SUICÍDIO: uma questão social

 


Elias Inácio de Moraes

São sempre louváveis os esforços que pessoas e organizações desenvolvem, todos os anos, aconselhando, ouvindo, dialogando, de modo a evitarem que alguém cometa suicídio. Mas será isto suficiente? Quais são as reais causas do suicídio? Será possível reverter a crescente onda de suicídios apenas mediante palestras e aconselhamento, mediante apoio às pessoas que estão apresentando ideação suicida, sem atuar sobre as suas reais causas? Apesar de todas as campanhas que se renovam ano a ano, a ocorrência de suicídios aumentou 28%, de 9,7 mil para 12,4 mil no Brasil entre os anos 2014 e 2019, na contramão do que tem acontecido no mundo. Entre jovens de 11 a 20 anos esse aumento foi de 49,6%.1 O que tem acontecido de diferente que tem feito aumentar o número de suicídios? E quando, em paralelo às ações preventivas, as causas de ordem social, em vez de serem combatidas, continuam sendo alimentadas?

Em 1897 o sociólogo Émile Durkheim publicou um livro onde apresentava os resultados de uma pesquisa realizada a partir dos registros oficiais de suicídios ocorridos ao longo das últimas décadas em mais de uma dezena de países europeus, inclusive alguns estados norte-americanos, além de 26.000 dossiês de suicídios cometidos na França. Ele utilizou também um estudo desenvolvido por Brière de Boismont, um contemporâneo de Kardec, que analisou os escritos deixados por 1.507 pessoas que suicidaram, publicando-o em 1856 sob o título Do Suicídio e da Loucura Suicida. Kardec se refere a essa publicação na Revista Espírita de julho de 1859.

Em vez de os analisar sob o enfoque psicológico, mais comum, onde se buscam compreender as motivações dos indivíduos, Durkheim procurou compreender o contexto social no qual esses indivíduos cometeram suicídio. Foi assim que ele descobriu, por exemplo, que algumas sociedades apresentavam taxas de suicídio quase dez vezes maiores que outras, e que essas taxas variavam dentro de cada sociedade de acordo com situações externas aos indivíduos, tais como crises econômicas, políticas, ou mesmo momentos de prosperidade. Na medida em que se modificam as circunstâncias sociais a taxa de suicídios diminui ou aumenta, em todas as sociedades analisadas.

Os dados analisados mostram que a taxa de suicídios em cada sociedade é mais ou menos constante e só varia muito lentamente ao longo do tempo. Mudam-se as pessoas, na mudança das gerações, mas a taxa permanece mais ou menos inalterada. Para que essa taxa sofra alguma variação para mais ou para menos é necessário que haja alguma mudança no ambiente social, o que significa que não se trata de uma questão “moral” ou de conteúdo simplesmente “psicológico” por parte dos indivíduos, como é comum ouvir no meio espírita. Há fatores sociais, externos aos indivíduos, que são determinantes para as ocorrências de suicídio e são esses fatores que determinam se a quantidade de suicídios que ocorre a cada período temporal será maior ou menor. Isso fica ainda mais claro quando se observa que, nas sociedades onde as taxas de suicídio são elevadas, as pessoas que emigram deixam de ser propensas ao suicídio; ou seja, elas não levam consigo o desejo de desistirem da vida, como se verificou no grande êxodo para as Américas. Muitas pessoas  que estavam desistindo de viver na Europa em crise recobraram o ânimo naquele novo ambiente, muito mais promissor.

Analisando as relações entre o suicídio e a religião Durkheim observou também que as taxas de suicídio eram maiores nas províncias protestantes que nas ligadas ao catolicismo ou ao judaísmo. Ao analisar esses grupos ele percebeu que a questão principal, por trás dessas ocorrências, estava relacionada ao maior ou menor individualismo que caracterizava as relações interpessoais dentro desses grupos religiosos, à maior ou menor coesão social que eles ofereciam. Os protestantes europeus eram mais individualistas, enquanto os católicos e os judeus, mais solidários. Isso explicava inclusive porque na Inglaterra, protestante anglicana, as taxas de suicídio eram menores que nos demais países protestantes; os protestantes anglicanos também formam grupos mais coesos e menos individualistas. Disso ele conclui que não é a crença religiosa que minimiza os riscos do suicídio, tanto que a taxa de suicídio entre espíritas não difere significativamente das dos demais grupos, mas o nível de comprometimento das pessoas umas com as outras dentro da sua comunidade de fé.

Quanto à relação entre o suicídio e a estrutura familiar Durkheim constatou que nas famílias mais integradas, mais coesas, ele é mais raro, e mais frequente nas famílias onde a coesão social interna é menor, onde cada um vive mais para si. Entre pessoas solteiras que vivem sozinhas ele é mais frequente do que entre as pessoas casadas, e entre as casadas, a presença de filhos também comparece como fator que reduz a taxa de suicídio. Em uma constatação que é ratificada pelas modernas pesquisas, pessoas idosas apresentavam maior propensão para se matar do que as pessoas mais jovens; e desde aquela época os homens também se matam mais do que as mulheres. 

Durkheim conclui que há uma correlação direta entre as ocorrências de suicídio e o grau de coesão interna dos grupos sociais aos quais esses indivíduos pertencem, quaisquer que sejam esses grupos sociais. Qualquer das três instituições sociais mais presentes na vida dos indivíduos – família, sociedade, religião – que deixe a desejar do ponto de vista da oferta de segurança e pertencimento, pode deixar uma lacuna no seu mundo subjetivo, nas suas emoções e sentimentos. Se duas delas falham ao mesmo tempo o problema se torna ainda mais grave. Se as três falham, inevitavelmente muitas pessoas, dentre as mais prejudicadas, renunciarão ao seu direito de viver.

 Sem contar outros fatores culturais, que podem estar associados a outro tipo de suicídio, que ele chama de “suicídio altruísta”. Disso Durkheim conclui que o aumento da quantidade de suicídios em uma dada sociedade deve ser tratado como um fato que somente se explica em termos sociológicos, e não por motivações pessoais. Há fatores sociais, que ele denominou de “força coletiva”, que atuam como “uma realidade exterior e superior ao indivíduo”.2

Ao final Durkheim conclui que há uma perfeita correlação entre o suicídio e um estado de “miséria moral” da sociedade, e não do indivíduo. Uma sociedade “anômica”, adoecida pelo dogma do “progresso de qualquer modo e o mais rápido possível”, com seus vínculos sociais enfraquecidos, “é uma das fontes em que se alimenta o contingente anual” de suicídios.3 Quando as taxas de suicídio se elevam, como ocorre agora, isto é sinal de que está ocorrendo uma “ruptura dos laços sociais”, e que não há outra forma de combatê-lo nas suas causas senão atuando sobre os elementos que estão causando essa ruptura.

Como decorrência de suas consistentes demonstrações, a correlação que se faz no meio espírita entre a ocorrência do suicídio e as questões morais do indivíduo precisam, no mínimo, de serem relativizadas. Ninguém é “melhor” ou mais “evoluído” por não apresentar pensamentos suicidas; a pessoa pode simplesmente estar situada em um contexto social e familiar mais favorável, e não tem como garantir que se manteria inume se estivesse situada em situações adversas nas quais as propensões para o suicídio são mais presentes. Assim também ninguém deve sentir-se “inferior” ou “desequilibrado” porque apresenta pensamentos e ideações suicidas, ou por ter realizado alguma tentativa nesse sentido; a pessoa pode estar sob o jugo de constrições sociais que lhe estão sendo insuportáveis, daí o desejo de desistir de viver.

É o que justifica, por exemplo, a elevada taxa de suicídio entre pessoas LGBT. Quase sempre tanto a religião quanto a sociedade mais ampla são hostis a essas pessoas, e seu refúgio termina sendo a família, único ambiente onde ela pode encontrar algum acolhimento. Quando a família a rejeita, eleva-se consideravelmente o risco de suicídio. E aí entra outro fator agravante: família, religião e sociedade se influenciam reciprocamente, fazem parte de um mesmo ambiente cultural. Se a sociedade é preconceituosa, dificilmente a religião e a família não serão afetadas por esse preconceito. Uma pessoa que reencarna na condição LGBT terá que enfrentar a dura estatística que a coloca com quatro vezes maior probabilidade de sucumbir ao suicídio.4

Portanto, existe, no suicídio, uma questão da ordem do indivíduo que é comumente analisada pelos psicólogos, que procuram responder por quê, dentro de um mesmo grupo, determinadas pessoas parecem mais propensas que outras a cometerem suicídio – e nesse sentido o Espiritismo tem muito a contribuir – mas há também a questão da ordem da sociedade, que pode ser melhor analisada pelos sociólogos, que devem estar aptos a identificar quais são os fatores sociais que afetam os indivíduos ao ponto de levá-los a desistirem da própria vida.

As pessoas não se matam simplesmente porque “desistem de viver”, como se fosse uma decisão de conteúdo puramente psicológico, uma "atitude egoísta" ou uma “covardia moral”; as pessoas se matam porque os fatores sociais atuam sobre elas de tal modo que elas não veem mais sentido em continuar vivendo. Sua situação psicológica fragilizada tanto pode ser decorrente de experiências traumáticas em vidas passadas quanto também do contexto social em que ela se acha envolvida na sua atual experiência. Durkheim pondera que “se o indivíduo se isola, é porque os laços que o uniam aos outros estão frouxos ou rompidos, é porque a sociedade, nos pontos em que ele tem contato com ela, já não está fortemente integrada.” Portanto, se as ações pontuais de acolhimento ao indivíduo, a escuta ativa, são indispensáveis junto àqueles que evidenciam a intenção de se matar, modificar as situações sociais que os estão levando a essa situação se constitui em uma ação de muito mais amplo alcance, sendo ambas imprescindíveis.5

Isto significa que, para reduzir a ocorrência de suicídios não basta atuar sobre os indivíduos, é preciso atuar também sobre as suas causas sociais. Se a atuação pontual de escuta, de acolhimento, pode salvar vidas, para reduzir efetivamente a quantidade de suicídios é preciso atuar sobre a cultura, sobre os valores que norteiam a vida em família e na sociedade. Por exemplo, grande quantidade de suicídios estão associados à depressão, e esta pode ser agravada pelo stress na escola ou no trabalho, ou pela insegurança ou falta do trabalho, o desemprego. Ações orientadas para uma maior proteção ao trabalho, para a redução da competitividade, para maior solidariedade e maior garantia de emprego também podem ser um importante fator de redução das ocorrências de suicídio.

Mas essas ações encontram resistência. Um caso típico foi a proposta de uma ação educativa junto às escolas, desde a infância, para minimizar os preconceitos contra pessoas LGBT, como foi proposto no projeto Escola Sem Homofobia, por volta de 2010. Acontece que esse projeto provocou as mais acaloradas reações exatamente em virtude do preconceito que permeia toda a sociedade e as próprias famílias e teve que ser abortado. Não se atentou que, atuando através da escola, alcança-se a família e pode-se, no longo prazo, modificar toda a sociedade, reduzindo assim, as ocorrências de suicídio nessa população específica.

Tão importante quanto atuar individualmente, auxiliando aquelas pessoas que se acham mais expostas aos seus fatores causais, é atuar sobre esses fatores, cooperando para a mudança nas estruturas e nos valores sociais que levam ao individualismo, à competição desenfreada pela sobrevivência, ao preconceito, ao julgamento recíproco, fortalecendo o sentimento de coletividade, de pertencimento, de solidariedade, de cooperação mútua, de valorização da diversidade étnica e de gênero, de não julgamento. Ou seja, para reduzir a ocorrência de suicídios não basta atuar sobre os indivíduos, é preciso atuar sobre as estruturas sociais que o alimentam.

Como são várias as causas, é preciso que sejam enfrentadas todas elas, cada qual mediante uma estratégia específica. Os resultados não têm como serem visualizados de imediato, mas o impacto dessas mudanças sociais poderá ser facilmente percebido na redução gradativa da taxa de suicídio que, com certeza, poderá ser observada ao longo dos anos. As taxas serão menores não porque os indivíduos tenham se tornado melhores ou mais resistentes ao arrastamento ao suicídio, mas porque a sociedade terá se transformado em um ambiente mais acolhedor, mais humano, mais solidário, mais conforme àquela ponderação de Jesus segundo a qual “os meus discípulos serão conhecidos por muito se amarem”.

1 https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/09/10/levantamento-indica-alta-no-numero-de-suicidios-entre-jovens-no-brasil.htm?cmpid=copiaecola

2Durkheim, Émile. O Suicídio, pag. 258. Ed. Ed. Martins Fontes, São Paulo/SP, 2000.

3Durkheim, Émile. O Suicídio, pag. 328. Ed. Martins Fontes, São Paulo/SP, 2000.

4Vide https://www.cartacapital.com.br/blogs/suicidio-da-populacao-lgbt-precisamos-falar-e-escutar/

5Durkheim, Émile. O Suicídio, pag. 361. Ed. Martins Fontes, São Paulo/SP, 2000.


Comentários

  1. Eu poderia acrescentar aqui, caro Elias, a opressão como fato social que exerce força preponderante ao suicídio. A opressão da autoridade, a opressão do poder, que tanto ocorre em família quanto nas relações no ambiente de trabalho, nas relações sociais como um todo; sem deixar de lado a exercida pelo mandatário político que pode oprimir coletivamente.

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    1. Exatamente. O contexto social por inteiro, exerce uma pressão que pode ser favorável, no sentido de evitar, ou desfavorável, no sentido de agravar as condições que estimulam o suicídio.

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  2. Muito boa e competente essa abordagem da questão do suicídio ao extrapolar a dimensão individual para adentrar nos contextos de sociedade!

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  3. Muito bom Elias esse artigo. Parabéns!

    Fico pensando aqui que Durkheim bateu na trave da noção de intersubjetividade mesmo que ainda em sua época quando afirma que “se o indivíduo se isola, é porque os laços que o uniam aos outros estão frouxos ou rompidos, é porque a sociedade, nos pontos em que ele tem contato com ela, já não está fortemente integrada.”
    O velho amigo, passou raspando aonconceito citado porque ele diz considerar apenas certos pontos de contato” entre indivíduo e sociedade. No contexto intersubjetivo desaparecem-se as fronteiras se separação e o indivíduo é a própria sociedade, viva e pulsante.

    O suicidio, por esse viés, como você bem destaca Elias, deixa de ser uma análise individualista para se tornar reflexo do próprio suicídio social. É a sociedade desistindo dessa existência dimensional.
    Cada vez que alguém desiste, é a sociedade demonstrando sua fragilidades e razões para continuar…

    O espiritismo tem muito a refletir sociologicamente por seu natural estado de potência.
    Combater o suicidio significa, antes, combater não a liberdade de escolha dos indivíduos - como liberdade absoluta - mas, combater os pressupostos civilizatórios que promovem as operações de comportamentos nos modos de sobrevivência da sociedade como um todo.

    O imperativo do conceito e do sentimento felicidade, pressupõe uma consciência do que significa ser feliz. Será que tal sentimento se expressa do mesmo modo para todos? Caso não, é possível observar que a felicidade precisa ser respeitada em suas mais distintas formas de expressão pelos indivíduos.

    Em geral o suicido é expressão de uma sociedade infeliz.

    Obrigado!

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    1. Sem mudar a sociedade, nossas ações junto aos indivíduos funcionam como enxugar gelo. Salvamos alguns, outros não suportam e se matam.

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