DE HOMEM PARA HOMEM



(Elias Inácio de Moraes)

Com a proximidade do dia da mulher vêm à tona o nosso papel enquanto homens na luta pela consolidação do que consta em O Livro dos Espíritos a respeito da igualdade dos direitos do homem e da mulher.
817. São iguais perante Deus o homem e a mulher e têm os mesmos direitos?
Não outorgou Deus a ambos a inteligência do bem e do mal e a faculdade de progredir?”
818. Donde provém a inferioridade moral da mulher em certos países?
Do predomínio injusto e cruel que sobre ela assumiu o homem. É resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco adiantados, a força faz o direito.”
Como podemos observar, desde a sua origem que o Espiritismo se coloca como agente de transformação social em relação às mais variadas questões da vida cotidiana.
Esta semana duas articulistas espíritas publicaram um artigo na revista Carta Capital no qual questionam a direção da – Federação Espírita do Estado de São Paulo – por convidar um homem para proferir uma palestra em homenagem ao Dia da Mulher. Realmente, por que não convidaram uma mulher para essa palestra? Não há no quadro de palestrantes da instituição, ou fora dela, mulheres competentes para essa homenagem?
O título do artigo foi assim definido: Precisamos falar do sistema patriarcal que predomina nas instituições espíritas. Ao longo do texto elas comentam que “ver essa ação acontecendo com naturalidade nos faz pensar que a pauta da representatividade (feminina) talvez não seja tão óbvia assim.”
Mulheres são maioria nos serviços assistenciais, nas atividades operativas das Casas Espíritas, e minoria nos cargos de direção, nos quadros de expositores, nas frentes de representação. É como se elas “servissem” para as atividades mais simples, mas não para as de maior visibilidade. Algo como ficarem na cozinha enquanto nós, os homens, conversamos na sala de visitas.
Não é difícil constatar que o sistema patriarcal permeia a cultura das nossas instituições. Uma passada de olhos pelos posts de divulgação dos eventos espíritas mostra que a imensa maioria de palestrantes é homem, branco, hétero, tudo bem de acordo com a sociedade patriarcal. Também os postos de presidência são ocupados, quase sempre, por homens; são poucas as instituições que apresentam um bom histórico de presença feminina no seu cargo máximo.
Questiona-se, com muita pertinência, se não é esse “machismo estrutural” que está alimentando as elevadas taxas de feminicídio que envergonham a nós homens em particular há anos. Será que o aumento de 7,2% nos assassinatos de mulheres no ano de 2019 – quando as taxas de homicídio caíram 22% – não pode estar relacionado ao clima de validação do discurso machista que tem se verificado na sociedade brasileira nos últimos anos?1
Se pretendemos que o Espiritismo continue sendo um dos impulsionadores do progresso do mundo, é nosso dever, enquanto homens que atuamos nas nossas Federações ou Casas Espíritas, nos atentemos para a representatividade feminina nas nossas instituições. Quantas vezes temas dessa natureza fizeram parte da nossa programação de palestras?
Há como medir a importância que atribuímos à presença feminina na nossa instituição. Aliás, é muito simples; basta atentarmos para indicadores como:
- Porcentagem de mulheres em cargos de diretoria.
- Porcentagem de mulheres liderando equipes de trabalho.
- Porcentagem de mulheres fazendo palestras cotidianamente na instituição.
- Porcentagem de mulheres realizando palestras em eventos especiais promovidos pela instituição.
- Quantidade de mulheres que ocuparam o cargo máximo da instituição nos últimos 20 anos.
Se essa porcentagem oscila levemente em torno de 50%, então podemos considerar que existe uma igualdade de direitos entre homens e mulheres na nossa instituição, mas, se ela favorece um dos lados em detrimento do outro, isto é sinal de que precisamos dialogar com as mulheres para identificar as possíveis causas dessa distorção e buscar sugestões para corrigi-la.
A valorização da participação feminina na tradição judaica, da qual fazemos parte, começou com Jesus, que desafiou os preconceitos da sua época e integrou ao seu círculo íntimo mulheres como Maria e Marta, irmãs de Lázaro, Maria de Magdala, Joana, e ainda conversou com toda a naturalidade com a mulher samaritana à borda do poço.
Também Kardec deu exemplo de valorização da presença da mulher ao ancorar significativa parte do trabalho de produção dos textos iniciais do Espiritismo nos ombros de meninas-moças e mães de família da sua época.
Há ainda outras questões que precisam ser objeto da nossa atenção, enquanto homens. Por exemplo, existe na Casa Espírita algum tipo de restrição ou reprovação das mulheres por conta de vestuário ou modos de agir tipicamente femininos? No início do século passado era comum a censura a alguns modelos de vestimenta, como shorts ou decotes. Era como se nós homens fôssemos perturbados sexuais que não pudéssemos ter qualquer visão de partes do corpo da mulher sem que isso nos provocasse alguma espécie de “desequilíbrio espiritual”. Reproduzindo o mito de Adão, a mulher era considerada culpada por isso, e não nós homens.
Não há como negar que mesmo a nossa literatura mediúnica, em grande parte produzida até a metade do século passado, também está repleta de exemplos de machismo, como no caso dos inúmeros instrutores espirituais, dirigentes de colônias e até o governador de Nosso Lar, que são quase todos homens. Até as atividades para homens e mulheres são diferentes no livro, o que era compreensível para aquela época, mas não mais hoje. Esse tipo de situação requer de nós um olhar cuidadoso para separarmos o que é ensinamento moral e o que é contexto social e histórico.
O Espiritismo, conforme foi pensado por Kardec, deve caminhar na vanguarda das transformações sociais. Ele atua em conjunto com todas as forças que visam o progresso da vida social, tendo como inspiração os valores norteadores da sociedade moderna, traduzidos no lema da Revolução Francesa: Igualdade, Fraternidade e Liberdade.
Ao final do artigo elas apresentam uma sugestão para nós homens, como que desejando nos fazer refletir: “Querem nos homenagear? Unam-se, então, em vossos centros, casas, onde puderem e discutam o patriarcado, o machismo, a masculinidade tóxica que também oprimem vocês. Desconstruam e desçam do patamar de detentores da voz e da verdade, escutem, ouçam de verdade as mulheres à sua volta.”
Em sintonia com O Livro dos Espíritos, não podemos silenciar diante toda e qualquer situação em que um homem, por palavras ou atitudes, exerça qualquer tipo de opressão sobre uma mulher, qualquer forma de “abuso da força sobre a fraqueza”, o que é um sinal evidente de espírito “moralmente pouco adiantado” para quem “a força – por que não dizer, a brutalidade – ainda faz o direito.”
E, sobretudo, não podemos reproduzir, em pleno século XXI, valores sociais obsoletos, que já deviam ter ficado para trás, mas que insistem em manter-se vivos, e para cuja perpetuação nós homens temos contribuído todas as vezes que negamos às mulheres, por ação ou por omissão, a voz e o espaço a que elas têm direito.

Nota: a imagem é uma das célebres pinturas da artista Akiane Kramarik e retrata Jesus.

Comentários