Inter-religiosidade em um mundo plural

 


Elias Inácio de Moraes

Uma questão delicada vem à tona quando refletimos sobre as implicações do momento inter-religioso conduzido com maestria pelo Haroldo no 37º Congresso Espírita de Goiás em fev/2021. Ele promoveu esse momento com a participação de dois velhos amigos, a Irmã Aíla e o Pastor Enéas, e a questão que emerge desse encontro é como conciliar esse tipo de iniciativa com a perspectiva de ser o Espiritismo a Terceira Revelação” de Deus para a humanidade?

Como bem lembrou Haroldo, não faz sentido um diálogo inter-religioso artificial, uma encenação ou, nas palavras do Pastor Enéas, como uma experiência performática. Então, como sermos autênticos no nosso relacionamento com católicos, protestantes, judeus, budistas, candomblecistas? Como não transformar um possível movimento inter-religioso em apenas um “faz-de-conta” em que os católicos continuem se sentindo os “representantes de Deus na Terra”, os protestantes se sentindo os “escolhidos”, os judeus o “povo eleito” e nós a “Terceira Revelação” de Deus para a humanidade?

Em outras palavras: Não haveria uma incompatibilidade entre esse movimento e a certeza que alimentamos de ser o Espiritismo essa Terceira Revelação? Seria possível participar desse movimento com essa autenticidade proposta, essa abertura de mente, sem repensarmos a nossa perspectiva de Terceira Revelação?

Ao mesmo tempo em que reconhecemos a importância do movimento inter-religioso, não como negar a existência entre nós de uma crença em uma certa “superioridade” do ensinamento espírita em relação aos demais movimentos religiosos do mundo. Aliás, não é exatamente isso o que consta nos livros fundantes do Espiritismo? Não é isso que nos têm sido ensinado nas palestras, estudos e cursos doutrinários? Afinal de contas, o Espiritismo é ou não é a Terceira Revelação de Deus para a humanidade? Ou estaríamos equivocados quanto à compreensão da real intenção de Kardec e dos espíritos ao fazerem essa afirmação?

Uma evidência desse sentimento de supremacismo religioso espírita foi apresentado pelo próprio Haroldo, que contou o caso de uma pessoa que, até de maneira inocente, comentou com a Irmã Aíla: “Nossa, você é tão inteligente que parece ser espírita!” Como se o Espiritismo estivesse acima do Catolicismo e de outras formas de religiosidade. A expressão da Irmã Aíla e a própria narrativa do Haroldo deixam claro que ela se sentiu humilhada com a pergunta, o que é perfeitamente compreensível.

Mas aí nós podemos tomar a defesa da pessoa que fez essa pergunta e indagar: se o Espiritismo é realmente a Terceira Revelação, por que razões não poderia isso ser claramente alardeado diante de toda a sociedade?

Uma análise mais cuidadosa dessa questão passa, talvez, pela compreensão de um conceito moderno que tem sido utilizado pela Antropologia para explicar as relações entre diferentes culturas, que é o de “supremacismo”. Há o supremacismo branco, que é a crença que as pessoas brancas alimentam de serem superiores às pessoas que apresentam outra cor de pele. Há o supremacismo cultural que leva as pessoas de uma determinada cultura a se sentirem superiores às de outras culturas, como se verifica no ocidente, que se julga superior aos povos tradicionais indígenas e aos orientais. Assim também ocorre em relação à religião: há um supremacismo religioso, que leva algumas religiões a se sentirem superiores às demais, facilmente observável entre evangélicos e muçulmanos, mas, à maneira da parábola do cisco e da trave no olho, despercebido entre nós espíritas.

E aí cabe a questão: não seria essa perspectiva de Terceira Revelação, da forma como a entendemos hoje, uma forma velada de manifestação de uma espécie de supremacismo religioso espírita? Não há entre nós a crença em que o Espiritismo seria uma forma de religião superior ao catolicismo, ao protestantismo, ao budismo, à umbanda e ao candomblé? Como sustentar, diante de nós mesmos, que não se trata de supremacismo religioso? O relato do Haroldo em relação à Irmã Aíla não é uma clara comprovação da existência desse “supremacismo religioso espírita”? Mas também não estaríamos sendo hipócritas em omitindo essa condição? Não estaríamos colocando a luz sob a candeia ao negar apresentar ao mundo o Espiritismo como a Terceira Revelação de Deus para a humanidade?

Há inúmeras religiões que não se pretendem superiores às outras; se veem apenas como mais uma religião em um universo de diversidade religiosa. É o caso de tradições como o Candomblé, o Hinduísmo, o Taoísmo, o Xintoísmo, dentre outras. A pretensão de superioridade tem mais a ver com a tradição judaico-cristã, talvez pela necessidade histórica dos judeus de se estabelecerem na “Terra Prometida”, para a qual teriam sido “eleitos” pelo próprio Deus. Dessa tradição é que derivam catolicismo, protestantismo e também o Espiritismo.

Promover uma reflexão nesse sentido não é uma tarefa fácil, porque pressupõe abrir mão de crenças e valores que nos são caros, até porque eles são fundantes da nossa fé. Aí surge a questão: disporíamos de confiança suficiente para abrir mão de algumas das nossas certezas ancorados na “fé raciocinada” proposta por Kardec como sendo aquela “capaz de encarar a razão face a face em qualquer época da humanidade”? Estamos preparados para submeter as nossas certezas ao desafio da dúvida, do questionamento, da análise racional?

Nesse sentido é muito interessante a metáfora utilizada pela Irmã Aíla a respeito da travessia para o outro lado do Mar da Galileia e da tempestade que acometeu os viajantes. Do outro lado fica a Decápolis, um conjunto de dez cidades entre as quais Damasco e Gadara. Essas cidades formavam uma comunidade política que os judeus evitavam visitar por ser uma comunidade de gentios, ou seja, de pessoas “de outra religião”, que não faziam parte do “povo escolhido”.

Decápolis pode ser a representação dessa diversidade religiosa e o mar da Galileia pode ser a distância que nos separa desse outro mundo que nos é desconhecido. Para encarar essa travessia na direção do diferente é preciso realizar um exercício de “abertura de mentes”, e também um exercício de humildade. Sob essa perspectiva, a tempestade também pode ser entendida como o conflito inevitável que se verifica ao fazermos esse movimento na direção de outras visões de mundo e de religiosidade, indo ao encontro de uma “realidade nova” dentro da qual somos iguais a todos os outros, sem nenhuma pretensão de superioridade.

Nesse mesmo sentido o Pastor Enéas tomou como referência o encontro de Jesus com a mulher samaritana. Justo com a mulher samaritana, de Samaria, outra cidade odiada pelos judeus, que faziam questão de contornar aquela região, quando em viagem, para não pisar o solo daquele povo sem Deus. Para o Pastor Enéas, compreender Jesus dialogando com aquela mulher pode ser um convite a uma compreensão do “Jesus real”, do Jesus representado pelos seus ensinamentos, como bem pontua Kardec, pela sua proposta ético-moral, para além dos diversos Jesus mitológicos que nossas religiões construíram, como ele deixa claro logo no início da introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo.

Segundo o Pastor Enéas, é muito comum aqui no ocidente as pessoas depreciarem outras culturas, confundirem o discurso cristão com etnocentrismo”. Ele alerta que nós corremos um grande risco de permitir que a religião nos desumanize”. O diálogo inter-religioso nos possibilita dar um passo além na direção do “aprender com o outro”. Aí nós descobrimos que a experiência religiosa do outro “pode trazer iluminação sobre a nossa vivência”. Até porque uma única experiência (religiosa) não é capaz de esgotar todas as riquezas nesse mundo de Deus”. Nenhuma religião é capaz de apreender o todo da Divindade, porque “Deus não cabe em gaiolas”.

Mas como abrir mão da nossa certeza de que o Espiritismo é a Terceira Revelação de Deus para a humanidade? Como considerá-lo apenas como mais uma expressão religiosa em meio a tantas outras? Deveremos esquecer agora a sublime exortação contida no “ide e pregai”?Ante a tempestade interior os discípulos imploram pelo socorro do Mestre que, acalmada a tormenta, lhes indaga: “Por que estavam com tanto medo? Ainda não tendes fé?”

Como bem lembou a Irmã Aíla, “nem todo mundo dá conta” dessa experiência de inter-religiosidade e que é preciso aguardar o tempo de cada um, ainda que esse tempo seja daqui a “dois mil anos”. Ou, nas palavras do Haroldo: diálogo inter-religioso é para pessoas maduras, é para pessoas que já saíram da infância (espiritual), é para pessoas que já aprenderam que o mundo não é uma extensão delas, que o mundo é o espaço da diversidade Divina”. Até porque, “a criação de Deus tem uma marca, que é a diversidade”.

No que pode ser um alerta para a nossa atuação junto à infância e à juventude espírita a Irmã Aíla comentou a necessidade de uma educação das novas gerações para essa abertura ao outro”, capaz de ensinar as crianças a deixarem o outro “ser quem ele é”, porque não sou eu quem vou definir o que o outro vai ser ou “em que o outro vai acreditar”. Dentro dessa diversidade que o mundo nos descortina não há espaço para qualquer sentimento de supremacismo, seja étnico, cultural ou religioso, seja sob a forma da crença inocente em ser o povo “eleito” de Deus, ou de serem os “escolhidos”, os “representantes de Deus na Terra” ou a Terceira Revelação de Deus para a humanidade.

O encontro inter-religioso é uma nova perspectiva que nos é descortinada por esses tempos novos de integração humana em nível planetário, fundamentado em uma cultura de paz. Mas, para que essa experiência possa ser vivida em plenitude, ela requer despirmo-nos de todas essas visões particulares a respeito da nossa própria religiosidade para nos colocarmos em um espaço comum, fundamentado na igualdade e no respeito mútuo, no “aprender com o outro”, onde cada um busca no outro o que complementa e enriquece a sua própria visão.


Comentários

  1. Se é a terceira, então já passou a hora da quarta.

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  2. A revelação deve ser entendida como Kardec explicou, portanto não cabe falar de primeira segunda e terceira,. assim como não cabe falar da revelação de Galileu, de Newton , de Einstein.

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  3. Boa tarde prezado Elias, muito importante essa reflexão. Sou de famílias espíritas a mais de duas gerações, atuantes em minha cidade e região do Triângulo Mineiro. Cresci com formação espírita e até hoje me considero espírita.
    Durante a juventude, no seio familiar e no âmbito institucional esse ideário supremacista do espiritismo era muito forte e por anos incutido em mim. Os membros do centro que frequentava e meus familiares sempre se referiam como elite do esclarecimento e racionalidade.
    Outras religiões eram vistas como atrasadas ou mesmo até como amaldiçoadas, como as de raízes africanas (forte reflexo de nosso racismo estrutural), era sempre comum ver parentes falar que são espíritas kardecistas, não macumbeiros. Confesso que por anos sempre tive esse sentimento.
    Porém os acontecimentos políticos que jogaram o Brasil em uma polarização política terrível jogou todo esse sentimento elitista que eu tinha no chão (talvez uma lição dura, mas necessária). Observar parentes e frequentadores do centro que frequentava, ou mesmo famoso, renomado e midiático médium serem partidários de um defensor de tortura, da ditadura militar, da intolerância religiosa, étnica e de gênero, me fez compreender que professar uma determinada religião não demonstra necessariamente evolução ou superioridade racional, mas sim suas respectivas ações.
    Depois disso, passei a fazer uma análise mais crítica sobre esse supremacismo e vejo que muitos de nós espíritas podemos nos tornamos fanáticos, mistificadores, dogmáticos, ritualísticos, idólatras como acusamos fiéis de outras religiões.
    Dessa forma, confesso ainda bastante decepcionado, até dolorido com o que aconteceu, vejo que precisamos sim ser críticos com esse viés elitista e supremacista que temos nos centros espíritas.
    Forte abraço e obrigado por manter um espaço de pluralidade racionalidade.

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    1. Vamos juntos, meu amigo. Somos muitos os que estão buscando essa perspectiva mais humana, mais integradora. Obrigado por comentar.

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  4. Esse espaço de discussões que o senhor mantém, me traz muita esperanças! Forte abraço!

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