Elias Inácio de Moraes
Em que consiste esse
tão comentado acordo, o Pacto Áureo, que completou 70 anos no último dia 05/10?
Como ele se apresenta hoje e qual a sua relevância para o movimento espírita na
atualidade?
É importante saber, primeiramente,
que bem antes do Pacto Áureo já existia um sonho de vários líderes espíritas brasileiros,
de organizar o Espiritismo com base no princípio federativo. Sob um ponto de
vista histórico, esse sonho estava relacionado aos ideais que nortearam a proclamação
da República Federativa do Brasil em 1889, e que representavam um aprimoramento
da ideia da Comissão Central idealizada por Kardec, como consta do livro Obras Póstumas. Por esse modelo, as
Casas Espíritas se organizariam em torno de federações estaduais que, por sua
vez, comporiam um movimento semelhante em nível nacional através de uma
confederação, ou de uma federação nacional. Deste modo se garantiria liberdade
de ação a todas as instituições componentes do sistema e, ao mesmo tempo, se multiplicariam
forças mediante uma ação conjunta em nível estadual e nacional.
Não é sem razão que a
Federação Espírita Brasileira - FEB, originada de diversos grupos espíritas do
Rio de Janeiro, entre eles o Grupo Ismael, já havia sido fundada em 1884 com
esse nome. Nessa mesma linha de pensamento foram criadas a Federação Espírita
do Paraná (1902) e a Amazonense (1904), a União Espírita Paraense (1906), a Mineira
(1908), a Baiana (1915), e as federações espíritas do Rio Grande do Sul (1921)
e Catarinense (1945). A Liga Espírita do Brasil havia sido fundada em 1926, no
Rio de Janeiro, como alternativa à FEB, e somente em São Paulo já existiam a União
Federativa Paulista (1933), a Federação Espírita do Estado de São Paulo (1936)
e a recém fundada União Social Espírita de São Paulo (1947).
Naquele 05/10/1949 um
grupo de líderes espíritas que participavam do 2º Congresso da CEPA –
Confederação Espírita Pan-Americana – procurou Wantuil de Freitas, então
presidente da FEB, visando estabelecer um acordo que pusesse fim às divisões internas
do movimento espírita, do que resultou o documento que Lins de Vasconcelos
batizou de “Pacto Áureo”. Esse grupo era constituído de 13 pessoas que
representavam 6 instituições de 6 estados brasileiros. Nesse acordo a Liga
Espírita do Brasil renunciava ao seu propósito de articular o movimento
espírita em nível nacional e reconhecia a FEB como investida desse papel. A FEB
comprometia-se a criar o Conselho Federativo Nacional, que se constituiria no
foro nacional do movimento espírita dentro dessa perspectiva federativa.
O acordo recebeu
muitas críticas à época, sobretudo, por estabelecer como principal referência
doutrinária, em vez das obras de Allan Kardec, o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Publicado onze anos
antes pelo médium mineiro Chico Xavier o livro era objeto de muitas
controvérsias. Havia quem questionasse a linguagem um tanto católica de
Humberto de Campos, que apresenta um “anjo” chamado Ismael, com sua “falange”, a
quem competia velar pelo desdobramento dos planos de Jesus em relação ao Brasil.
Além disso, Jesus apresenta-se choroso e amargurado, descendo das altas esferas
celestiais entre “anjos e tronos” que lhe formavam uma “corte maravilhosa”
constituída de “querubins e arcanjos”, bem ao estilo da suntuosidade católica, desconhecendo
totalmente as ocorrências em andamento no planeta e até mesmo a sua geografia, em
uma imagem muito distante da que os espíritos lhe atribuíram na obra de Kardec,
de guia e modelo para a humanidade.
Mesmo em meio a todos esses
questionamentos começou-se, desde então, uma gradativa adequação das
instituições espíritas no sentido de organizar o movimento nacional em torno da
FEB, tendo como objetivo final a implantação do modelo federativo. Em 1950 foi
fundada a União Espírita Goiana na sede do Centro Espírita Estudantes do
Evangelho, denominação alterada em 1972 para Federação Espírita do Estado de
Goiás. Ao longo do tempo foram fundadas federações espíritas em todos os
estados brasileiros, inclusive no estado do Tocantins, criado em 1988.
Mas ficou nisso a
implementação do Pacto Áureo; a filosofia por trás do modelo federativo, que se
constituía no sonho dos espíritas do início do século XX, não foi assimilada
pela maioria das instituições criadas com essa finalidade. Por uma razão
histórica as federações estaduais, assim como ocorreu com a federação goiana,
foram estabelecidas na sua maioria em torno de uma instituição doutrinária já
existente. Deste modo, coexistiam as atividades doutrinárias e a ação
federativa, perpetuando uma confusão de papeis. Mesmo quando já consolidados os
estatutos sob a forma de uma instituição federativa essas entidades continuavam
funcionando também como Casas Espíritas, exercendo o seu papel federativo em
paralelo com as suas atividades doutrinárias. O mais complicado: quem elegia
sua diretoria eram os seus associados pessoa física, e não os dirigentes das
instituições espíritas daquele estado, como deveria ocorrer em um modelo fiel
ao princípio federativo.
Até hoje a maioria das
federações estaduais permanece longe do modelo proposto, limitando-se ao nome
da instituição e à sua pretensão de representar e de orientar o movimento
espírita na sua zona de abrangência. Isso ocorre até mesmo com a FEB, onde o
princípio federativo se restringe ao Conselho Federativo Nacional, cujo
funcionamento é regulado por uns poucos parágrafos dentro do capítulo XI do seu
estatuto, muito mais voltado para as atividades doutrinárias de uma Casa Espírita convencional do que para a sua
pretendida função federativa. Todo o poder administrativo é reservado a um
Conselho Superior, ao qual as federações estaduais não têm acesso e sobre o
qual não dispõem de meios formais pelos quais possam exercer qualquer
influência. Em vez de um movimento articulado de baixo para cima, o movimento
continua sendo articulado de cima para baixo.
Ainda hoje, apenas em algumas poucas federações as Casas Espíritas desfrutam de voz e voto nas decisões do movimento espírita do seu estado, o que desestimula a sua participação e engajamento no movimento federativo. Aliás, isso é o que
foi corrigido em Goiás com a última reforma do estatuto, a partir do qual as
Casas Espíritas passaram a constituir a Assembleia Geral, que é quem elege tanto
a Diretoria Executiva quanto o Conselho de Administração. Na maioria das
federações a participação das instituições espíritas continua restrita ao CFE - Conselho Federativo Estadual -,
que é apenas um órgão onde se discutem as questões de interesse do movimento,
assim como ocorre na FEB com o CFN.
Nessa condição híbrida
de Casa Espírita e instituição federativa muitos dirigentes eternizam-se no
poder, contrariando a filosofia representativa do modelo e impedindo a
renovação e a oxigenação do próprio movimento; em muitas federações não há qualquer
dispositivo estatutário que lhes limite a quantidade de mandatos, comprometendo
o seu dinamismo e a sua constituição plural. Essa mesma cultura se reproduz em
grande número de Casas Espíritas, dificultando a formação de novas lideranças e
colocando em risco até mesmo o futuro do Espiritismo enquanto movimento
organizado junto à sociedade.
Quanto à relevância do
Pacto Áureo para o movimento espírita atual, em que pese as críticas ao modo
como ele foi firmado, não resta dúvida de que o modelo federativo em que ele se
inspira continua sendo a melhor alternativa para a organização institucional do
movimento espírita, mais em sintonia com a proposta formulada por Allan Kardec.
Mas para que ele seja
efetivamente implementado resta ainda um grande caminho a ser percorrido, e para
isso é preciso que as pessoas que estão à frente das instituições federativas
compreendam e assimilem a filosofia por trás do modelo. Depois disso é preciso enfrentar o desafio operacional de criar as instituições que deverão dar continuidade às atividades dos grupos doutrinários que permanecem embutidos na sua
organização, para que atuem de modo independente, participando em igualdade de condições do movimento federativo, agora como Casas Espíritas associadas. O mesmo precisa
ocorrer também com a parte editorial, um tanto especializada para ficar à mercê das
preferências de cada nova diretoria que assume as federações que possuem editoras. A criação de empresas
editoriais a serviço do Espiritismo, gozando de maior autonomia administrativa
e financeira, pode proporcionar maior vitalidade para todo o sistema, que
poderá contar com equipes mais profissionalizadas e permanentes.
Além de aliviar o peso
da gestão das instituições federativas, torna-se possível, com esse tipo de
medida, estabelecer o foco na unificação, concentrando os esforços das suas
diretorias executivas na finalidade primordial pela qual essas entidades foram
criadas, e que se constitui na essência do Pacto Áureo. Seus diretores serão escolhidos dentre os dirigentes das próprias instituições espíritas associadas, o que garantirá a representatividade do movimento.
Em tempos de
conectividade ampliada pelas redes sociais e, uma vez as federações estejam
efetivamente focadas no seu papel integrador, a responsabilidade pela condução
do movimento espírita poderá ser compartilhada por um grupo muito maior de
representantes legítimos das Casas Espíritas, na forma dos Conselhos Regionais,
mediante reuniões e eventos presenciais e virtuais de um CFE não mais limitado
pelas distâncias dentro do próprio estado, mas agora aproximado pela possibilidade
de reuniões virtuais.
As diferenças no modo
de compreender e aplicar os princípios de Allan Kardec serão muito mais
facilmente equalizadas através dos congressos por ele previstos, nos quais as
diferentes visões poderão ser objeto de estudos e debates visando a busca,
senão do consenso, ao menos do entendimento que assegure o caráter progressivo
da Doutrina Espírita, a exemplo do que se verifica no mundo das ciências, de
onde o Espiritismo surgiu.
Assim, realizar-se-á o
sonho de Kardec, registrado em O Livro
dos Médiuns, que era o de constituir “a grande família espírita, que um dia
consorciará todas as opiniões e unirá os homens por um único sentimento: o da
fraternidade, trazendo o cunho da caridade cristã”.
Parabéns! Ótimo conteúdo!
ResponderExcluirAcredito que a doutrina espírita, muito fará pela humanidade no sentido de consolar e libertar as almas de suas paixões e crendices, quando nós, os seus seguidores diminuírmos em nós, a vaidade do personalismo e agirmos como fez o nosso querido doutor Bezerra de Menezes, que por amor ao espiritismo, alcançou uma visão maior do amor e muito dedicou com fidelíssima humildade ao trabalho do Cristo! Ele, apagando-se, se tornou luz para um povo carente de amor e de esperança; ele, se fazendo pequeno, se agigantou no trabalho de Jesus! Muito fez para unir a nossa doutrina, compreendendo as sábias palavras de nosso Mestre Querido que um dia nós disse: " haverá um só rebanho e um só pastor!" "A Unificação é urgente mas não poderá ser apressada!" Já nos dizia nosso velho e querido Adolfo Bezerra de Menezes; então, se somos imortais e temos a eternidade pela frente, continuemos está obra de união fraterna para com o espiritismo tão amado por nós os imitadores de Jesus.
ResponderExcluirContinuemos nesta tarefa dando todo o nosso amor e depositando nele a nossa fé, guardando a certeza na alma de que muito proximo está o dia de vermos está tarefa concluída, lembrando que a vinha é do Senhor nosso Deus e nosso Criador.
Ainda há muito a ser feito pela unificação: comecemos por nós e deixemos Jesus fazer a Sua parte.
Obrigado pelo seu comentário, carregado de sensibilidade.
ExcluirInteressante seu texto, Elias, tanto pela análise política que expõe, favorável à democratização do movimento espírita (infelizmente, você não usa esse nome, deixando de conferir clareza política às ideias que defende), quanto pelo que omite: que a finalidade do Pacto Áureo ou sua principal consequência foi padronizar o espiritismo brasileiro em torno do Kardecismo branco febiano, excluindo de vez as tradições negras na ritualidade considerada espírita, pela prática da ideologia da pureza doutrinária. Penso que você poderia por isso avançar na análise. Abraço!
ResponderExcluirExcelentes observações. Parabéns!
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