A REENCARNAÇÃO NO FILME “O POÇO”, ou Em que andar você voltará da próxima vez?


Elias Inácio de Moraes

Chocante, é o adjetivo que eu atribuo ao filme O poço. Mais chocante ainda pelo quanto ele representa a realidade numa perspectiva espiritual mediante uma tão forte e simples metáfora: de tempos em tempos a gente troca de andar na pirâmide social pelos mecanismos da reencarnação.

O filme retrata uma prisão vertical, onde cada cela representa um andar de um poço que parece não ter fim. O alimento é levado por meio de uma farta mesa, em formato de plataforma, que começa por alimentar os prisioneiros do primeiro andar, descendo depois ao segundo, ao terceiro, até o último. Os prisioneiros dos andares superiores se alimentam sem a menor consideração com os que se acham nos andares inferiores; na medida em que a plataforma vai descendo os que estão nos andares inferiores vão sendo obrigados a comer os restos deixados pelos prisioneiros dos andares de cima, até ao final quando sequer sobra algum alimento para os últimos, muitos dos quais morrem de fome. A cada trinta dias os prisioneiros são trocados de cela, e ninguém sabe em qual andar do poço despertará a cada mudança. Quando nos andares superiores, todos se locupletam, por mais que saibam que lhes faltará alimento quando estiverem nos andares inferiores. E quando nos andares inferiores todos experimentam a tragédia da privação do mínimo necessário à sua subsistência, sonhando com os andares que lhes estão acima.

Assim como no filme, durante a sua experiência na Terra cada ser humano localizado nos andares superiores da pirâmide social procura se apropriar ao máximo possível dos meios de subsistência ao seu alcance, inclusive do supérfluo, quase sempre esquecido dos que estão situados nos níveis mais baixos. Mediante argumentos como merecimento, livre mercado, competitividade, motivação pelo lucro, ou mediante o corporativismo das categorias, das profissões e dos cargos públicos, as pessoas e os grupos sociais procuram sempre garantir para si a melhor parte, em prejuízo dos que se servem em seguida.

Em O Livro dos Espíritos, quando perguntaram se “é lei da natureza a desigualdade das condições sociais”, a resposta não deixa dúvida: “Não; é obra do homem e não de Deus.” Ou seja, a desigualdade social nada tem a ver com algum plano Divino, ou com algum mecanismo destinado a promover a evolução dos espíritos; ela é apenas uma criação humana motivada pelo egoísmo.1

Quando transitando pelos andares superiores, o de que ninguém se lembra, quase sempre, é que dentro em breve todas essas posições estarão alteradas, e aqueles que hoje ocupam as situações privilegiadas poderão retornar nos mais baixos níveis desse “poço” metafórico que é a experiência da vida na Terra. Assim iludidos, os poucos que ocupam os primeiros níveis da pirâmide social procuram açambarcar a maior parte da riqueza socialmente produzida, e para isso recorrem aos mais variados expedientes, de tal modo que, no Brasil, as 6 pessoas mais ricas, juntas, detém a mesma quantidade de riqueza que os 104 milhões mais pobres. Quando considerado o seleto grupo dos 1% mais ricos, algo em torno de 2 milhões de pessoas, eles conseguem acumular a metade de toda a riqueza produzida, deixando que os 99% restantes da população se engalfinhem em uma disputa de vida e morte pela outra metade. Logo abaixo desse 1% estão situados os burocratas e os gestores, completando os 10% do topo da pirâmide. Também eles usam do seu poder para abocanhar o máximo possível, de tal modo que, ao final, sobram míseros 5% para serem disputados pela metade mais pobre da população, do que resulta uma multidão de 28 milhões de pessoas em condição de pobreza extrema somente no Brasil.2

No mundo inteiro esse quadro se repete, com pequenas variações para mais ou para menos em cada um desses grupos, sendo que em alguns poucos países privilegiados não há mais pobreza extrema, embora ainda persistam quadros de miséria.

Aqui cabe refletir sobre os limites da clássica resposta de O Livro dos Espíritos a respeito da escolha das provas. Embora o espírito afirme que “ele próprio (o espírito) escolhe o gênero de provas por que há de passar”, na prática, não se trata de uma “escolha” tão simples, uma vez que as vagas nos níveis superiores são extremamente limitadas. Mesmo as vagas nos países com menor desigualdade social são muito escassas, porque são países com população inexpressiva diante dos quase 8 bilhões de habitantes do planeta. O fato concreto é que a maioria das vagas disponíveis para a próxima reencarnação se concentra nos andares inferiores da pirâmide social.

As chances de um renascimento no topo da pirâmide, ocupando as posições dos magnatas, burocratas e gestores, são de apenas 10 para cada 100 espíritos reencarnantes, ou uma a cada 10 reencarnações. A nossa velha meritocracia não dá conta de alocar nos primeiros níveis todos os que nos sentimos merecedores dessa consideração social. Mesmo na chamada “classe média-baixa” não há vaga para tantos interessados; apenas 20% a 25% conseguiremos renascer em uma condição de pobreza digna, do ponto de vista das nossas necessidades materiais. Metade dos espíritos que reencarnaremos pelos próximos anos, caso persista o atual quadro social, seremos obrigados a aceitar o renascimento em condições extremamente desafiadoras, vivendo o drama do desemprego, da carência material, de ver nossos filhos sem escolas adequadas, sem proteção à saúde, e sendo marginalizados e até mesmo perseguidos ou mortos pelos aparatos de segurança criados para a proteção dos ricos. Na base dessa pirâmide, 8% de nós, algo em torno de 16 milhões de pessoas, estaremos condenados à situação de extrema miséria, talvez procurando alimento nos lixões das grandes cidades e sem a menor chance de ascensão social.

Ante esse raciocínio um amigo me justificou, certa vez, que não tem receio de reencarnar na pobreza, até porque nessa vida atual ele já teria vivido essa experiência e teria conseguido elevar-se ao nível dos 10% do topo da pirâmide social. Parabéns! Lindo, mas egoísta. Não há nenhum altruísmo em chegar ao topo deixando tanta gente trás. Além do mais, não há nada que nos garanta êxito todas as vezes que tivermos que entrar nessa competição por um lugar ao sol. E aí, pode prevalecer aquela lógica apresentada em O Livro dos Espíritos segundo a qual “os que açambarcam os bens da Terra para se proporcionarem o supérfluo, com prejuízo daqueles a quem falta o necessário (…) olvidam a lei de Deus e terão que responder pelas privações que houverem causado aos outros”, podendo inclusive renascer na próxima existência em uma condição na qual possam experimentar o reverso dessa medalha.3

Uma solução para esse problema foi apresentada por Allan Kardec sob a forma de uma profunda transformação social que ele chamou de “regeneração da humanidade”, muito bem descrita no capítulo final do seu livro A Gênese. Essa regeneração ele a considerou como a “missão dos espíritos encarnados”. Ela consiste em cooperar na obra da educação geral visando o progresso da humanidade, mas sobretudo, “em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais”, estabelecendo uma nova ordem social desprovida de toda forma de egoísmo, porque fundada nos princípios da solidariedade e do amor ao próximo, pilares do Evangelho de Jesus.4

Mas não será fácil o estabelecimento dessa nova ordem social.

Há, inevitavelmente, luta de ideias. Desse conflito forçosamente se originarão passageiras perturbações, até que o terreno se ache aplanado e restabelecido o equilíbrio. É, pois, da luta das ideias que surgirão os graves acontecimentos preditos e não de cataclismos ou catástrofes puramente materiais.6

Quando essa nova ordem social estiver estabelecida, as desigualdades sociais serão mínimas, decorrentes apenas das diferenças de gostos entre os indivíduos, uma vez que “eternas, somente o são as leis de Deus”.7 Mas para que isso aconteça, compete àqueles que Kardec chama de “homens progressistas” implementar um conjunto de “ideias humanitárias” que sejam compatíveis com o “grau de adiantamento” a que o planeta Terra há chegado. Essas “ideias humanitárias” são aquelas mesmas que caracterizam uma “civilização completa”, ou seja, uma sociedade desprovida de preconceitos de qualquer natureza onde todas as pessoas possam priorizar as conquistas do espírito, sem maiores demandas com as questões de ordem material, onde todos tenham a segurança de ver respeitadas suas crenças e a sua liberdade de pensar e de agir em sintonia com o bem-estar de todos; “enfim, onde todo homem de boa vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário.”8

Nestes dias tumultuados acontecem reflexões importantes, do interesse de toda a sociedade e que afetam diretamente as condições sociais do planeta para a nossa próxima encarnação. Convém ou não manter sistemas universais de saúde que atendam a todo e qualquer cidadão, independentemente de classe social? O Estado deve ou não investir para que todos tenham acesso a uma educação de qualidade de tal modo que nenhuma criança esteja privada do seu direito ao conhecimento e à formação intelectual e humanitária? Deve ou não ser a mesma a política de segurança pública que proteja o pobre e o rico? A que interesses atendem os atuais aparatos de violência baseados no preconceito, na discriminação e na segregação social? Convém ou não que o Estado garanta a cada ser humano o direito a uma moradia digna e a uma Renda Mínima Universal que lhe proporcione a certeza de que jamais lhe faltará o necessário?

Todas essas soluções estão sendo favorecidas ou dificultadas todos os dias mediante a nossa ação coletiva, numa simples troca de mensagens nas redes sociais ou em uma roda de bate-papo, mas também mediante o voto pelo qual escolhemos os políticos e dirigentes que estarão à frente dos governos no momento crucial em que essas questões estarão sendo decididas e implementadas.

De acordo com a metáfora do filme “o poço”, nenhum de nós tem como garantir em que andar dessa pirâmide social nós renasceremos na próxima vez, e não existirá "reino dos céus" ou "mundo de regeneração" sem que se efetivem na Terra as mudanças estruturais que impeçam a continuidade da pobreza e da miséria. Se nada fizermos, é grande a probabilidade de virmos a aprender pela experiência a importância de uma sociedade mais justa, que proporcione a todos aquele mínimo que nós não desejamos que nos falte.

Portanto, será muito interessante que, ao retornar a este mundo, possamos encontrar aqui uma Terra regenerada que teremos ajudado a construir com as nossas escolhas do presente. Paulo já nos advertia que a semeadura é livre, mas a colheita é sempre obrigatória, e cada um de nós encontrará ao retornar exatamente aquele mundo que tivermos ajudado a construir hoje.


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OBS: A análise feita por Thomas Piketty em 2015 foi atualizada com os dados de 2021.

1Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 806. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

2Piketty, Tomas. O Capital no século XXI. Ed. Intrínseca, Rio de Janeiro/RJ.

3Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 717 e 807. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

4Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 573. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

5Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 573. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

6Kardec, Allan. A Gênese, cap. XVIII item 7. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

7Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 806-a. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

8Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, comentários à questão 793. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.



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