FEEGO 70 ANOS… O QUE É MESMO UMA FEDERAÇÃO?


Elias Inácio de Moraes

Nestes dias em que comemoramos os 70 anos de fundação da Feego, convém refletir sobre sua história, seus objetivos, o quanto já foi feito e o que falta ainda fazer na direção idealizada nos idos anos de 1950. Mas isso passa por compreender, primeiro, a amplitude de significado da palavra “federação”. Será que está claro para todas as pessoas o que significa esse termo “federação”? Todos temos clareza de por que ela foi fundada e a que se propunha na sua origem?

Nesse sentido talvez seja interessante lembrar que no ano passado o Pacto Áureo também completou 70 anos. Não é curioso que a Feego tenha sido fundada exatamente um ano após o Pacto Áureo? A princípio com o nome de União Espírita Goiana, sua criação objetivava implementar no Estado de Goiás as decisões relativas a esse importante projeto de unificação.

Mas em que consiste o tão aclamado Pacto Áureo?

Aí é importante voltar no tempo e lembrar o espírito que animava os idos de 1949, quando o Brasil já havia se libertado da Ditadura de Getúlio Vargas e todos sonhavam com a democratização das instituições. A consolidação do país como uma república democrática era um sonho de todos, que já havia provocado até mesmo uma pequena guerra civil em São Paulo em 1932, que durou três meses e provocou algo em torno de 2.000 mortes. Também no meio espírita havia esse anseio por um movimento realmente participativo e democrático, livre do autoritarismo típico da monarquia, que havia sido superada a duras lutas durante o século XIX em vários países.

O Pacto Áureo, portanto, ao implementar um projeto federativo, firmava no horizonte um projeto de democratização do Espiritismo no Brasil nos moldes da filosofia federalista, dentro do espírito republicano que caracterizava o novo tempo do século XX. O texto, assinado pelas mais expressivas lideranças espíritas do Brasil, propunha que fossem estruturadas federações em cada estado, as quais se uniriam em torno de uma federação nacional, sediada na capital federal.

Mas em que consiste uma “federação” e qual é o seu papel?

Federações são entidades que unem em torno de si um determinado conjunto de instituições que possuem um objetivo comum, no nosso caso específico, a vivência do Espiritismo conforme idealizado pelo professor lionês seu fundador, Allan Kardec. Assim sendo, cada Estado deve ter uma instituição federativa que congregue as instituições da sua abrangência. Em nível nacional, teremos a federação nacional, ou uma confederação, que deve ser a união de todas as federações.

Uma federação, em tese, possui um papel totalmente diferente do de uma Casa Espírita. Se o objetivo de uma Casa Espírita é promover o Espiritismo mediante palestras, estudos, assistência social e espiritual, o de uma federação é inteiramente outro: promover a união das instituições espíritas do seu estado em torno de projetos que lhes sejam comuns e do interesse do Espiritismo. Em vez de oferecer, ela mesma, as ideias, serviços e atividades espíritas à sociedade, ela tem por objetivo promover a articulação das instituições espíritas que o fazem, potencializando a ação do conjunto. Usando a antiga metáfora das varas, em vez de cada Casa Espírita agir isoladamente no seu canto, através das federações as entidades espíritas se unem como um sólido feixe de varas em torno de projetos comuns. Apoiando-se mutuamente, todas serão mais fortes e, juntas, atingirão melhor o objetivo que é de todas, tanto em nível estadual quanto nacional.

Mas por que a maioria das federações continua sendo, ainda hoje, grandes casas espíritas? Por que a maioria delas ainda realiza palestras, tem a sua mocidade, sua evangelização infantil e seus grupos de mediunidade? É este, realmente, o papel de uma “federação”? Também aí é preciso voltar no tempo e recorrer à história.

Na sua fundação, a maioria das federações aproveitou a sede de uma instituição espírita já existente. No caso da Feego, a União Espírita Goiana – nome adotado na época – foi fundada em torno do Centro Espírita Estudantes do Evangelho, situado na rua 3, próximo do Córrego Botafogo.1 Assim, no mesmo espaço aconteciam tanto as atividades do centro espírita quanto as reuniões das instituições que passariam a compor a federação. O mesmo aconteceu na maioria dos estados, inclusive com a Federação Espírita Brasileira, que já havia sido fundada desde 1884, portanto 65 anos antes, e até então não havia conseguido consolidar-se como entidade que promovesse a união do Espiritismo no Brasil. Até o Pacto Áureo ela se parecia mais como um grande centro espírita que possuía uma editora, que dava suporte à publicação dos livros espíritas, e a revista Reformador.2

Em vários estados, dando corpo a esse sonho federativo, várias entidades estaduais já haviam sido constituídas desde a virada do século XIX. Espíritas do Paraná, Amazonas, Pará, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina já haviam fundado suas federações ou “uniões”, como eram então chamadas, e no Espírito Santo já havia sido criada em 1921 a Liga Espírita de Vitória com a finalidade de unir os diversos grupos capixabas.3

Naqueles idos de 1949 havia inclusive uma competição dentro do movimento, com várias instituições cariocas e paulistas almejando o papel de liderança nacional, e o Pacto Áureo foi um acordo de natureza política entre seus dirigentes no sentido de renunciarem aos seus propósitos particulares e se unirem todos em torno da Federação Espírita Brasileira, que desde a virada do século havia se estabelecido mediante o apoio do Grupo de Estudos Evangélicos do Anjo Ismael. É daí que vem, ainda hoje, um forte mito católico em torno da figura de um “anjo” chamado Ismael.4

Data dessa época a constituição de várias outras entidades federativas sob o embalo do histórico movimento denominado Caravana da Fraternidade, que teve à frente a figura de Leopoldo Machado, Lins de Vasconcelos, Francisco Spinelli, dentre outros, que visitaram 11 estados do norte e do nordeste visado obter a adesão das lideranças regionais às diretrizes propostas pelo Pacto Áureo. Foi nesse embalo que se estabeleceram entidades federativas nos estados onde esse movimento ainda não se havia estruturado, aí incluídos Goiás, em 1950 e o Mato Grosso em 1956.5

Desde então houve poucas movimentações mais concretas no sentido da implementação efetiva das diretrizes do Pacto Áureo, sobretudo no que se refere à democratização do movimento espírita. Talvez pela falta de uma cultura realmente republicana na sociedade brasileira, ainda muito propensa a surtos de autoritarismo, muitas instituições espíritas e até mesmo algumas federações estaduais ainda têm à sua frente uma liderança histórica que insiste em permanecer ocupando o cargo principal durante décadas, numa crença injustificável de que não existem substitutos à altura.

Ainda hoje a maioria das federações estaduais e a própria FEB continuam sendo grandes centros espíritas que acumulam o papel de entidades federativas, dificultando a consolidação de um trabalho focado na busca de unidade para o movimento. Na maioria das federações a maior parte do esforço cotidiano ainda é orientado para as atividades doutrinárias, para a divulgação do Espiritismo ou para suas atividades editoriais. Como regra, existe apenas um conselho orientado para a unificação, a saber, o Conselho Federativo Estadual nos estados e o Conselho Federativo Nacional na FEB. Ou seja, salvo algumas poucas exceções, não existe foco na unificação.

Neste sentido, uma das contribuições da atual pandemia foi forçar o movimento espírita a aderir à revolução digital. Se até então a distância era um dificultador da união, com a adoção das reuniões virtuais esse obstáculo foi efetivamente eliminado e neste ano as reuniões regionais estão sendo realizadas com pleno êxito através de ferramentas de comunicação a distância.

Atualmente a Feego já tem como ser administrada de qualquer ponto do Estado de Goiás, a não ser pela forte cultura de presença física e pelo fato de ainda desenvolver atividades típicas de casa espírita, o que já não deveria ocorrer há algum tempo. Não existe nenhum obstáculo para que o presidente da Feego seja uma liderança do sudoeste do estado, o vice seja do norte, um dos diretores seja do sul e os outros da capital. Aliás, a pandemia deixou claro que é muito mais fácil se reunir à distância do que presencialmente; é muito mais fácil combinar um horário e cada um se colocar à frente do seu celular ou do seu notebook do que deslocar-se de um bairro de Goiânia até a sede da Feego para uma reunião; quanto mais de uma cidade do interior para a capital.

Quando da época do Pacto Áureo também houve dificuldades, resistências à adesão, críticas à atuação da FEB, intenso debate sobre os destinos do movimento espírita sob a nova conformação que se propunha. O próprio Leopoldo Machado registrou que “acreditava no Pacto Áureo, sim! Mas no Pacto Áureo em si mesmo, que é menos obra dos homens do que dos Espíritos.”6

Neste momento, quando a Feego completa 70 anos, é importante refletir sobre o que já foi feito e o que ainda resta por fazer para que seja implementada a filosofia que norteou a sua fundação ainda em 1950. Não apenas na Feego, mas em inúmeras federativas Brasil afora e na própria FEB, há ainda muito por ser feito. Até hoje, na FEB, apenas o CFN é focado na união do movimento espírita; as federações estaduais sequer participam da eleição da diretoria da FEB, o que seria o mínimo para um movimento federativo de fato.

Falta ao movimento espírita uma mentalidade realmente democrática, o que é dificultado em partes pelo forte ranço de militarismo dentro do movimento, já que muitas das suas lideranças eram militares da reserva que, ainda jovens e aposentados, passavam a dedicar-se ao Espiritismo. Como as relações dentro dos quartéis são extremamente autoritárias, muito desse autoritarismo contaminou e continua contaminando a gestão das instituições espíritas.

Na Feego, falta apenas adequar a estrutura física ao papel federativo, proporcionando à sua diretoria atuar com foco na unidade do movimento. Para isso basta separar as atividades doutrinárias que não constituem o seu foco de atuação e estabelecer uma nova instituição com autonomia administrativa e personalidade jurídica própria, o que também livraria a Casa Feego das ingerências de cada novo presidente que se elege. Também a editora, embora subordinada à diretoria da federação, pode ser administrada de maneira autônoma, obedecendo a critérios técnicos e doutrinários para as suas publicações, não mais sujeitas ao capricho de um ou outro dirigente, o que já foi causa de diversos prejuízos econômicos no passado.

Em muitas situações Goiás atuou como protagonista no movimento espírita nacional. Com o novo estatuto aprovado em 2016 a Feego mais uma vez deu exemplo de modernização trazendo as Casas Espíritas para comporem o seu quadro associativo e atribuindo-lhes o poder de voto na eleição da sua Diretoria Executiva e do seu Conselho de Administração. Mas esse movimento ainda precisa ser consolidado, e para isso é preciso trabalhar para obter a adesão das Casas Espíritas ao quadro de Associados Federativos, o que não ocorrerá pela simples mudança no estatuto.

A pandemia do coronavírus trouxe consigo inúmeros desafios, forçando uma série de medidas que obrigam toda a sociedade a rever seus princípios e valores, seu funcionamento, e até mesmo o modo de organização das suas instituições. Talvez esta seja também uma oportunidade para a Feego assumir, mais uma vez, um protagonismo no movimento espírita nacional, adequando de vez a sua estrutura física ao seu papel de entidade federativa, proporcionando foco nas ações do movimento espírita em Goiás. Pode até ser que uma atitude nesse sentido seja motivadora para que os demais estados e a própria Federação Espírita Brasileira reflitam sobre o que já foi feito e o que resta ainda por fazer para a implementação definitiva do Pacto Áureo, esse modelo participativo e democrático que Leopoldo Machado considerava uma “obra dos Espíritos”.

Se reconhecemos no Espiritismo a sua força transformadora, “unamos os nossos esforços a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra.” Segundo a promessa do Espírito de Verdade, aqueles que cooperarem de fato para “a grande obra de regeneração pelo Espiritismo” terão os seus dias de trabalho pagos “pelo cêntuplo do que tiverem esperado.”7



1Informações disponíveis no site da Feego: https://www.feego.org.br/a-instituicao/missao-e-origens

2História da FEB, disponível no site: https://www.febnet.org.br/portal/2019/06/10/origens/

3Moraes, Elias I. Pacto Áureo: Realidade ou sonho ainda distante? Disponível em: http://espiritismo-fronteiras.blogspot.com/2019/10/pacto-aureo-realidade-ou-sonho-ainda.html

4Arribas, Célia da G. Afinal, Espiritismo é Religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira. USP, São Paulo/SP, 2008.

7Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XX item 5. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.


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