo. Também a evangelização da criança e do jovem na casa espírita é importante neste contexto (mas as crianças e o jovem andam ausentes, é preocupante) temos que atraí-los e acolhe-los. Quanto á escola, deve instruir, esclarecer e até ajudar na educação, com um currículo bem elaborado, e na convivência sadia do ambiente escolar muito bem cuidado e vivenciado por todos.

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  7. Texto muito bem redigido e temática bastante atual.O grande problema é que vivemos um momento de tamanha convulsão social e econômica,que este,apesar da grande importância, torna-se apenas mais um entre muitos,acaba não tendo a devida atenção que merece.Parabéns ao autor pela coragem de expor com tamanha propriedade essa grande e triste mazela humana.Tenho muita vergonha de ser do sexo masculino quando esse assunto vem à baila.

    newtonbrenner@terra.com.br

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  8. Obrigado pelos comentários. Se puderem compartilhar entre seus contatos ficarei ainda mais agradecido, pois acho importante fomentar diálogos nesse sentido nos nossos ambientes de atividade espiritual. Um abraço a todos.

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    1. Excelente artigo, deve ser lido com muita responsabilidade e divulgado.

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  9. Providencial o seu artigo amigo Elias....divinamente inspirado, ainda mais lançado, sem que você soubesse, dias antes da denúncia consistente contra o tal Sr. "João de Deus"....que aa discussões sejam profícuas!

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  10. Muito obrigado pelo estímulo nos seus comentários. Um abraço a todos.

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  11. De uma profunda grandeza o seu texto Elias, principalmente neste momento em que deparamos com um acontecimento tão chocante a meu ver, o qual a Adriana citou acima. Infelizmente, o que aconteceu, acaba refletindo no Espiritismo, tal a intolerância que se faz presente em nosso país e o radicalismo disseminado na mídia. A educação sexual nas escolas, quando dada com responsabilidade, auxilia muito às crianças, ensinando-as a se protegerem e como se comportar em situações extremas.
    Fica o meu abraço fraternal.

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  12. Muito obrigado pelo comentário. Acompanhando agora o caso do João de Deus fica claro o quanto esse tipo de reflexão está fazendo falta no nosso meio. Sofrem todos: sofrem as mulheres (ou os homens, as crianças) que são vítimas de abusos, sofrem os médiuns que se vêem em queda moral. Não fosse o tabu e poderíamos dialogar a esse respeito, e estabelecer mecanismos de proteção para evitar que esse tipo de tragédia aconteça nas nossas Casas Espíritas. Falta diálogo. E sem diálogo não é possível viabilizar a educação e a conscientização.

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  13. Parabéns Elias, seu texto é fantástico. E é disso que precisamos no momento atual, falamos tanto de fé raciocionada, mas estamos precisando de comportamentos raciocinados, pensamentos raciocinados, precisamos evoluir nesse sentido, pois são discussões muito relevantes sim! Ah, seu texto sobre aborto também está incrível! Parabéns mesmo pela inciativa de falar e questionar esses assuntos!

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