Elias Inácio de Moraes
Quando Allan Kardec elaborou
o regulamento da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, ainda no início de
1858, ele vetou nas suas reuniões “as questões políticas, de controvérsia
religiosa e de economia social.” A França estava sob a ditadura de Napoleão III
e havia um conflito entre os defensores da monarquia, do liberalismo econômico,
do socialismo utópico e do comunismo. Mesmo tendo incluído no Livro dos Espíritos diversas questões
relacionadas à política, como a desigualdade social, a liberdade de pensamento,
ele limitou o objetivo da sociedade ao estudo dos “fenômenos relativos às
manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas,
históricas e psicológicas.”[1]
Kardec tinha claro que
“as necessidades variam com as épocas e com o desenvolvimento das ideias” e
que, para manter-se em dia com essas ideias, o Espiritismo teria que
atualizar-se constantemente, caminhando “de par com a ciência”.
Dá-se com as doutrinas filosóficas e com
as sociedades particulares o que acontece em política e em religião: acompanhar
ou não o movimento propulsivo é uma questão de vida ou de morte. No caso de que
aqui se trata, fora grave erro acorrentar o futuro por meio de uma regra que se
declarasse inflexível.[2]
Mas enquanto ele estruturava
os fundamentos da “Ciência Espírita”, que é como ele considerava inicialmente o
Espiritismo, outras áreas de estudo também se desenvolviam, como a Psicologia,
a Antropologia e a Sociologia, e que se consolidariam em definitivo como novas
áreas de estudo até o início do século seguinte.
Em 1880, pouco depois
do seu falecimento, um professor e historiador estadunidense chamado Herbert
Baxter Adams criou o conceito de Ciência Política, cujo propósito era estudar
racionalmente esse fenômeno social que desafia a compreensão dos filósofos
desde a Grécia Antiga, e que envolve as relações de poder e as estruturas de
dominação e subjugação presentes na sociedade moderna, entre as quais o Estado.
Desde então a Ciência Política começou a se afirmar como uma nova área do
conhecimento, criando métodos de análise que possibilitam aos pesquisadores uma
melhor compreensão das complexas questões econômicas, jurídicas e até mesmo
psicossociais que se interpenetram na geopolítica mundial, ou de países e mesmo
de regiões na atualidade.
É esse olhar mais
racional que permite, por exemplo, compreender as mudanças que se tem
verificado nas últimas décadas no cenário político europeu e americano, as
quais se tornaram ainda mais evidentes nos resultados dessa última eleição no
Brasil, quando 39% do eleitorado avalizou, conscientemente ou não, um projeto
social pautado por discussões em torno de moral, gênero e família, que tem como
fachada o combate à corrupção e como propósito uma profunda mudança no papel do
Estado baseada no liberalismo econômico. Sob essa mesma bandeira, no Rio de
Janeiro, 38% dos eleitores avalizaram a proposta do candidato vencedor que
promete combater a violência autorizando as forças policiais a “abaterem”
qualquer pessoa que esteja portando uma arma de uso exclusivo das forças armadas.
Claro que isso vale para as favelas, e nunca para os bairros de classe média e
alta.
É interessante
observar que, em ambos os casos, essa aprovação esteve longe da unanimidade ou
mesmo da maioria. Seja votando nulo ou em branco, seja simplesmente não
comparecendo às urnas, 61% dos eleitores brasileiros (42 milhões) e 62% dos
cariocas (4,6 milhões) manifestaram de algum modo o seu não alinhamento com essas
propostas.
No meio espírita os
dados deixam claro que houve maior adesão ao ideário do candidato vencedor do
que o verificado entre os demais brasileiros. Na última pesquisa de intenção de
votos 49,5% das pessoas que se declararam espíritas afirmaram que votariam em
Jair Bolsonaro, contra 40,2% em Fernando Haddad. Apenas 10,3% dos espíritas declararam
votar nulo ou em branco, bem menos que os quase 30% dos eleitores brasileiros que
disseram que não votariam em nenhum dos dois.[3]
Analisando o processo eleitoral
a partir das postagens e comentários nas redes sociais fica evidente que essa
maior adesão foi fortemente influenciada pelas lideranças espíritas, algumas
das quais se diziam “apolíticas” ou “isentas”, mas revelavam suas preferências através
de linguagem subliminar. Em alguns casos eles se ancoravam na sua própria
autoridade, ou em alguma “percepção” ou “revelação espiritual”, para justificar
difamações e ataques a pessoas e a ideias sem nenhuma comprovação e, na maioria
dos casos, desprovidas de fundamento.
Em meio à avalanche de
informações improcedentes, fatos e falas distorcidas, marcadas pela
superficialidade, cujo objetivo era tão somente disseminar ódio contra pessoas
e partidos políticos, via-se também um amplo compartilhamento de mensagens
mediúnicas que não resistiam à mais superficial análise baseada nos critérios
apresentados por Kardec em O Livro dos
Médiuns.[4]
O uso distorcido de expressões
como “seja feita a vontade de Deus”, ou que “não cai uma folha de uma árvore
sem que Deus o queira”, ou ainda que “Jesus (ou Ismael) está no comando” denotam
uma negação do voto como exercício do livre-arbítrio, tanto no nível individual
quanto no coletivo, tornando evidente o desconhecimento dos fundamentos básicos
da política, tanto sob a ótica da ciência quanto mesmo da Doutrina Espírita.
Observou-se também que
no imaginário espírita as diferentes ideologias são mais associadas a questões
morais do que à própria Economia. A maioria das pessoas não percebe, por
exemplo, que as diferentes ideologias têm a ver com ampliar ou reduzir o número
de desempregados, o que em Economia é chamado de “exército de reserva”,
possibilitando regular o valor dos salários, mesmo que isso resulte em
sofrimento para a população. Que ideologia de Direita ou de Esquerda têm a ver
com as leis que regulam a apropriação pelas diferentes classes sociais da
riqueza produzida a cada ano, o que resulta em maior ou menor desigualdade
social. Riqueza, pobreza e miséria, saúde, educação e bem estar social, estão
mais associados no imaginário espírita a questões de natureza espiritual do que
às decisões que são tomadas no mundo da política.
Thomas Pickety, um
brilhante economista francês, chamou a atenção em 2013 para o fato de que menos
de 1% das pessoas detém atualmente mais da metade de toda a riqueza do planeta,
e que apenas 5% de toda essa riqueza está distribuída entre os 50% mais pobres.[5]
A OXFAM – Oxford Committee for Famine
Relief, ou Comitê de Oxford para o Combate à Fome, estima que menos de 50
pessoas detém a metade da riqueza mundial.
Isso coloca em discussão
a explicação mais aceita no meio espírita segundo a qual a desigualdade social
decorre da diversidade de aptidões, e de que os homens não são “igualmente
inteligentes, ativos e laboriosos para adquirir, nem sóbrios e previdentes para
conservar”. Os espíritos já haviam questionado essa explicação quando da
publicação de O Livro dos Espíritos ao
atribuírem a desigualdade social também à “velhacaria e ao roubo”, o que pode incluir
os inúmeros expedientes através dos quais as classes mais abastadas vão
garantindo para si uma parcela maior da riqueza produzida a cada ano, em
detrimento das classes a quem tudo é negado, do pão de cada dia aos meios de
acesso à educação.[6]
Portanto, estudar
Ciência Política no meio espírita implica procurar compreender as forças que
atuam por trás dos movimentos que se observam na Economia, as questões
geopolíticas implicadas, o confronto de forças entre as pouquíssimas pessoas
que, pelo poder econômico que detêm, determinam as condições da vida em sociedade
e o bem estar pessoal e espiritual da coletividade. Sem essa compreensão a explicação
espírita do mundo, da vida e da evolução planetária pode ficar comprometida, na
medida em que não consegue responder às principais questões apresentadas pelos
fatos da atualidade.
Corre-se o risco inclusive
de se desenvolver atividades de assistência social nas Casas Espíritas que reafirmam
a exclusão, o preconceito e as desigualdades sociais, na contramão dos
princípios mais elementares de caridade e amor ao próximo, ou mesmo de abraçar
determinadas bandeiras em apoio a interesses totalmente antagônicos à proposta
renovadora do Espiritismo, dificultando estabelecer na Terra o “Reino dos Céus”
de que nos fala Jesus, ou o “mundo de regeneração” da abordagem kardequiana.
Portanto, trazer
cientistas políticos para dialogarem conosco é ajudar a construir uma visão de
mundo e de ação social que esteja em sintonia com a máxima adotada por Allan
Kardec: “Fora da caridade não há salvação”. É nos dedicarmos, como recomenda o
espírito Paulo, a “perscrutar-lhe o sentido profundo e as consequências (desta
máxima), a descobrir-lhe todas as aplicações”[7].
Assim, compreenderemos que somente através da solidariedade e do amor ao
próximo será possível fazer face aos graves problemas sociais desse momento de
transição, e que isso passa também pelas nossas ações e decisões de natureza
política.
[1]
Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns,
cap. XXX. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[2]
Kardec, Allan. Obras Póstumas, cap.
VII sobre a Constituição do Espiritismo. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[3]
Informações obtidas no site
g1.globo.com. Foram
deduzidos nos cálculos os 3% que afirmaram não saber ainda em quem votar.
[4]
Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns,
item 267. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[5]
Piketty, Thomas. O Capital no Século XXI.
Ed. Intrínseca, Rio de Janeiro/RJ.
[6]
Interessante o contraponto entre o item 8 do cap. XVI de O Evangelho Segundo o Espiritismo e os capítulos VII a XI da
terceira parte de O Livro dos Espíritos,
em particular a questão 808, citada acima.
[7]
Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o
Espiritismo, cap. XV item 10. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
Ótimos apontamentos!
ResponderExcluirMuito bom amigo. Acho importante a gente não repetir os mesmos erros de outrora, quando fazíamos uma leitura uuito literal do Evangelho sem tirar delas as reflexões essenciais. Precisamos honrar aquela Concepção que nos foi ofertada da Fé raciocinada. Parabéns meu irmão, você faz isso muito bem.
ResponderExcluirMuito bom esse esclarecimento vi muitos irmão nossos com os mesmos propósitos de candidatos que não tem as mesmas ideologias nossas fiquei abismada e assim percebemos o qt ainda estamos longe da evolução
ResponderExcluirfaço uma pergunta ao estimado irmão, elias: tem alguma agremiação política que esteja preparada para implementar ações de governo pautadas nos objetivos a que teus comentários sugerem, com candidato afinado com os mesmos propósitos, para ter sido eleito, evitando, assim, a eleição que se efetivou?
ResponderExcluirObrigado por dialogar a respeito do tema. Observo que não foi sem motivos toda essa movimentação nas redes sociais incluindo todos os partidos de esquerda no mesmo processo de demonização. Se você analisar os dados da própria operação Lava Jato, verá que não são os partidos de esquerda os mais corruptos; alguns praticamente não tem ocorrências. Foi a Social Democracia (esquerda europeia) quem conseguiu promover ampla melhoria geral nas condições de vida da população. Como regra geral os partidos considerados como "esquerda" são os que atuam no sentido de reduzir as desigualdades sociais e promover o respeito aos interesses das minorias; já os de "direita" são os que defendem o liberalismo econômico, que tem como pressuposto que todos estão igualmente aptos a defenderem os seus próprios interesses e que o Estado não deve intervir nessa disputa. Examinado desse modo creio que encontraremos vários partidos em condições de cooperar nessa direção. E vejo que há mesmo partidos da chamada "direita", ou de "centro", que apresentam propostas nesse sentido. Há um movimento dentro dos próprios defensores do capitalismo que visa refletir sobre soluções baseadas na livre iniciativa destinadas a amenizar as desigualdades sociais, uma forma de "capitalismo socialmente responsável". Um abraço.
Excluirnão concordo com a opinião de que os partidos de esquerda não foram os que mais "roubaram" - termo mais apropriado. nesse quesito o pt foi, sem qualquer dúvida, o grande "campeão"; secundado por seus aliados, pp e pmdb e no mesmo nível, o psdb. portanto, nenhum dos supra citados, pelas atitudes de seus líderes, reune condições de enquadramento no perfil ideal à proposição a que nos aludimos.
ExcluirSe você já tem uma visão formada nesse sentido não serei eu a tentar dissuadi-lo. Mas caso você se disponha a analisar a coerência da minha afirmação, envio-lhe dois links de jornais de maior credibilidade. Você encontrará através do Google inúmeras outras fontes confiáveis onde você poderá conferir essa informação. Segues os links:
Excluirhttps://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/24/politica/1524605415_828915.html
e também este: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/24/politica/1524605415_828915.html
Boa pesquisa.
Pois é, Elias, te confesso que fiquei decepcionado. Eu esperava que o movimento espírita fosse um ponto de resistência na defesa dos direitos das minorias. Lembro-me da passagem de Mateus, cap 25, que, traduzida ao contexto atual, poderia ser escrita assim: “Senhor, quando foi que te vimos explorado, violado em seus direitos, discriminado por sua condição social, cor da pele ou orientação sexual e não saímos em sua defesa?”
ResponderExcluirParece que há alguns temas-tabus no movimento espírita que não podem ser discutidos – sexo, dinheiro, poder, política. Vivemos como se essas coisas não existissem. Aí me lembro de Jung falando sobre a sombra – quanto mais a negamos, mais força ela adquire. Acho que isso ficou claro nessas eleições. Admiro sua postura, que considero de vanguarda, e aplaudo sua iniciativa de trazer à superfície esses assuntos que o movimento tenta ignorar, por parecer temê-los.
Muito obrigado pelas considerações, Edmar. Isso nos estimula a prosseguir. Um grande abraço.
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