ESPÍRITO TEM COR, SIM SENHOR!


 Elias Inácio de Moraes

O canal do Eduardo Moreira promoveu uma riquíssima e agradável roda de conversa entre frei David, Simão Pedro e Eduardo Marinho a respeito do tema “Espiritualidade, Vida e Filosofia”. Eram um sacerdote católico, um palestrante espírita e um filósofo de rua dialogando a respeito de espiritualidade na vida cotidiana.

Com sua sensibilidade e segurança doutrinária Simão Pedro trouxe a visão espírita para um público de mais de 12 mil pessoas que assistiram o evento, deixando o vídeo disponível para mais de meio milhão de inscritos no canal. Aos 28 minutos, indagado sobre por que as instituições religiosas não se pronunciam a respeito da onda de extermínio de pessoas negras na Bahia, ele elogiou a fala realista de Eduardo Marinho e chamou a atenção do público para a nossa pobreza de sentimentos e para “o quanto é uma tolice a discriminação, seja ela racial, étnica ou de gênero”.1

Neste ponto, entretanto, ele fez uma afirmação que carece de reflexão da nossa parte por estar muito presente no nosso discurso espírita e que, por falta de dialogar com os movimentos negros, nem nos damos conta do preconceito que ela traz embutido, disfarçado de afirmação doutrinária. Ele repetiu o velho chavão segundo o qual “espírito não tem cor”.

Aos ouvidos das pessoas negras essa afirmação representa a negação da diversidade das cores de pele que caracterizam a sociedade humana, como se o estado natural do espírito fosse a cor branca e todas as demais cores de pele representassem apenas um estado temporário.

Infelizmente, como decorrência do contexto social da França do século XIX, há na Revista Espírita um diálogo entre Kardec e o espírito São Luís a respeito de “Pai César”, um ex-escravo que vivia nos Estados Unidos. Além de considerar a “raça negra” uma “raça inferior” que no futuro será extinta – sobrando a “raça branca”, considerada superior – São Luís ainda associa a reencarnação de um branco na condição de negro a uma “punição”.2

Por não contextualizarem adequadamente esses textos e por não dialogarem com a sociedade negra a esse respeito, pessoas espíritas têm repetido esse chavão que soa como uma ofensa aos pretos: “espírito não tem cor”. Ocorre que, ao contrário do que afirma essa expressão, o espírito enquanto apresentação pessoal, enquanto identidade, enquanto caracterização pessoal, ele tem cor, sim senhor. Senão, vejamos.

Conforme apresentado por Allan Kardec, o ser humano se constitui de espírito, perispírito e corpo material. Quando fora do corpo físico o espírito se faz percebido pelo seu perispírito, também chamado de “corpo espiritual” ou “corpo astral”. Se para o espírito enquanto “princípio inteligente” a palavra cor não faz sentido – assim como não faz sentido falar da cor da água ou do ar – para o perispírito, que é o “corpo espiritual” pelo qual o espírito se apresenta, existe cor, sim senhor. Como muito bem lembra Allan Kardec, o perispírito “guarda a aparência de sua última encarnação”.3

E não apenas a cor, como também a forma de pensar, seus hábitos, suas crenças, sua cultura, suas tradições. É por isso que os relatos mediúnicos falam de espíritos indianos, africanos, indígenas ou europeus, com os quais se identificam grande parte da população do ocidente.

Espíritos que têm vivido por várias encarnações em meio às comunidades asiáticas têm apreço pelos traços fisionômicos que caracterizam o seu povo; os que têm vivido em meio às comunidades africanas têm apreço pela beleza que caracteriza a comunidade africana. O mesmo ocorre com os espíritos oriundos das comunidades indígenas – que infelizmente têm sido dizimadas pela sociedade branca –; eles têm apreço pelas suas características fisionômicas, sua cor de pele, tanto quanto os europeus e seus descendentes têm apreço pelas suas.

A pretensa superioridade europeia é uma invenção dos escravagistas do século XVI que visava tão somente justificar a captura e venda de seres humanos na condição de escravos, em um dos mais lucrativos negócios do capitalismo iniciante, que durou quase quatro séculos. Sob esse argumento eles procuravam convencer as pessoas de que o povo europeu era superior, por isso, a pele de cor branca seria mais bela que a pele de cor preta das pessoas africanas, ou que a pele marrom avermelhada dos povos indígenas. Muitos acreditam nisso ainda hoje, mesmo no meio espírita onde essa crença não faz mais o menor sentido.

No mundo espiritual os espíritos se apresentam uns aos outros conforme se apresentavam na sua última experiência aqui na Terra. Martin Luther King, Nelson Mandela, Mahatma Gandhi não mudaram a cor da sua pele porque deixaram o envoltório físico. Os espíritos conservam as características que apresentavam na sua última encarnação inclusive no que se refere aos seus adereços, que podem ser a tradicional vestimenta europeia constituída de calças, camisas, blusas e vestidos, ou as longas túnicas indianas com os seus turbantes, ou as vestimentas chinesas com seus pentes e leques. Um espírito que honra a sua tradição indígena se apresenta com seus adereços e cocares, assim como um Preto-velho se apresenta com sua roupa de linho branco e seu chapéu de palha. Kardec esclarece que “o comportamento e a aparência são semelhantes ao que o espírito tinha quando vivo”.4

Como manifestação do seu preconceito, alguns espíritos renegam as características físicas da sua última existência em favor de outra que consideram “superior”, como no caso de Pai César, apresentado por Kardec na Revista Espírita. Mas também há espíritos que fazem questão de se apresentar naquela fisionomia com a qual se enriqueceram do ponto de vista das suas aquisições espirituais, se apresentando hoje como caboclos, pretos-velhos, sábios chineses ou gurus indianos.

Assim como acontece no mundo material, o mundo espiritual se caracteriza por uma enorme diversidade de cores e expressões, de modos de se apresentar e de agir, de maneiras de crer e de pensar, cada espírito e cada sociedade se apresentando conforme seus gostos, suas preferências.

Portanto, sob o entendimento espírita não existem razões que justifiquem qualquer tentativa de “apagamento” das diferenças como forma de negação da diversidade étnica e da variedade de cores de pele, e nem qualquer outro tipo de supremacia de um determinado grupo social sobre os demais. A única superioridade, segundo o Evangelho, é a daquele que se coloca no mundo como o servidor de todos. Maior, espiritualmente falando, é o que mais serve, porque o serviço ao próximo, sobretudo àqueles a quem Jesus apresentou como os “pequeninos” da Terra, é o que distingue os espíritos que aderem verdadeiramente aos padrões morais do Evangelho.

Quanto à diversidade de cores de pele, de gostos, de modos de pensar e de agir, de gênero, como bem lembrou Simão Pedro, ela é apenas a forma pela qual a Criação Divina se manifesta no mundo, porque na natureza, a diversidade é a impressão digital deixada por Deus em toda a enorme extensão da sua obra. É na diversidade e na pluralidade que se mostra a beleza da Criação.

2Kardec, Allan. Revista Espírita, jun/1859 pag. 243, “O negro Pai César”. Ed. FEB, Brasília/DF. Por um acordo com o Ministério Público as editoras espíritas foram obrigadas a incluir uma Nota Explicativa sobre essa questão.

3Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 150-a. Ed. FEB, Brasília/DF.

4Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, Parte II cap. VI item 102. Ed. Petit, São Paulo/SP, 2004.. 

Comentários

  1. Doído e grave equívoco de Simão Pedro. Mas, muuto bem pontuado por você: não atualizar as concepções e estar afastado dos movimentos negros, e, reiterar o racismo, velado através do discurso moral w doutrinario.

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  2. Muito bem você faz essa reflexão, é necessário atualizar as concepções e retirar o racismo do discurso moral da doutrina

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