INDIVIDUALISMO X COLETIVISMO - O que a covid-19 pode nos ensinar?



Elias Inácio de Moraes

Neste momento em que o Brasil ultrapassa a marca de 101.000 pessoas mortas por covid-19 – enquanto em países como o Vietnã apenas duas pessoas morreram – vale a pena refletir a respeito de temas caros ao Espiritismo como as “expiações coletivas”, “flagelos destruidores” e “causas atuais das aflições”. Ao mesmo tempo em que diversos países ostentam o trágico número de mais de 500 pessoas mortas para cada milhão de habitantes, há alguns que até agora se mantém com menos de 5 mortes por milhão, ou até quase próximo de zero.

No topo da lista dos que melhor protegem as vidas dos seus cidadãos figura um país pobre, com quase metade da população do Brasil e que ocupa área territorial menor que a do Estado de Goiás, que é o Vietnã. Desprovido de maiores recursos financeiros, desde o início da pandemia o governo passou a controlar rigidamente as entradas de pessoas e a exigir que qualquer um que tivesse qualquer possibilidade de contágio entrasse em regime de quarentena, sob vigilância da população e do Estado. Voos internacionais foram suspensos, escolas fechadas, reuniões proibidas, máscaras foram fornecidas à população, que recebeu apoio e instruções para permanecer em casa. Bairros onde se identificava uma pessoa infectada eram inteiramente isolados mediante suporte oferecido pelo Estado a todos os cidadãos.1 Até ontem apenas 750 pessoas haviam sido contaminadas.

Quando escreveu O Livro dos Espíritos Allan Kardec interessou-se por analisar a questão do que ele chamou de “flagelos destruidores”. Nos seus diálogos com os espíritos um deles lhe respondeu, em uma linguagem um tanto católica, que Deus ofereceu aos seres humanos “os meios de progredir pelo conhecimento do bem e do mal. O homem, porém, não se aproveita desses meios”. É então que ele é “castigado no seu orgulho” de modo a vir a reconhecer a sua fraqueza.

740. Não serão os flagelos, igualmente, provas morais para o homem, por porem-no a braços com as mais aflitivas necessidades?

“Os flagelos são provas que dão ao homem ocasião de exercitar a sua inteligência, de demonstrar sua paciência e resignação ante a vontade de Deus e que lhe oferecem ensejo de manifestar seus sentimentos de abnegação, de desinteresse e de amor ao próximo, se o não domina o egoísmo.”

Muitos desses flagelos, alerta o espírito, “resultam da imprevidência do homem (...) que os agrava pela sua negligência”. À medida que adquire conhecimentos e experiência vai aprendendo a conjurá-los”, ou seja, a evitá-los.2 Assim, do mesmo modo como os indivíduos sofrem as consequências dos seus próprios atos, assim também as coletividades. Se a semeadura é livre – alertava o apóstolo Paulo – a colheita é sempre obrigatória.3

Em uma análise voltada para o indivíduo, Kardec pondera que “remontando-se à origem dos males terrestres, reconhecer-se-á que muitos são consequência natural do caráter e do proceder dos que os suportam.” Essa mesma análise ele faz também com relação às coletividades, quando analisa uma questão respondida pelo espírito que, em vida, foi uma senhora da alta sociedade parisiense, Clélie Duplantier, e que, depois de sua morte, parece ter se interessado pelo tema das “expiações coletivas”. Em mensagem psicografada na Sociedade Parisiense de Estudos Espírita por um médium chamado Desliens ela observa que

Podem aplicar-se, sem medo de errar, as leis que regem o indivíduo à família, à nação, às raças, ao conjunto dos habitantes dos mundos, os quais formam individualidades coletivas. Há as faltas do indivíduo, as da família, as da nação; e cada uma, qualquer que seja o seu caráter, se expia em virtude da mesma lei.4

Que relações podem ser estabelecidas entre essas ponderações dos espíritos e de Kardec e a realidade atualmente vivida mundialmente no enfrentamento da atual pandemia?

Enquanto países como Bélgica (857,48), Reino Unido (697,964) e Peru (632,13) figuram na lista com números bem maiores que 500 pessoas mortas para cada milhão de habitantes, outros países como a China (3,35), Nova Zelândia (4,49), Venezuela (5,33) e Cuba (7.7) parecem ter a situação sob absoluto controle. Neste exato momento o Brasil (482,75) ameaça ultrapassar os Estados Unidos (502,05), disputando a 7ª posição nesse ranking tenebroso, com praticamente uma pessoa morta a cada minuto por covid-19 e sem ministro da saúde, com as áreas estratégicas ocupadas por militares em vez de médicos e especialistas em saúde pública.5

Enquanto sociedade, o que nós precisamos aprender com isso?

Se tomarmos os países com menor número de pessoas mortas veremos que são países onde o sentimento de coletividade já se acha consolidado nas suas instituições sociais, onde os interesses coletivos têm prioridade sobre o interesse individual, ao contrário dos países onde as mortes se acumulam. Nestes, prevalecem hábitos e valores sociais mais individualistas. Interesses individuais, em especial os do mundo dos negócios, têm prioridade sobre o interesse coletivo; o “funcionamento da economia” recebe mais atenção que o cuidado com a vida das pessoas.

No continuum que vai dos países com forte senso de coletividade até os com forte senso de individualismo, quando mais à esquerda nessa régua imaginária, maior a facilidade com que têm enfrentado a pandemia.

Quando dialogava com os espíritos a respeito das causas das misérias humanas, os espíritos observaram que o egoísmo é o sentimento que pode ser encontrado na raiz de todos os males. Trata-se de um sentimento que é incompatível com a justiça, o amor e a caridade e que, para extirpá-lo, “é necessário que se reformem as instituições humanas que o entretêm e excitam”.

O filósofo Fénelon, em espírito, indagado a respeito dos meios de destruir-se o egoísmo, ponderou: “Sirva de base às instituições sociais, às relações legais de povo a povo e de homem a homem o princípio da caridade e da fraternidade e cada um pensará menos na sua pessoa, tão logo perceba que outros nela pensaram”.6

Do último capítulo de A Gênese houve quem deduzisse que haveria uma espécie de transformação automática da humanidade, quando a Terra deixaria de ser um “mundo de provas e expiações” para ser o que Kardec chamou de “mundo de regeneração”. Considerando os expressivos avanços tecnológicos do século XIX, que, por sinal, eram quase insignificantes diante dos atuais, Kardec observou que restava ainda “um imenso progresso a realizar: o de fazerem que entre si reinem a caridade, a fraternidade a solidariedade, que lhes assegurem o bem-estar moral.”

Mas ele mesmo reconhecia que os seres humanos

Não poderiam consegui-lo nem com as suas crenças, nem com as suas instituições antiquadas, restos de outra idade, boas para certa época, suficientes para um estado transitório, mas que, havendo dado tudo o que comportavam, seriam hoje um entrave. Já não é somente de desenvolver a inteligência o de que os homens necessitam, mas de elevar o sentimento e, para isso, faz-se preciso destruir tudo o que superexcite neles o egoísmo e o orgulho.

Ele mesmo entendia que não se trata de uma mudança que possa ser efetuada sem lutas, pois o egoísmo, “verme roedor, continua a ser a chaga social. É um mal real, que se alastra por todo o mundo e do qual cada homem é mais ou menos vítima”. Por isso que, se enquanto sociedade, nos propusermos a realizar as transformações que são necessárias para que se estabeleça na Terra o tão desejado mundo de regeneração será necessário procurar

em todas as partes do organismo social, da família aos povos, da choupana ao palácio, todas as causas, todas as influências que, ostensiva ou ocultamente, excitam, alimentam e desenvolvem o sentimento do egoísmo. Conhecidas as causas o remédio se apresentará por si mesmo.

Isso significa revirar do avesso as instituições sociais e econômicas, os governos, os partidos políticos, as escolas, as religiões e tudo aquilo que ainda funciona com base no individualismo, manifestação primeira do egoísmo humano, e estabelecer as bases para uma sociedade onde os interesses coletivos estejam colocados sempre à frente dos interesses individuais. Aliás, isso significa fazer prevalecer, de forma institucionalizada, o princípio da solidariedade entre os homens.

Desatentos à distinção entre o individual e o coletivo, há quem acredite ser necessário aguardar a transformação individual de todos os quase 8 bilhões de habitantes do planeta Terra antes que isso aconteça. Entretanto, Kardec mesmo pondera que, a aguardar essa mudança de cada um e a transformação coletiva jamais seria alcançada. Por isso que ele mesmo previu que, quando houver uma maioria realmente comprometida com o coletivo, estes tomarão a dianteira e arrastarão os demais na direção dessas transformações sociais.7

Era isso o que Jesus também propunha quando conclamava as pessoas do seu tempo a participarem com ele da construção do Reino dos Céus. Hoje os espíritos conclamam os homens a se unirem nesse esforço de transformar o planeta Terra em um lugar melhor para todos. Na linguagem de Kardec, sair da condição de mundo de provas e expiações para a de mundo de regeneração. O convite está feito há dois mil anos: “ouçam aqueles que têm ouvidos de ouvir”.


1https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/21/sem-nenhuma-morte-pelo-coronavirus-estrategia-de-baixo-custo-do-vietna-e-exemplo-de-combate-a-epidemia.ghtml

2Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 737 a 741. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

3Bíblia Sagrada, Carta aos Gálatas, cap. 6 v.7-10.

4Kardec, Allan. Obras Póstumas, Expiações Coletivas, por Clélie Duplantier. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

5https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200807-covid-19-sitrep-200.pdf?sfvrsn=2799bc0f_2&ua=1

6Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 913 a 917. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

7Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 789. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.


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