Elias Inácio de Moraes
Há
alguns anos, em visita a uma casa espírita de Goiânia, assisti ao comentário da
noite feito por um dos trabalhadores da instituição. Ele discorria sobre um
determinado tema e usava como referência alguns trechos do livro A Gênese, de Allan Kardec, projetados na
parede, aos quais acrescentava seus comentários pessoais. Ocorre que alguns desses
trechos, fundamentados na ciência vigente no século XIX, se referiam a
conteúdos que haviam sofrido profundas mudanças de abordagem desde a época de
Kardec. Não apenas eu, mas também algumas pessoas presentes, percebemos,
constrangidos, o descompasso entre seus comentários e o que é compreendido hoje
no mundo da ciência.
Mais
recentemente tive essa mesma sensação de estranhamento ao assistir a outro
comentário realizado em uma grande casa espírita, desta vez a respeito da
questão 51 de O Livro dos Espíritos,
que trata da época em que teria vivido Adão. Como as questões eram estudadas em
sequência, o próprio comentarista não escondia o seu embaraço diante da
resposta dada pelo espírito, que está em total descompasso com a correção feita
mais tarde pelo próprio Kardec, e que consta no item 16 do capítulo XII de A Gênese. Às vezes se ouvem ainda referências
aos “três reinos” da natureza, estudados por Kardec no capítulo XI da segunda
parte de O Livro dos Espíritos, demonstrando
que a pessoa desconhece que essa divisão foi abandonada pelo meio científico
ainda na década de noventa, e que hoje se reconhecem cinco reinos, excluídos daí
os minerais.
Desde
então tenho refletido sobre a importância de promovermos alguns estudos a
respeito da época em que a obra de Kardec foi produzida, seu contexto científico,
filosófico e religioso, bem como dos desdobramentos posteriores de algumas ideias
que sofreram mudança expressiva nos últimos cento e sessenta anos. Pretendo, com
isto, estabelecer um diálogo e uma reflexão com todos os que se interessam pelo
estudo do Espiritismo, facilitadores, monitores de cursos, comentaristas, dos
quais as pessoas cobram maior segurança no tratamento de questões que
transcendem a questão religiosa, requerendo uma compreensão mínima do contexto
científico e filosófico em que foram formuladas.
Não
se trata de empreitada fácil, e nem tem como ser realizada por um único
indivíduo, pois que envolve as mais diversas áreas do conhecimento humano, hoje
tão diversificado. Entretanto, um passo inicial pode ser dado para que ela
possa ser desenvolvida pela coletividade dos estudantes e pesquisadores do Espiritismo,
com a profundidade e a seriedade que esse trabalho requer.
Cabe
aqui esclarecer que não se trata de proceder a uma “revisão” nos textos
kardequianos, ou de “atualizá-los”, como pretendem alguns; trata-se tão somente
de compreender a obra kardequiana no seu tempo e no seu contexto, identificando
algumas explicações novas trazidas ao mundo pelos homens da ciência e da
filosofia, e mesmo pelos espíritos, de modo a permitir um diálogo mais consistente
entre o Espiritismo e os conceitos hoje vigentes, como previa o próprio Allan
Kardec.
Aliás,
esta seria talvez a única forma realmente efetiva de se preservar a grande
contribuição de Kardec para o pensamento religioso do mundo, e que se constitui
na possibilidade que hoje temos de viver nossa espiritualidade de maneira
plena, em clima de perfeita aliança entre a ciência e a religião, consideradas
por ele como “as duas alavancas da inteligência humana”.
Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente estaria em erro e a
outra com a verdade, porquanto Deus não pode pretender a destruição de sua
própria obra. A incompatibilidade que se julgou existir entre essas duas ordens
de ideias provém apenas de uma observação defeituosa e de excesso de exclusivismo,
de um lado e de outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à
intolerância.[1]
Bem
compreendido, o Espiritismo se mantém em sintonia com os extraordinários
avanços realizados pela ciência nos últimos cento e sessenta anos. Se essa
sintonia não é percebida é porque, por um lado, falta aos pesquisadores da
ciência levar em consideração as questões relativas ao espírito, e por outro, falta
a muitos espíritas levar em conta inúmeros avanços já consolidados pela ciência,
numa postura de fanatismo religioso incompatível com os princípios estruturados
por Allan Kardec.
Com isso
perdem ambos, a ciência e o Espiritismo. A ciência, porque continua presa aos
estreitos limites da matéria, mantendo o vazio da falta de espiritualidade em
muitas construções teóricas onde esse elemento espiritual seria decisivo, e o Espiritismo
porque permite o retorno do fanatismo religioso mesmo na religião espírita, cuja
missão original consistia em unir espiritualidade e razão. Com isso, adia-se
novamente o que Kardec considerava como sendo “uma nova era na humanidade”, uma
era em que a ciência e a religião, “marchando combinadas, se prestarão mútuo
concurso”, fundando as bases para um mundo melhor e mais feliz.
(Este texto é apresentado como justificativa para o livro Contextualizando Kardec, de autoria de Elias Inácio de Moraes, que está sendo concluído para publicação em breve)
Muito bom meu amigo. Excelente reflexão.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirIdeia ótima pois temos em várias partes da codificação informações mais atualizadas atualmente. Por exemplo no LE, Elementos Gerais do Universo ou Da Criação, tbm em A Gênese, Uranografia e geologia de maneira geral. Enquanto que alguns textos como de Arago e Dr. Barry em A Gênese, que tratam das fases e ciclos cósmicos, planetários, sociais e orgânicos nunca foram estudados posteriormente, ficando lacunas a serem ainda exploradas pelos espíritas ou cientistas. Textos que atribuem até uma certa lógica aos princípios dos signos do Zodíaco e a influência dos astros na personalidade, mas que foram "engavetados" pelos espíritas. Acho que uma "releitura" de Kardec desde que fundamentada na ciência e nas novas descobertas seria muito útil! Ainda há muito em Kardec a se explorar.
ExcluirPerfeito, Juliano. Obrigado por seu comentário.
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