Qual dos dois, o Jesus histórico ou o teológico, têm mais a ver com o Espiritismo?


Elias Inácio de Moraes


O termo Jesus histórico refere-se ao homem Jesus de Nazaré, que nasceu em uma pequena cidade da galileia quando aquela região estava dominada pelo império romano. Por sua sabedoria e virtudes era tido como profeta, e dedicou a fase adulta da sua vida a ensinar princípios de vida radicalmente diferentes do judaísmo, que era a religião do seu povo. Em sua visão de mundo ele substituía a visão autoritária em torno do deus judeu, Yaweh, o "Senhor dos Exércitos", pela visão paternal da parábola do filho pródigo, uma espécie de deus Pai que deseja abrigar todos os seus filhos no seu regaço amoroso. Substituía também a pena de talião pelo perdão das ofensas, indo até ao ponto extremo do amor aos inimigos. Em lugar da ênfase na propriedade dos bens materiais ele pregava o desprendimento e a renúncia, recomendando dar logo a capa a quem exigisse o manto, e fazia do amor ao próximo a virtude principal que distinguia os "justos" dos "injustos". O reino que ele anunciava seria uma sociedade regida pela solidariedade e pela fraternidade. Por subverter a religião tradicional as lideranças judaicas o denunciaram ao governo romano, que não hesitou em condená-lo à morte e crucificá-lo como criminoso vulgar. Termina aí o Jesus histórico. 1

O Jesus teológico começa a ser elaborado logo após a sua morte, quando seus seguidores começaram a recontar a sua história. Talvez por ter aparecido em espírito a algumas pessoas é que se tenha criado a versão de que ele havia ressuscitado dentre os mortos, que teria ascendido aos céus e que voltaria para consolidar o seu reinado. Como várias pessoas relatavam ter sido curadas pela sua intervenção amorosa, isso pode ter estimulado o surgimento de inúmeras histórias de milagres e casos extraordinários, misturando fatos a narrativas fantásticas em torno da sua vida. Homens das letras o associaram àquele “servo de Deus” de que falara Isaías, uma espécie de "cordeiro de Deus" levado ao sacrifício para "justificar" o seu povo, um "salvador" que tomou sobre si todas as “iniquidades” humanas.2 Por ter dito que vivia plenamente conectado à vontade do Pai ele pode ter sido considerado um semideus, o "verbo que se fez carne", uma espécie de “filho unigênito de Deus” que teria vindo à Terra para resgatar o povo eleito de Israel.

Ao longo das décadas seguintes novas narrativas foram sendo acrescentadas, textos foram sendo escritos, misturando a religiosidade judaica às ideias mitológicas gregas e romanas, chegando até os anos 200 d.C, quando a teologia em torno de Jesus já se achava razoavelmente estabelecida nos textos evangélicos, tornando quase impossível distinguir, passados 2.000 anos, o que foi mesmo a história e o que são mitos e lendas religiosas construídos em torno da sua pessoa.

Ao escrever O Evangelho Segundo o Espiritismo Allan Kardec procurou distinguir dados históricos do que seriam apenas construções teológicas. Na introdução do livro ele observa que as matérias contidas nos evangelhos podem ser divididas em cinco categorias: "os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a última, porém, conservou-se constantemente inatacável." Ele dedica todo o livro à análise da filosofia de vida do profeta nazareno, que ele chama de "ensinamentos morais".3

Do mesmo modo, ao escrever A Gênese, que trata dos "milagres" e das "predições segundo o Espiritismo", ele procura estabelecer um olhar racional sobre os principais feitos extraordinários atribuídos a Jesus. Pelo seu critério, ou esses feitos poderiam ser explicados com base na ciência ou seria mais provável que eles não tivessem acontecido; ou seja, fossem apenas mitos ou lendas de conteúdo teológico. Muito embora ainda não existisse naquela época o conceito de Jesus histórico, Kardec já fez uma clara opção nessa direção, refutando qualquer explicação baseada apenas na teologia e reafirmando a opção espírita pelas narrativas fundamentadas nas explicações que tinham por base a ciência e a historiografia.4

Ocorre que ao aportar no Brasil, o Espiritismo começou a sofrer uma forte influência do catolicismo local. Como os espíritas eram na sua maioria ex-católicos, muitos abraçavam a ideia da reencarnação, da imortalidade da alma e da comunicação com os espíritos, mas continuavam alimentando como crença de fundo as suas ideias católicas de origem, entre elas a de um Jesus semideus, o filho unigênito, da pecaminosidade da "carne" e, como consequência, a da virgindade de Maria, da especialidade do nascimento e do corpo de Jesus. Para a teologia católica arraigada no subconsciente dos novos espíritas Jesus jamais poderia ser um de nós.

Mesmo entre os espíritos que se comunicavam por aqui, também na sua maioria oriundos da tradição católica, como seria de se esperar, pode-se observar que, em meio a muitos ensinamentos de relevante significação evangélica, permeiam as ideias oriundas da teologia convencional. Ignorando o método de análise de Kardec, muitos espíritas deixaram de considerar que os espíritos "não são senão as almas dos homens, despojados do invólucro corpóreo" e que eles conservam muitos dos modos de pensar que apresentavam quando em vida.5 Assim, sem nenhuma análise comparativa com outras mensagens oriundas de outros médiuns em outras culturas, sem nenhuma correlação com a visão científica da história, como recomendava Kardec, simplesmente foram assimiladas diversas informações mediúnicas sobre Jesus como manifestações da verdade.

É assim que o Espiritismo no Brasil reproduz a teologia católica sobre Jesus. Do dogma que afirmava que "no princípio era o Verbo" e que o "verbo era Deus" entendeu-se que Jesus esteve desde o início dos tempos atuando na criação do planeta, o que teria se dado há 4,5 bilhões de anos segundo os cálculos da astronomia. Desconsiderando que o cristianismo se constitui na crença de apenas 30% da população do planeta, essa visão coloca como meros coadjuvantes lideranças espirituais como Lao Tsé, Confúcio, Buda e Maomé, e apresenta Jesus como uma espécie de governador espiritual da Terra, em uma clara atitude de supremacismo religioso, típica do judaísmo antigo ou do catolicismo da Idade Média, que pretendiam estender seu domínio sobre o mundo inteiro. Negando sua condição humana, ele não teria evoluído como os humanos, mas em linha reta, sem jamais ter cometido um único equívoco, pelo que passou a ser objeto de culto e de adoração, como se fosse um substituto de Deus. Se Kardec orava a Deus, os espíritas brasileiros oram a Jesus.

Até mesmo a figura de Maria, a mãe de Jesus, ressurge como a "Virgem Maria" ou a "Maria Santíssima" dos cultos católicos, e os personagens marcantes do Espiritismo pela sua dedicação e virtude passam a ser transformados em oráculos espirituais; não mais os nossos amigos fora do invólucro corporal, mas verdadeiros "santos" conforme a acepção católica, que passaram de súbito, pelo simples fato de estarem agora no mundo espiritual, à condição de detentores da verdade a respeito de todas as coisas. Em vez de considerar seus ditados como o modo de ver desse ou daquele espírito por esse ou aquele médium, como faria Kardec, mesmo as informações carregadas de conteúdo teológico passam a ser compreendidas como "revelações do mundo espiritual para a Terra" ou "complementos à doutrina espírita".

Na contramão da perspectiva kardequiana que tinha como referência o Jesus histórico, humano, o espírito "mais puro de quantos têm aparecido na Terra", por isso mesmo merecedor de ser admitido como nosso "guia e modelo", tornou-se comum atribuir a Jesus a ideia de um libertador, um "salvador pessoal" no sentido judaico-cristão.6 Em vez de um Espiritismo socialmente comprometido com uma "civilização completa", como propunha Kardec, elaborou-se um Espiritismo fortemente individualista, mais comprometido com a "salvação pessoal" do que com a regeneração social. O estandarte "fora da caridade não há salvação", que queria dizer que fora da caridade não há saída, não há alternativa possível para a vida social, passou a ser entendido como uma barganha onde a caridade seria a moeda para comprar uma vaga em um "mundo de regeneração" egoísta e excludente, capaz de deportar para "mundos inferiores" aqueles que não se amoldassem a um modelo específico de comportamento moral baseado na teologia cristã.7

Em se adotando Kardec como referência, portanto, não resta dúvida de que qualquer entendimento a respeito de Jesus se vincula mais ao Jesus histórico, somando a isso o olhar espiritual que a doutrina espírita nos oferece, do que a qualquer visão teológica herdada das igrejas cristãs. Jesus é, para o Espiritismo, o espírito mais puro que já encarnou na Terra, que nasceu, viveu e abraçou uma causa humanitária relevante, e morreu condenado em virtude do quanto suas ideias eram destoantes das ideias vigentes na religião da sua época; um guia espiritual e modelo a ser seguido, mas sem os mitos e lendas que foram construídos em torno do seu nome. Sua virtude reside nos seus ensinamentos, na sua filosofia de vida; um exemplo a ser seguido em vez de um personagem a ser reverenciado ou adorado como se fosse um semideus.

Isso fica claro em uma controvérsia que houve ainda no tempo de Kardec a respeito de alguns pontos caros à teologia católica, como a ideia de que Maria teria concebido Jesus "sem pecado" e, portanto, virgem; os judeus sempre consideraram a sexualidade humana como abjeta, suja, pecaminosa, o que não condiz com o Espiritismo. Essa abordagem proveio de uma médium da cidade de Bordeaux, Sra. Émile Colignon, que psicografou uma coleção de textos atribuídos aos próprios evangelistas e a Moisés, publicados sob o formato de livros pelo Sr. Jean Baptiste Roustaing. Segundo essa visão, até mesmo o corpo de Jesus teria sigo algo transcendental, "fluídico", concebido sem as "impurezas da carne", de vez que um semideus não poderia habitar um corpo meramente humano. Kardec analisou as ideias contidas nesses livros e, em que pese a convergência no que se referia à moral, não viu coerência entre essa parte mais "reveladora" e o conjunto das outras comunicações espíritas obtidas por outros médiuns, e considerou-as – em um exemplo para os nossos dias atuais – como "opiniões pessoais" dos espíritos que as formularam.8

Ao escrever o livro A Gênese ele fez questão de rechaçar inteiramente as ideias de um Jesus transcendental, fora da condição humana, um ser à parte ou um ser divino, alertando que, a admitir semelhante hipótese, sua dor, seu martírio, teriam sido apenas uma farsa destinada a enganar os que o seguiam. Mesmo sendo Jesus a encarnação de um espírito já purificado como ele demonstrava ser, caso ele não fosse tão humano quanto qualquer um de nós sua vida não passaria de "uma comédia indigna de um homem simplesmente honesto e, com mais forte razão, de um ser tão superior. Numa palavra, ele teria abusado da boa-fé dos seus contemporâneos e da posteridade".9 Com isso Kardec vinculava o Espiritismo a uma visão de Jesus como um espírito superior, sem dúvida, mas humano e histórico, comprometido com uma nova consciência, capaz de transformar o mundo em um lugar melhor para todos, um "reino de Deus" livre da ambição, do individualismo e da indiferença que vigoram na sociedade moderna; um "reino de Deus" fundado na fraternidade e na solidariedade, que serão os pilares do mundo regenerado e feliz a ser construído por nós.

1Vieira, Marco A. O Homem de Nazaré, Ed. CELD, Rio de Janeiro/RJ.

2Sociedade da Bíblia de Jerusalém. Bíblia de Jerusalém, livro de Isaías, cap. 52 e 53. Ed. Paulus, São Paulo/SP.

3Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item I. Ed. FEB, Brasília/DF.

4Kardec, Allan. Revista Espírita, maio e junho de 1864. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

5Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. I item 2. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

6Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 625. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

7Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 671; A Gênese, cap. XI item 45; O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XV.

8Kardec, Allan. Revista Espírita, jun/1866. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

9Kardec, Allan. A Gênese, cap. XV item 66, 5ª edição. FEB, Rio de Janeiro/RJ.


Comentários

  1. Olá, Elias! Gosto muito dos teus vídeos e da maneira aberta como você aborda os temas ligados ao espiritismo. Vejo nas tuas falas uma visão ao mesmo tempo crítica e respeitosa com relação aos pontos de vista divergentes. Admiro muito essa tua característica.
    Justamente por reconhecer essas virtudes em você é que eu resolvi escrever este comentário crítico, na certeza de que você vai recebê-lo com a mesma serenidade costumeira.
    Em primeiro lugar, gostaria de dizer que as pesquisas históricas contemporâneas sobre o cristianismo primitivo têm nos proporcionado novos subsídios para a compreensão deste tema a partir de estudos transdisciplinares e das evidências arqueológicas recém-encontradas.
    Assim, por exemplo, os ensinos e costumes de Jesus não devem ter sido "radicalmente diferentes do judaísmo". Na realidade, havia muitas visões e opiniões distintas dentro do judaísmo, a ponto de se poder trabalhar com a ideia de judaísmos (assim como se pode pensar em cristianismos e até, pasme!, espiritismos). Jesus apresentava uma das muitas visões possíveis dentro do judaísmo. Ele nasceu judeu, viveu como judeu e morreu judeu.
    Dessa forma, a sua condenação à morte não foi motivada por "subverter a religião tradicional". Dentro do império romano coexistiam muitos judaísmos e politeísmos, e as autoridades não estavam muito preocupadas com essas questões. A crucificação, a mais cruel e humilhante das penas capitais, era reservada para assassinos, traidores, conspiradores, bandidos etc., enfim, pessoas vistas como ameaças à ordem pública e à autoridade romana. Jesus foi visto pelos romanos como mais um bandido, que ousou anunciar a fundação de um reino dentro dos domínios do império romano. Por isso, pela ameaça que isso representava às autoridades constituídas, foi sumariamente capturado e crucificado. A culpabilização dos judeus, enfatizando aspectos religiosos, é uma construção teológica posterior.
    Quanto à imagem de Jesus construída no espiritismo, - o espírito mais puro e perfeito que já passou pela Terra, guia e modelo da humanidade, médium de Deus, diretor do nosso orbe -, ela é fruto de uma elaboração doutrinária, que não encontra respaldo historiográfico (sem entrar aqui em qualquer juízo de valor sobre o mérito dessas conceituações a respeito de Jesus que são muito caras ao meio espírita).
    A influência católica, realmente bastante acentuada no espiritismo brasileiro, já está presente, a meu ver, nas obras kardecianas. As mensagens exaltando a figura de Jesus e a superioridade do cristianismo sobre as demais experiências religiosas, apresentando-o como o repositório de todas as verdades, são exemplos desse viés. Um grande contingente dos espíritos da codificação já fazia o sinal da cruz antes de o espiritismo aportar em terras brasileiras.
    Então, para concluir, o Jesus espírita (ainda) não é o Jesus que está emergindo das pesquisas acadêmicas, mesmo que com este possa guardar muitas semelhanças (dentre as quais, talvez a mais importante, o convite à construção de um mundo mais fraterno e igualitário). É preciso reconhecer que o Jesus espírita também é mais uma das incontáveis reconstruções do Cristo da fé, agora sob o ponto de vista do quadro de referência espírita (mais uma vez, sem qualquer juízo de valor sobre o mérito dessa reconstrução). Penso que o espiritismo tem muito a ganhar com os avanços das pesquisas nessa área, enriquecendo essa reconstrução espírita de Jesus com informações mais atualizadas e confiáveis. Há muita desinformação psicografada.
    Por fim, reitero meu apreço pela tua iniciativa de trazer essas discussões em torno de temas importantes para o meio espírita de forma tão aberta e respeitosa e faço votos de que você continue firme e forte no teu propósito.
    Atenciosamente,
    Cid Chaves

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