Perispírito e Centros Vitais



Elias Inácio de Moraes

Quando Kardec apresenta o ser humano a partir de uma perspectiva triuna, composto de espírito, perispírito e corpo material, ele não estava apresentando uma ideia nova; ele apenas reposicionava os termos, ampliando os conceitos mediante a soma de novos significados. Perspectiva semelhante já havia sido apresentada por Platão, no século IV a.C., na forma da tríade humana, representada pelo espírito (pneuma), pela alma (psychê) e pelo corpo material (sôma). Na tradição cristã isso estava devidamente registrado na primeira carta de Paulo aos Coríntios, em que o apóstolo faz um amplo estudo da “ressurreição” e do modo como ela se dá, esclarecendo que “semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual”.[1]
Também Mesmer, no final do século XVIII, já havia se referido a uma espécie de corpo “fluídico” que estabelecia a ligação entre o espírito e o corpo material, alguma forma intermediária que, com a morte, acompanharia o espírito.
Mas a palavra “perispírito” é um neologismo criado por Kardec, e o modo como é introduzida no texto de O Livro dos Espíritos traz uma nova roupagem, a bem dizer, uma teoria espírita para o perispírito: “Envolvendo o gérmen de um fruto, há o perisperma; do mesmo modo, uma substância que, por comparação, se pode chamar perispírito, serve de envoltório ao Espírito propriamente dito.” É ele o elemento “intermediário” que “liga a alma ao corpo. Tal, num fruto, o gérmen, o perisperma e a casca.” [2]
Mais tarde, ao escrever A Gênese, ele apresentará uma explicação mais detalhada:
Pela sua essência espiritual, o Espírito é um ser indefinido, abstrato, que não pode ter ação direta sobre a matéria, sendo-lhe indispensável um intermediário, que é o envoltório fluídico, o qual, de certo modo, faz parte integrante dele. É semimaterial esse envoltório, isto é, pertence à matéria pela sua origem e à espiritualidade pela sua natureza etérea. Como toda matéria, ele é extraído do fluido cósmico universal que, nessa circunstância, sofre uma modificação especial. Esse envoltório, denominado perispírito, faz de um ser abstrato, do Espírito, um ser concreto, definido, apreensível pelo pensamento. Torna-o apto a atuar sobre a matéria tangível, conforme se dá com todos os fluidos imponderáveis, que são, como se sabe, os mais poderosos motores.
O fluido perispirítico constitui, pois, o traço de união entre o Espírito e a matéria. Enquanto aquele se acha unido ao corpo, serve-lhe ele de veículo ao pensamento, para transmitir o movimento às diversas partes do organismo, as quais atuam sob a impulsão da sua vontade e para fazer que repercutam no Espírito as sensações que os agentes exteriores produzam. Servem-lhe de fios condutores os nervos como, no telégrafo, ao fluido elétrico serve de condutor o fio metálico.[3]
O que Kardec pretende é dar um tratamento científico ao assunto, criando um nome apropriado e explicando em detalhes o significado prático dessa ideia a partir das observações levadas a efeito junto aos fenômenos mediúnicos de sua época. Ele adota como pressuposto a visão trinitária de Platão, ratificada pelo apóstolo Paulo e por Mesmer.
Desde a época da codificação que o assunto não se mostrava assim tão simples; na questão que foi incluída sob o número 141 o espírito já havia antecipado a complexidade do tema.
A alma não se acha encerrada no corpo, qual pássaro numa gaiola. Irradia e se manifesta exteriormente, como a luz através de um globo de vidro, ou como o som em torno de um centro de sonoridade. Neste sentido se pode dizer que ela é exterior, sem que por isso constitua o envoltório do corpo. A alma tem dois invólucros. Um, sutil e leve: é o primeiro, ao qual chamas perispírito; outro, grosseiro, material e pesado, o corpo. A alma é o centro de todos os envoltórios, como o gérmen em um núcleo, já o temos dito.
De algum modo essa complexidade já começava a ser pressentida, testando os limites da teoria elaborada por Kardec. Tanto que em 1890 Alexandre Aksakof cita o termo “metaorganismo”, que teria sido utilizado pelo barão Hellenbach, para referir-se a questões relacionadas ao perispírito, que ele considerava um “corpo astral ou psíquico”.[4] Entretanto, por mais criteriosos que tenham sido os cientistas que se dedicaram a essa área de estudos, suas conclusões não conseguiram obter reconhecimento no meio científico, ainda dominado pela tendência à negação de tudo o que possa estar relacionado ao espírito.
Em 1939 um eletricista industrial russo, ao consertar um equipamento de um hospital, observou, acidentalmente, algumas faíscas luminosas que irradiavam da sua pele quando exposta ao campo elétrico de alta frequência gerado pelo dispositivo. Alguns relatórios da universidade apresentavam o registro desse fenômeno, que permanecia ignorado. Com a ajuda de sua esposa, agora em casa, Semion Kirlian desenvolveu o que ficou conhecido mais tarde como método Kirlian de fotografia, ou Kirliangrafia. Diversos institutos de pesquisa soviéticos se dedicaram ao estudo do processo e de suas implicações.
No que pareceu ser a mais extraordinária descoberta, observou-se que uma folha vegetal da qual fosse amputada uma pequena parte, quando submetida à kirliangrafia, apresentava todo o seu contorno original, o que foi chamado de “efeito fantasma”. Isso parecia confirmar a existência de uma espécie de “duplo” dos seres vivos, a que os pesquisadores logo deram o nome de “corpo bioplasmático”, uma espécie de modelo organizador biológico.
As pesquisas que se seguiram trouxeram à tona a possibilidade de prever um estado enfermiço antes mesmo que ele se manifestasse no seu nível fisiológico, e que até variações de humor e de cansaço eram passíveis de registro por esse processo.[5]
Algo parecido já havia sido apresentado três décadas antes, em 1907, pelo padre brasileiro Roberto Landell de Moura, que identificara em suas pesquisas uma espécie de campo energético que envolveria os seres vivos, embora sem tanto detalhamento.
Experiências posteriores, no entanto, não têm conseguido obter os mesmos resultados, tanto no que se refere ao “efeito fantasma” quanto às questões ligadas á saúde. Esses experimentos sugerem que o efeito fantasma só acontece quando a folha é colocada inteira no aparelho e é amputada em seguida. Se ela for colocada já amputada o efeito não acontece. Isso tem reforçado a explicação de que as causas desse fenômeno são físicas, e podem estar associadas a resíduos de material biológico que permanecem na chapa.
Até o presente não se conseguiu também um consenso em relação às possibilidades de uso da eletrofotografia em diagnósticos clínicos. Mesmo com sua explicação baseada apenas no efeito de ionização do ar mediante a emissão de partículas pelo corpo em estudo, há quem afirme que essas emissões permitem analisar aspectos ligados à saúde física e mental dos pacientes, justificando o seu uso por alguns psicólogos e mesmo por terapeutas que fazem uso de práticas alternativas, pelo que são frequentemente acusados de charlatanismo.
Em outra vertente, a das informações obtidas através de comunicações mediúnicas, em 1944 o espírito André Luiz, pela mediunidade de Chico Xavier, provocou indagações ao relatar um “sonho” no mundo espiritual, em tudo semelhante ao sonho no corpo físico estudado por Kardec. Segundo sua narrativa, ele se vê desligado do seu corpo espiritual em Nosso Lar e parte em demanda a regiões ainda mais elevadas, ao encontro de sua mãe. Seria como se um corpo espiritual ainda mais sutil se desprendesse do seu corpo espiritual – já que ele não possui mais um “corpo físico” – para ingressar em ambientes de outra dimensão, mais elevada. Apresenta-se, portanto, uma clara inovação ao que até então se entendia a esse respeito.[6]
Um pouco mais tarde, em 1958, o mesmo André Luiz associa a ideia de perispírito de Kardec ao conceito de psicossoma, ao qual chama de “corpo espiritual”, que seria moldado por um “corpo mental”.
Para definirmos de alguma sorte, o corpo espiritual, é preciso considerar, antes de tudo, que ele não é reflexo do corpo físico, porque, na realidade, é o corpo físico que o reflete, tanto quanto ele próprio, o corpo espiritual, retrata em si o corpo mental que lhe preside a formação.[7]
Na apresentação que faz do livro Evolução em Dois Mundos, Emmanuel observa que “todos os nossos sentimentos e pensamentos, palavras e obras, nele se refletem, gerando consequências felizes ou infelizes, pelas quais entramos na intimidade da luz ou da sombra, da alegria ou do sofrimento.” E André Luiz acrescenta que, após a morte do corpo físico, ele representa o veículo do espírito, “veículo físico por excelência, com sua estrutura eletromagnética, algo modificado no que tange aos fenômenos genésicos e nutritivos, de acordo, porém, com as aquisições da mente humana.”
É preciso não perder de vista que o autor espiritual – ou talvez isto se deva ao médium – adota algumas correlações que merecem cuidado, por exemplo, quando se refere à “estrutura eletromagnética” do corpo espiritual, ou seja, do perispírito. Até o momento nenhuma experiência conseguiu identificar campos eletromagnéticos que possam ser associados ao perispírito ou algo similar. Os pesquisadores soviéticos que estudaram esse possível “corpo energético” sob uma perspectiva inteiramente material chegaram à conclusão de que “essa energia pode ter origem na atividade elétrica ou em campos eletromagnéticos, mas a sua natureza é inteiramente outra.”[8] Em razão disso é aconselhável entender o texto de André Luiz apenas como analogia, como ilustração.
Em outro livro André Luiz atribui a esse corpo espiritual uma formação complexa, como se composto de várias camadas, ou vários níveis de manifestação. Isso fica evidente quando ele narra o desdobramento de um médium, a quem atribui o nome Antônio Castro, em uma sessão mediúnica. Segundo sua narrativa, já em estado de profunda concentração, o médium vai adormecendo devagarinho sob a indução mental de Clementino, um espírito que lhe presta assistência no momento específico do transe.
Do tórax emanava com abundância um vapor esbranquiçado que, em se acumulando à feição de uma nuvem, depressa se transformou, à esquerda do corpo denso, numa duplicata do médium, em tamanho ligeiramente maior.
Nosso amigo como que se revelava mais desenvolvido, apresentando todas as particularidades de sua forma física, apreciavelmente dilatadas.[9]
Pela descrição depreende-se que o autor refere-se a algum tipo de matriz espiritual, invisível mesmo aos olhos dos espíritos que acompanham o fenômeno, e que é de certo modo “materializada” naquela realidade mediante assimilação dessas substâncias que eram emanadas do tórax do médium, e que ele percebe como uma forma de “vapor esbranquiçado”. Acrescenta ainda a existência de uma espécie de “cordão vaporoso” referido em algumas tradições esotéricas e em várias descrições mediúnicas como o “fio prateado” que mantém ligado ao corpo físico o espírito, quando este se afasta do ambiente em que aquele se encontra. Kardec se refere a esse fenômeno como um “rastro luminoso, que termina no corpo.”[10]
O médium, assim desligado do veículo carnal, afastou-se dois passos, deixando ver o cordão vaporoso que o prendia ao campo somático.
Enquanto o equipamento fisiológico descansava, imóvel, Castro, tateante e assombrado, surgia, junto de nós, numa cópia estranha de si mesmo, porquanto, além de maior em sua configuração exterior, apresentava-se azulada à direita e alaranjada à esquerda.
Tentou movimentar-se, contudo, parecia sentir-se pesado e inquieto...[11]
É interessante que, embora sua intenção não seja teorizar sobre o perispírito, na sua narrativa André Luiz procura demonstrar a complexidade desse corpo espiritual que, no seu exemplo, não se integra adequadamente nessa primeira tentativa de estruturar-se à margem do corpo físico, o que requer uma nova intervenção do espírito assistente que auxilia o médium.
Clementino renovou as operações magnéticas e Castro, desdobrado, recuou, como que se justapondo novamente ao corpo físico.
Verifiquei, então, que desse contacto resultou singular diferença.
O corpo carnal engolira, instintivamente, certas faixas de força que imprimiam manifesta irregularidade ao perispírito, absorvendo-as de maneira incompreensível para mim.
Desde esse instante, o companheiro, fora do vaso de matéria densa, guardou o porte que lhe era característico.
Era, agora, bem ele mesmo, sem qualquer deformidade, leve e ágil, embora prosseguisse encadeado ao envoltório físico pelo laço aeriforme, que parecia mais adelgaçado e mais luminoso, à medida que Castro-Espírito se movimentava em nosso meio.[12]
André Luiz atribui a Clementino a explicação do fenômeno:
A principio, seu perispírito ou “corpo astral” estava revestido com os eflúvios vitais que asseguram o equilíbrio entre a alma e o corpo de carne, conhecidos aqueles, em seu conjunto, como sendo o “duplo etérico”, formado por emanações neuropsíquicas que pertencem ao campo fisiológico e que, por isso mesmo, não conseguem maior afastamento da organização terrestre, destinando-se à desintegração, tanto quanto ocorre ao instrumento carnal, por ocasião da morte renovadora. Para melhor ajustar-se ao nosso ambiente, Castro devolveu essas energias ao corpo inerme, garantindo assim o calor indispensável à colmeia celular e desembaraçando-se, tanto quanto possível, para entrar no serviço que o aguarda.
Mesmo essa forma de manifestação tão “imaterial” ainda estaria muito próxima do significado que atribuímos à palavra “matéria”, e também dotada da vitalidade característica do corpo material, tanto que, segundo a narrativa de André Luiz, e concordando com experimentos relatados por Albert de Rochas a respeito da “exteriorização da sensibilidade”,
se algum pesquisador humano ferisse o espaço em que se situa a organização perispirítica do nosso amigo, registraria ele, de imediato, a dor do golpe que se lhe desfechasse, queixando-se disso, através da língua física, porque, não obstante liberto do vaso somático, prossegue em comunhão com ele, por intermédio do laço fluídico de ligação.[13]
Vale considerar que essa complexidade, que é apenas sugerida na obra de Kardec, converge sob todos os aspectos para o que afirmam há milênios as tradições espirituais do hinduísmo e de outras tradições esotéricas, o que possibilita uma análise sob uma perspectiva transdisciplinar. O próprio Kardec já admitia essa possibilidade quando pretendia explicar um determinado assunto em torno do qual não fosse possível uma análise a partir do método científico. Não são poucas as situações em que ele leva em conta, para as suas conclusões, as tradições espirituais, que são também uma forma de conhecimento.
Por ciência espírita Kardec entendia exatamente isto: um método de pesquisa que não se limite àquilo que o materialismo metodológico pode obter. Se até o presente o perispírito continua sendo inacessível aos métodos consagrados pela ciência oficial isso não impede que sejam construídas hipóteses com base nas informações de conteúdo espiritual. O Espiritismo “avança para além do ponto onde teste último (o método materialista) para”. Onde o método materialista não alcança a ciência espírita lança mão do seu próprio método e prossegue, descobrindo “um novo mundo”.[14]
Portanto, nada impede que se avance nessa investigação mediante o critério da universalidade, como propunha Kardec. E nesse sentido, pode-se considerar o rico estudo realizado pelo também professor Carlos Torres Pastorino, ex-padre, filósofo espiritualista esotérico que se tornou espírita aos 40 anos de idade e que publicou, no período que vai de 1964 a 1971, uma coleção à qual intitulou Sabedoria do Evangelho. Segundo as tradições esotéricas o ser humano é constituído de sete “corpos”, ou sete níveis de manifestação:
1 – Atma, que é a centelha divina, o eu profundo, o Cristo Interno.
2 – Manas, a mente espiritual, sede da criação particular de cada indivíduo.
3 – Espírito, o indivíduo espiritual que aprende e evolui ao longo do tempo.
4 – Intelecto ou mente concreta, que manipula as ideias, também chamado de corpo mental.
5 – Corpo astral, sede dos pensamentos e emoções, desejos e ambições, prazeres e dores morais.
6 – Duplo etérico, sede das sensações e dos impulsos que determinam os instintos.
7 – Corpo físico, através do qual o espírito se manifesta no mundo material.[15]
O número sete já deixa claro que estamos lidando com informações de cunho místico, representando a ideia de totalidade, e fazendo uma associação entre o real e o sagrado, mas deixa implícito o entendimento de que o perispírito não é uno, indivisível, como se poderia pensar a princípio. Ao contrário, é mais consistente imaginá-lo como um organismo complexo, um “metaorganismo”, no dizer de Hellenbach, cuja constituição possibilita compreender, por exemplo, os fenômenos de bilocação, ou aqueles mais corriqueiros, que exigem que uma parte permaneça ligada ao corpo físico enquanto outra se projeta no mundo espiritual, como se dá nos momentos de repouso, no sono natural ou provocado, ou nos fenômenos de desdobramento. Permite também compreender relatos como o do “sonho” no mundo espiritual, de André Luiz.
Há ainda outro ponto que precisa ser analisado quando o tema é o perispírito. Tornou-se comum no meio espírita referir-se aos chakras das tradições orientais, aos quais André Luiz chamou de “centros vitais” ou “centros de força”. Seriam como centros energéticos localizados no perispírito e que teriam o seu correspondente nos plexos, palavra originada do latim, plexus, e que representam os pontos de entrelaçamento da rede de filamentos nervosos, de vasos sanguíneos e do sistema linfático. Esses centros vitais funcionariam como elementos de ligação entre corpo e espírito nos fenômenos relacionados à vida, considerada agora sob o seu aspecto interexistencial, ou seja, físico e espiritual.
Também aqui é importante distinguir o lado místico do factual. As tradições espirituais apresentam, na sua maioria, sete chakras principais – de novo o número sete – correspondentes aos sete “principais” plexos, que seriam sete pontos de confluência da rede linfática no organismo humano. Entretanto, a literatura a respeito do assunto reporta a existência de uma infinidade de outros “chakras menores”, ou menos importantes, o que evidencia que a escolha dos “sete” atenda a uma finalidade mística, ou esotérica.
Esses sete chakras principais seriam, por ordem:
1 – Coronário, situado no alto da cabeça;
2 – Frontal ou cerebral;
3 – Laríngeo;
4 – Cardíaco;
5 – Solar ou umbilical;
6 – Sexual, genésico ou hipogástrico;
7 – Básico ou fundamental, localizado na base do ventre.[16]
A existência desses “chakras”, “centros de força” ou “centros vitais” tem sido considerada por alguns estudiosos do Espiritismo como uma mera especulação de natureza mística; defendem que seja simplesmente ignorada pelo fato de não ser assentada em estudos científicos. Entretanto, convém analisar se essa questão também não poderia ser analisada a partir da perspectiva transdisciplinar que, como já foi observado, foi muitas vezes adotada por Kardec quando se tratava de assunto fora dos domínios da ciência. Neste caso, o que André Luiz afirma a respeito do perispírito também está em ordem com o que essas tradições afirmam há alguns milênios.
Estudado no plano em que nos encontramos, na posição de criaturas desencarnadas, o corpo espiritual ou psicossoma é, assim, o veículo físico, relativamente definido pela ciência humana, com os centros vitais que essa mesma ciência, por enquanto, não pode perquirir e reconhecer.[17]
Atualmente a temática relacionada aos chakras já é objeto de pesquisas que procuram utilizar métodos consistentes, como as realizadas pelo Dr. Hiroshi Motoyama, que fundou em 1990 o Californian Institute for Human Science. Mesmo assim observa-se uma grande dificuldade de reconhecimento desses estudos, mesmo enquanto ainda estudos, ou pesquisas, por parte dos meios acadêmicos, o que faz com que sejam relegados ao domínio da religião e do misticismo.
O lado mais importante da contribuição de André Luiz talvez seja o de proporcionar um entendimento que, pelo menos por enquanto, não nos é possível através dos recursos tecnológicos e dos métodos científicos atualmente disponíveis. Por exemplo, quando ele descreve o que chama de “centro coronário”:
Temos particularmente no centro coronário o ponto de interação entre as forças determinantes do espírito e as forças fisiopsicossomáticas organizadas. Dele parte, desse modo, a corrente de energia vitalizante formada de estímulos espirituais com ação difusível sobre a matéria mental que o envolve, transmitindo aos demais centros da alma os reflexos vivos de nossos sentimentos, ideias e ações, tanto quanto esses mesmos centros, interdependentes entre si, imprimem semelhantes reflexos nos órgãos e demais implementos de nossa constituição particular, plasmando em nós próprios os efeitos agradáveis ou desagradáveis de nossa influência e conduta.[18]
É importante que se tenha clareza de que não faz sentido utilizar essas informações como sendo dotadas de qualquer respaldo minimamente científico, mas também não há motivos relevantes para ignorar essa descrição apresentada por André Luiz, carregada de vibração e de uma transcendência quase poética, que nos permite viajar pelo terreno das sensações e imaginar a beleza desses quadros espirituais que, de outra forma, continuariam sendo, para nós, inacessíveis.
Era belo sentir-lhes a vibração particular. Cada qual emitia raios luminosos, muito diferentes entre si, na intensidade e na cor. Esses raios confundiam-se à distância aproximada de sessenta centímetros dos corpos físicos e estabeleciam uma corrente de força, bastante diversa das energias de nossa esfera. Essa corrente não se limitava ao círculo movimentado. Em certo ponto, despejava elementos vitais, à maneira de fonte miraculosa, com origem nos corações e nos cérebros humanos que aí se reuniam. As energias dos encarnados casavam-se aos fluidos vigorosos dos trabalhadores de nosso plano de ação, congregados em vasto número, formando precioso armazém de benefícios para os infelizes, extremamente apegados ainda às sensações fisiológicas.[19]
Em se tratando de perispírito, não se deve deixar de analisar também a não menos controvertida e desconfortável questão do “vestuário” com o qual o espírito se apresenta no mundo espiritual. Tanto Kardec quanto diversos pesquisadores que lhe seguiram já haviam observado, até mesmo mediante uso de fotografia, que “os espíritos se apresentam vestidos de túnicas, envoltos em largos panos, ou mesmo com os trajes que usavam em vida.” Kardec conclui afirmando que o envolvimento em panos parece costume geral no mundo dos espíritos.”[20] Nessa mesma direção André Luiz afirma que, Castro, em espírito, “não envergava o costume azul e cinza de que se vestia no recinto, mas sim um roupão esbranquiçado e inteiriço que descia dos ombros até o solo, ocultando-lhe os pés, e dentro do qual se movia, deslizante.” [21]
Kardec já explicava esse fenômeno mediante o argumento da criação realizada pela mente, que atua sobre os “fluidos” do perispírito, como no caso da caixa de rapé. Em uma linguagem mais atual observa-se que existe um quase consenso segundo o qual o espírito atua sobre um tipo de matéria comum à sua dimensão espiritual, até mesmo de modo inconsciente, imprimindo sobre ela os seus gostos, suas preferências, sua visão de mundo e até o seu estado de espírito. Isso pode ser uma explicação para o fato de os espíritos ligados às tradições indianas se apresentarem de turbante, os europeus em longos panos brancos como na imaginação dos artistas medievais, os indígenas com suas indumentárias e seus cocares e os pretos-velhos com suas tradicionais roupas brancas de algodão usadas pelos escravos.
Também pode explicar porque os espíritos sofredores se percebem feridos, mutilados, vestidos em andrajos, sangrando ou, literalmente, “na lama”. Em linha com o extenso estudo realizado por Kardec a partir da questão 237 de O Livro dos Espíritos, inclusive com um primoroso ensaio no item 257, os espíritos da atualidade trazem novas informações, mais ricas, mais detalhadas, possibilitando ampliar esse entendimento.
Kardec já havia observado que os espíritos trazem no seu perispírito a “reminiscência do que padecem durante a vida, reminiscência não raro tão aflitiva quanto a realidade”. É o que se observa nas atuais sessões mediúnicas, onde comparecem espíritos ainda sob a impressão das enfermidades ou do acidente no qual vieram a desencarnar, demandando medidas de assistência e socorro por parte daqueles que com eles dialogam. Como bem observa Kardec, “quando se lembram do corpo que revestiram, têm impressão semelhante à de uma pessoa que, havendo tirado o manto que a envolvia, julga, passado algum tempo, que ainda o traz sobre os ombros.” [22]
Assim como se dava com Allan Kardec, a literatura mediúnica produzida na atualidade não tem como foco a mera curiosidade científica ou apenas a indagação filosófica; seu foco incide, sobretudo, sobre a questão moral. É o que se depreende, por exemplo, do interessante depoimento obtido através da sensibilidade mediúnica de Chico Xavier, assinado por Volquimar, uma jovem desencarnada no incêndio do edifício Joelma, em 1974 na cidade de São Paulo:
É preciso haver atravessado a existência terrestre quase que em serviço absoluto de espiritualização para que o nosso envoltório sutil não seja assinalado pelas impressões da morte. Aqui, surpreendemos companheiros muitos que passam ainda por minucioso tratamento de plástica regenerativa, enquanto que muitos outros recolhem assistência para reparações últimas de pontos orgânicos lesados.[23]
Apesar do enfoque eminentemente moral, é possível deduzir daí informações a respeito dessas questões que interessam à formulação de uma teoria espírita a respeito do perispírito, ou corpo astral, corpo psíquico, corpo bioplasmático, seja qual for o termo preferido pelos estudiosos da atualidade. É assim que podemos compreender que
conforme os sentimentos e ideias que carregamos, operamos mecanicamente em nós o registro de emoções e pensamentos que se estampam em nossa forma nova, de modo inevitável, desde que ainda não tenhamos a precisa educação da vida íntima, a fim de comandar com segurança os novos estados de espírito.[24]
Talvez o mais importante seja não perder de vista o propósito de Kardec e dos espíritos que orientaram a codificação, observável também nos textos psicografados pelos mais variados médiuns brasileiros, como Chico Xavier, Yvone A. Pereira, Divaldo Franco, Zíbia Gasparetto e Wanderley de Oliveira, para citar apenas alguns. Em todos eles a intenção é que esse conhecimento represente um estímulo ao ser humano no sentido de compreender melhor a sua situação de espírito imortal em experiência transitória na dimensão terrena, tendo sempre em vista a sua transformação interior na direção de uma ética relacional cada vez mais consciente e amorosa, solidária e universal.


[1] Bíblia de Jerusalém, I Epístola aos Coríntios, cap. 15 v. 35 a 53. Ed. Paulus, São Paulo/SP.
[2] Conforme consta no comentário à questão 93 e, depois, na 135-a de O Livro dos Espíritos.
[3] Kardec, Allan. A Gênese, cap. XXI item 17. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4] Aksakof, Alexandre. Animismo e Espiritismo, prefácio. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[5] Ostrander, Sheila e Schroeder, Lynn. Experiências Psíquicas Além da Cortina de Ferro, Ed. Cultrix, São Paulo/SP.
[6] Xavier, Francisco C. Nosso Lar, pelo espírito André Luiz, cap.36. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[7] Xavier, Francisco C. Evolução em Dois Mundos, pelo espírito André Luiz, cap. 2. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[8] Ostrander, Sheila e Schroeder, Lynn. Experiências Psíquicas Além da Cortina de Ferro, pag.235 Ed. Cultrix, São Paulo/SP.
[9] Xavier, Francisco C. Nos Domínios da Mediunidade, cap. 11. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[10] Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, item 118. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[11] Xavier, Francisco C. Nos Domínios da Mediunidade, pelo espírito André Luiz, cap. 11. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[12] Xavier, Francisco C. Nos Domínios da Mediunidade, pelo espírito André Luiz, cap. 11. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[13] Xavier, Francisco C. Nos Domínios da Mediunidade, pelo espírito André Luiz, cap. 11. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[14] Kardec, Allan. A Gênese, cap. X item 30. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[15] Pastorino, Carlos J.T. Sabedoria do Evangelho vol. I pag. 19 e vol.4 pag.54. Ed. Sabedoria, São Paulo/SP.
[16] Souza, Elzio F. Perispírito e Chakras. Disponível em 07/03/2018 em www.acasadoEspiritismo.com.br
[17] Xavier, Francisco C. Evolução em Dois Mundos, cap. 2. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ
[18] Xavier, Francisco C. Evolução em Dois Mundos, cap. 2. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[19] Xavier, Francisco C. Missionários da Luz, cap. 1. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[20] Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. VIII item 126. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[21] Xavier, Francisco C. Nos Domínios da Mediunidade, pelo espírito André Luiz, cap. 11. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[22] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 256. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[23] Xavier, Francisco C. e Ramacciotti, Caio. Somos Seis, por espíritos diversos. Ed. GEEM, São Bernardo do Campo/SP.
[24] Xavier, Francisco C. e Ramacciotti, Caio. Somos Seis, por espíritos diversos. Ed. GEEM, São Bernardo do Campo/SP.

Comentários

  1. Belo trabalho de pesquisa, Elias! Nós, Espíritas, precisamos olhar com atenção para a questão dos Chákras. Muito anterior ao Espiritismo e que ajuda muito a entender a mediunidade. Fundamental conhecer no trabalho do dr. José Lacerda de Azevedo, que pesquisou durante 20 anos as questões do Espírito e suas implicações. Duas das obras que fundaram a Apometria são de autoria dele: "Energia e Espírito" e " Espírito Matéria". Gostei do artigo por deixar abertas as possibilidades.

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    1. Obrigado pelo comentário, Suzi. Nosso desafio, penso eu, é integrar os conhecimentos, em vez de reforçar as diferenças. Um abraço.

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  2. Singelas observações:

    Muito bom o seu estudo. Texto bem fundamentado e de caráter didático. Segue uma breve problematização sobre alguns pontos nele abordados:

    1. É importante notar que a noção de corpo espiritual de Paulo possui uma característica escatológica, uma vez que este seria atribuído ao Espírito apenas e tão somente no dia da ressurreição. Diferentemente, no entendimento kardequiano, o perispírito é uma realidade presente e existente, e não uma concessão divina que alguns escolhidos receberiam apenas no final dos tempos.

    2. O perispírito pode degenerar ou ser, até mesmo, destruído? Em que sentido o perispírito é divisível? Caso seja divisível, uma eventual desintegração do mesmo seria irreversível?

    3. À denominação "corpo espiritual", seria preferível o conceito kardequiano de "perispírito", uma vez que este último denota o sentido de irradiação em torno da alma, enquanto que o primeiro, de mera réplica do corpo físico, o que enseja uma compreensão excessivamente materializada da própria ambiência da erraticidade. Por exemplo, se o Espírito apresentar a capacidade de "sonhar" na erraticidade, é porque dorme. Ora, mas o Espírito não pode sentir sono, uma vez que não traz consigo os órgãos materiais responsáveis pelas sensações biologico-materiais e de outras atinentes à vida corpórea. Na hipótese de a vida espiritual ser materializada ao ponto de apresentar indústrias, casas, veículos automotivos, e até mesmo banheiros com chuveiro, não haveria muito sentido o Espírito se encarnar num corpo material para, sendo matéria, agir sobre a mesma e realizar aquisições intelecto-morais ao seu adiantamento.

    A própria categoria "plano espiritual", traria em seu bojo, a ideia de oposição cabal entre "mundo corpóreo" e, digamos, "mundo espiritual". Separação, a meu ver, mais didática do que de fato. Eu ficaria mais próximo dos conceitos de mundo corpóreo e erraticidade (ou mundo dos espíritos).

    Kardec, quando utiliza seus conceitos, o faz mantendo correspondência entre a literalidade da ideia e seu caráter mais simbólico ou figurativo, forma e conteúdo dos termos. Entendia que o mundo corpóreo e o mundo dos Espíritos estavam entrelaçados, justapondo-se, mutuamente, um ao outro, contrariamente à ideia de uma delimitação ou barreira claramente entreposta em meio a ambos, dividindo-os ao meio. Por isso, substituir um conceito pelo outro significa mudar de paradigma, rompendo com o anterior e seus pressupostos. Acredito que este aspecto também deva ser ponderado e meditado.

    De qualquer modo, na minha visão, esta perspectiva acarreta uma tendência de apego aos condicionamentos "lógicos" da vida material.

    Realmente, muito bom o seu estudo. Segue o debate!

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    1. Essa questão do "apego aos condicionamentos lógicos da vida material", a meu ver, precisa ser colocada na discussão a respeito da mediunidade e na análise do material coletado através dessa via. Vejo no meio espírita uma tendência a assimilar como "realidade" toda e qualquer descrição de mundo espiritual pela via mediúnica, sem levar em conta a complexidade do fenômeno mediúnico. Muito obrigado pelas suas observações, tão cuidadosas e consistentes. Um abraço.

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