RESENHA: Ideias para adiar o Fim do Mundo, de Ailton Krenak


Elias Inácio de Moraes

Título: IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO

Autor: Ailton Krenak

Editora: Cia das Letras

Data: 01/01/2021


Entre os presentes deste final de ano eu ganhei o pequeno livro do ambientalista indígena Ailton Krenak intitulado Ideias para adiar o fim do mundo.1 O livro é tão pequenino que pode ser lido de uma sentada. São duas curtas palestras e uma entrevista reunidas, e que nos possibilitam criar pontes entre o Espiritismo e as questões ambientais.

Na época de Kardec não existia ainda o atual conceito de meio ambiente; os chamados “recursos da terra” eram considerados inexauríveis e uma das faces do “progresso” consistia em “promover a melhoria material do planeta”, entendido como uma imensa extensão selvagem que deveria ser “desobstruída” e “saneada”.2 O termo “ecologia” foi cunhado por Ernest Haeckel em 1866 para designar uma das áreas de estudo da Biologia, mas só adquiriu relevância na segunda metade do século XX com o agravamento da poluição e, sobretudo, com a constatação em 1983 de que a camada de ozônio estava sendo destruída e que isso colocava em risco a sobrevivência humana.

Como um bom começo, o livro de Ailton Krenak nos oferece uma perspectiva diferente da história, agora contada por um representante dos indígenas brasileiros. Se na escola nós ouvimos contar da “descoberta do Brasil” pelos portugueses, do ponto de vista indígena houve uma invasão desse imenso continente, que já era habitado por milhões de pessoas de outra cultura. Os invasores não eram heróis, como a história nos conta; eles vinham saquear as riquezas que aqui existiam, ainda que para isso tivessem que assassinar os ocupantes da terra, como o fizeram ao longo dos últimos 500 anos.

Embora sem ter disso consciência, "um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rasto de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI."

De mais ou menos 6 milhões de pessoas sobrevivem hoje menos de um milhão entre as cerca de 250 etnias que falam em torno de 150 dialetos diferentes, espalhadas pelo território brasileiro quase inteiramente dominado pelos invasores, que insistem em invadir o pouco que ainda resta do espaço até então ocupado por eles. Desse ponto de vista a demarcação das terras indígenas não é um favor do branco para com o indígena, é apenas o reconhecimento mínimo do seu direito sobre o ambiente que lhe foi roubado.

Segundo Krenak, os últimos cinco séculos foram tempos de resistência por parte desses povos. Resistência à invasão das suas terras, que antes se estendiam por todo o continente; resistência à destruição do seu habitat, das suas comunidades, da sua cultura, da sua visão de mundo; resistência ao açambarcamento dos seus "recursos naturais", à destruição dos rios que possibilitavam a sobrevivência das suas aldeias.

Sob essa perspectiva, a invasão europeia pode ser entendida como uma guerra entre dois mundos diferentes, entre uma determinada visão de "humanidade", eurocêntrica, e a humanidade real, denegada, que se constitui de uma enorme diversidade cultural e étnica, e que se pretendeu destruir a pretexto de catequizar e de "estender" a ela (ou de lhe impor) os "benefícios da civilização e do progresso".

Sim, porque a visão europeia de "humanidade" era muito específica e excludente. Ainda hoje ela considera a existência de seres "humanos muito-humanos", talvez "demasiado humanos", para parafrasear Nietzsche, condicionados a um modo de vida inteiramente descolado da natureza e do espiritual. Para essa "humanidade" os diferentes são apenas "quase-humanos", representados por "milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida." (70)

Essa “humanidade”, hoje baseada no consumo e dirigida por um restrito grupo de pessoas que ambicionam o lucro e a acumulação desmedida de bens materiais, não reconhece outros valores e existências que não os seus. Nessa forma de humanidade tudo é transformado em mercadoria; até a própria terra é mercantilizada e a natureza deixa de ser vista como "Natureza" para ser apropriada como "recurso" para a produção de mais mercadorias. Ideias, pensamentos, emoções, tudo é transformado em mercadoria, dentro de uma filosofia consumista e artificial estilo "os Jetsons".

Com isso o homem se desconecta da sua condição de parte da natureza e passa a se ver como uma realidade apartada do mundo que lhe deu origem, como se a natureza existisse para ser dominada, apropriada, transformada, modelada, destruída. Tão grande é a marca da presença dessa "humanidade" específica no planeta que a arqueologia achou por bem criar um neologismo que caracteriza o período da sua presença na Terra, o Antropoceno.

O espiritual, para essa “humanidade”, é algo a ser vivido nos finais de semana, em locais específicos que são os templos, muito diferente do que se vê entre os povos originários para quem o espiritual se vive na relação com a natureza e com o outro. "Todas as histórias antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. (...) Não tem nada a ver com a imagem do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar." (61)

Ailton Krenak utiliza a metáfora do bebê mamando na sua mãe para simbolizar a relação do ser humano com a Terra, com a Natureza, e que deveria ser uma relação de prazer, de gozo. Para viver em harmonia com a Natureza o ser humano precisa aprender a "gozar sem nenhum objetivo. Mamar sem medo, sem culpa (...) Nós vivemos num mundo em que você tem de explicar por que é que está mamando. Ele se transformou numa fábrica de consumir inocência e deve ser potencializado cada vez mais para não deixar nenhum lugar habitado por ela", a inocência. (65)

Se o Espiritismo nos tranquiliza ao descortinar a vida espiritual como sendo a principal, “que preexiste e sobrevive a tudo”, também nos apresenta o mundo material como o campo de experiências onde se processa o aprendizado do espírito. A Natureza, divinizada pelas diversas tradições espirituais, é o ambiente onde os espíritos “ensaiam para a vida (…) desde o átomo primitivo até o arcanjo, que também começou por ser átomo”, o que nos chama à responsabilidade para com todos os seres da criação e para com todos os seres humanos, nossos “irmãos” em relação à paternidade de Deus.3

Nessa mesma direção cabe relacionar aqui as ponderações do espírito Veneranda, no também pequenino livro Os Filhos do Grande Rei quando, pelas mãos de Chico Xavier, ela nos apresenta a Terra como a “bendita escola” construída para o nosso aprendizado. Em sintonia com Ailton Krenak o espírito Veneranda alerta que os seres humanos criaram “monstros” que os iludiram “dizendo-lhes que a escola era absoluta propriedade deles, que deveriam dominar em torno de suas residências como verdadeiros e únicos senhores.” (…) “Esquecendo os deveres que lhes cabiam desempenhar, começaram a humilhar, derrubar e perseguir (…) deixando misérias e ruínas atrás de seus passos.”4

Krenak entende que não é o caso de censurar ou lamentar o passado. Somos uma espécie, a humana, caindo no abismo da sua autodestruição, e nessa queda não adianta trocar acusações; é preciso construir paraquedas, mas paraquedas coloridos, que resgatem a alegria de viver, que resgatem a nossa conexão com a natureza e com a nossa dimensão espiritual, enquanto buscamos meios de reverter a autodestruição que parece inevitável.

Ao que parece, o que Krenak quer nos dizer está em plena sintonia com a ponderação de Veneranda no final do seu também pequeno livro. Se para Krenak trata-se de restabelecermos nossa conexão com a Natureza e com a vida da Terra, na expressão de Veneranda, trata-se de reaprendermos a viver como “verdadeiros filhos de Deus”.

1Krenak, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Cia das Letras, São Paulo/SP, 2019.

2Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI item 7. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

3Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 85 e 540. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

4Xavier, Chico. Os Filhos do Grande Rei, pelo espírito Veneranda, cap. 12. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

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