O "x" da questão nº 1

 



Elias Inácio de Moraes

Para quem tem acompanhado os estudos que visam contextualizar a obra kardequiana, já não é mais novidade que a resposta à questão número 1 de O Livro dos Espíritos traduz as conclusões a que chegaram os principais filósofos europeus que determinavam o modo de pensar do século XIX, em especial Tomás de Aquino e René Descartes. Mas até então acreditava-se que aquela síntese extraordinária teria sido formulada por um espírito sábio que, indagado sobre “que é Deus”, reunira em apenas uma linha toda uma tradição filosófica a respeito da Divindade. 

Ocorre que o exame atento dos originais franceses levanta a dúvida se a autoria daquela resposta não seria do próprio Allan Kardec, ao contrário do que se pensava até então. Formulada de outro modo, a questão que se coloca é se o espírito sábio que formulou aquela pergunta e aquela resposta não seria o próprio professor Hippolyte. 

Se confirmada essa hipótese, ela muda inteiramente o nosso olhar tanto para a obra quanto para o autor, que até então tem sido considerado apenas como um organizador das ideias dos espíritos, uma espécie de “codificador”, como que negando-lhe a genialidade e o forte componente autoral presente em toda a sua obra.

Vamos então à questão.

Ao examinar a primeira edição de O Livro dos Espíritos, publicada em 1857, constatamos que Kardec apresentou o texto em duas colunas. Conforme ele mesmo explica, na coluna da esquerda estão as perguntas que foram formuladas aos espíritos e as respostas por eles apresentadas, que foram colocadas entre aspas. Na coluna à direita ele apresenta comentários que esclarecem “o enunciado da doutrina sob forma fluente”. Esses comentários, informa Kardec, ele mesmo os redigiu visando traduzir melhor a “expressão do pensamento deles”, ou seja, dos espíritos. Essa explicação está detalhada em uma nota inserida no final dos prolegômenos.(1)

No original francês a questão número 1 está situada na coluna à esquerda, mas sem a resposta. No lugar onde estaria a resposta consta apenas uma nota entre parênteses onde se lê: “(Definição aqui ao lado)”. Na coluna à direita, ou seja, “ao lado”, consta, o comentário de Kardec: “Deus é a inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas”, sem as aspas, que são nossas. Ou seja, da forma como o texto está apresentado na primeira edição fica claro que não se trata de resposta textual dos espíritos, mas de um comentário de sua autoria que, segundo ele mesmo explica, representa a “expressão do pensamento deles”. A figura 1 traz destacados a pergunta, sem a resposta, seguida da nota, e o comentário na coluna à direita.(2)

Figura 1 - Fac símile da questão número 1 na primeira edição de O Livro dos Espíritos.

Conhecedor da filosofia do seu tempo, Kardec sintetiza ali as conclusões a que chegou Tomás de Aquino que, na sua Summa Teologiae, considera Deus como a “inteligência primeira” e a “causa primeira das coisas”, ou “a causa primeira de todos os seres”.(3) Ele agrega também a filosofia de René Descartes que, na terceira das suas Meditações Metafísicas, remonta à causa das causas até que gradativamente se chegue a uma última causa que se verificará ser Deus.(4) Ao explicar a “ideia de Deus” Descartes resgata os atributos da Divindade de Tomás de Aquino e explica que, por este nome, ele entende um Deus “soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as coisas que estão fora dele”, o que é exatamente a linha de raciocínio adotada por Kardec em seguida.(5)

Ao examinar a segunda edição publicada em 1860 constatamos que ele modificou todo o formato do livro, agora muito mais extenso, eliminando aquela divisão em duas colunas. Talvez para não perder alguns conteúdos relevantes, constatamos também que ele transferiu para o corpo das respostas diversos trechos que antes estavam situados na coluna da direita, ou seja, como comentários de sua autoria.(6) No caso específico da questão número 1, observamos que a sua síntese foi transportada para a coluna da esquerda, como se fosse uma resposta obtida dos espíritos, uma vez que ele a apresenta agora entre aspas, como se pode ver na figura 2.

Figura 2 - Fac símile da questão nº 1 na segunda edição de O Livro dos Espíritos.

O motivo para isso também é claro: o que ele valoriza é o pensamento, a ideia, sem muita preocupação formal com a autoria do texto, critério que estará presente em toda a sua obra. Como já foi objeto de estudo, ele lida com os textos dos espíritos com muita liberdade, corrigindo, recortando, alterando, misturando textos diferentes e construindo um novo texto. Mais tarde, em O Livro dos Médiuns, ele explicará que, a menos que a forma do texto seja importante para caracterizar os espíritos que se comunicam, “lícito é corrigi-las sem o mínimo escrúpulo.”(7)

Essa constatação é interessante no sentido de esclarecer melhor a questão da autoria dos livros, muitas vezes atribuídas inteiramente aos espíritos, como se o papel de Kardec tivesse sido o de um simples organizador, ou um “codificador”, termo que foi criado posteriormente. Aliás, sob certos aspectos, cabe refletir se o uso da palavra “codificador” não poderia ser entendida como uma maneira de negar o seu papel de autor material, atribuindo ao texto um sentido sagrado que não consta nem nas suas intenções e nem na dos espíritos que com ele dialogaram. Embora ele próprio afirme que se trata de uma obra escrita “segundo os ensinamentos fornecidos pelos espíritos superiores”, e que esses ensinamentos foram “coletados e ordenados” por ele, a análise do texto não mostra qualquer intenção da sua parte de apresentar o conteúdo do livro como algo transcendental, como às vezes se imagina.(8) 

Portanto, ao ler a resposta à questão número 1 de O Livro dos Espíritos é mais provável que estejamos diante do gênio e da extraordinária capacidade de síntese do próprio professor Hippolyte Léon, da sua preocupação didática, do seu interesse em traduzir da maneira mais clara possível toda uma tradição filosófica a respeito da Divindade, de modo a colocá-la ao alcance de todos. Mais que uma preocupação com a autoria dos textos, o que Kardec pretende com aqueles diálogos é descortinar para a humanidade uma nova forma de espiritualidade em que a filosofia e a ciência sejam a base sobre a qual se assentará o edifício das religiões do futuro.


Referências Bibliográficas:

1 - Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, trad. Canuto de Abreu. Vide Nota Explicativa do próprio Allan Kardec ao final dos prolegômenos.

2 - Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão nº 1, trad. Canuto de Abreu.

3 - São Tomás de Aquino. Suma Teológica , questões 12 art. 1º e 2º e questão 44 da Primeira Parte. Coleção completa em 5 volumes. Ed. Ecclesiae, São Paulo/SP, 2009.

4 - Descartes, René. Meditações Metafísicas , meditação terceira itens 35 e 15. Coleção Os Pensadores, Ed. Abril, São Paulo/SP, 1979.

5 - Na questão 10 da primeira edição e nas questões 12 e 13 da segunda, Kardec prossegue na análise dos atributos da Divindade a partir dessa abordagem de Tomás de Aquino e René Descartes.

6 - Moraes, Elias I. Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI, cap. 9. Aephus, Goiânia/GO, 2020.

7 – Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. XIX item 224. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 2005.

8 - Informação constante na capa de O Livro dos Espíritos no original francês.


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