Pandemia, Tsunamis, violência urbana… Só se morre na hora certa?

 

Elias Inácio de Moraes

Desenvolveu-se no meio espírita a crença de que “a morte tem a hora certa” e de que a pessoa, qualquer que seja a circunstância, “só morre se tiver que morrer”. Tanto o momento da morte quando o modo como ela acontece já estariam previstos nas “Leis Divinas”. Será isso mesmo? Esse entendimento suporta uma análise racional com base em dados objetivos?

Há quem argumente com base em algumas questões de O Livro dos Espíritos que, tomadas isoladamente, até podem levar a esse entendimento, mas analisadas no conjunto, se mostram como respostas específicas a uma questão particularíssima. Além do mais, não se pode perder de vista que as respostas que Kardec utilizou para compor os seus livros provém de uma grande variedade de espíritos e não apenas de “espíritos superiores”, como se pensa habitualmente. O cruzamento de informações com a Revista Espírita mostra que há ali respostas de um espírito que era ateu quando em vida e que continuava em dúvida mesmo depois da sua morte; de uma senhora que era médium na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas; de dois militares que morreram em uma guerra na cidade de Magenta, na Itália; e do próprio Kardec com base nas comunicações recebidas.1

Outros lançam mão de narrativas mediúnicas, sobretudo da literatura de Chico Xavier, sem atentar que são casos que não representam todas as situações possíveis, mas situações particulares de pessoas que foram poupadas de certas situações, o que não significa que isso aconteça, forçosamente, para toda e qualquer pessoa em toda e qualquer situação, em especial em situações inusitadas como uma pandemia, um tsunami ou a violência cotidiana de algumas cidades.

O fato é que, quando se analisa o assunto à luz dos dados oficiais dos governos, das estatísticas e dos estudos científicos, esse tipo de afirmação não encontra a menor sustentação. E nesse ponto Kardec era muito claro: se algum dia a ciência demonstrar que o Espiritismo está equivocado em algum ponto, muda o Espiritismo. Até porque o Espiritismo deve andar de braços com a ciência e a verdadeira fé, que Kardec chamava de “fé raciocinada, somente é aquela capaz de encarar a razão face a face em qualquer época da humanidade”.2

Então vamos aos dados: No que se refere às pandemias, o mundo sempre conviveu com esse fenômeno biológico. Vez por outra irrompe um vírus ou uma bactéria mais letal e a humanidade tem que encontrar meios de fazer face a essa nova ameaça. Foi assim com a peste negra, com a gripe espanhola, com o HIV, o Ebola, e agora, por último, com o coronavírus. Do ponto de vista da ciência são ocorrências normais em um sistema biológico hipercomplexo como é o planeta Terra, com zilhões de seres vivos interagindo o tempo todo. Numa perspectiva espiritual Kardec entendeu que essas calamidades representam desafios à inteligência humana que se desenvolve mediante o esforço de contornar esses obstáculos. “À medida que adquire conhecimentos e experiência, ele (o ser humano) os vai podendo conjurar, isto é, prevenir, se lhes sabe pesquisar as causas.”

Inúmeras doenças endêmicas ou pandêmicas foram contidas mediante o desenvolvimento de vacinas, como a varíola, a paralisia infantil, o sarampo, a febre amarela. É a inteligência humana sendo chamada a defender a vida, como acontece também agora com o coronavírus. A estatística mostra claramente como a quantidade de mortes por coronavírus está decrescendo à medida que a população vai sendo vacinada, e que agora estão morrendo mais pessoas não vacinadas, com poucas mortes de pessoas já vacinadas. Ou seja, a inteligência humana, quando colocada a serviço da vida, evita as mortes que poderiam ocorrer antes de um possível momento programado. O contrário também pode ocorrer; a negligência de uns pode interromper a encarnação de outros, impedindo-os de passarem pelas experiências que os trouxeram a este mundo. É um crime indireto.

Quanto aos tsunamis, também são eventos geológicos absolutamente naturais e, até certo ponto, previsíveis. Nas regiões onde há riscos de sua ocorrência as pessoas dependem do adequado funcionamento dos sistemas de prevenção de modo a evitar perdas de vidas humanas. O número de mortes no tsunami de 2004, na Indonésia, foi assustador – 280 mil mortos – especialmente se comparado com outro da mesma magnitude, o de 2011 no Japão, onde morreram 16 mil pessoas. Claro que toda essa diferença não resulta apenas das medidas de previdência adotadas pelo governo japonês; há outros fatores que também interferem no número de mortes, mas o contraste deixa claro que muitas mortes teriam sido evitadas no tsunami de 2004 se tivessem sido adotadas as adequadas medidas de prevenção observadas na sociedade japonesa. De novo a inteligência humana protegendo a vida ou deixando que encarnações sejam interrompidas por pura negligência.

Por último, a violência urbana. Os registros existentes são claros ao demonstrar que a violência incide com maior ou menor intensidade dependendo das políticas adotadas pelos governos para fazer frente a determinadas situações. Um exemplo: para fazer face ao HIV e à violência do tráfico o governo português descriminalizou o uso de drogas no ano de 2000; em vez de reprimir, passou a tratar os doentes. Com isso ele reduziu o número de contaminações e o de mortes em conflitos de gangues ou em abordagens policiais.4 No Brasil a atual política de criminalização das drogas ao longo dos últimos 30 anos colocou o país refém de facções criminosas como o PCC, CV, AA, e uma infinidade de outras siglas. Um jovem preso por estar de posse de uma pequena quantidade de drogas é obrigado a associar-se a uma dessas facções se quiser sobreviver dentro de um sistema prisional insano, controlado pelo crime em vez de pela justiça. Confrontos armados entre gangues ou entre estas e a polícia tiram a vida de milhares de pessoas, inclusive policiais, que poderiam ter suas vidas poupadas se fosse outra a política de enfrentamento do problema. São verdadeiros abortos de vidas já nascidas. Ao adotar câmeras filmadoras nos uniformes a PM de São Paulo está conseguindo reduzir em 85% a letalidade policial. Vidas salvas; mortes evitadas.

Outro exemplo é o que a estatística trouxe à tona a respeito da covid-19. Cruzando os resultados das eleições de 2018 fornecidos pelo TSE e as estatísticas de mortes por covid-19 do Ministério da Saúde, nas cidades em que houve maior votação a favor do atual governo, onde moram pessoas que, por seguirem as recomendações do mandatário do país, resistem em seguir as orientações contrárias às medidas de prevenção adotadas pela Organização Mundial de Saúde, a quantidade de mortes por covid-19 chegou a 351 por 100 mil habitantes, mais que o dobro daquelas onde ele teve baixa votação, de 146 mortes por 100 mil habitantes. Os dados estatísticos não deixam a menor dúvida; é clara a correlação entre a quantidade de mortes e o maior ou menor apoio às posições adotadas pelo presidente da república em relação às medidas de prevenção à covid-19. Isto significa que algo em torno de 500 mil mortes – meio milhão – poderiam ter sido evitadas se as orientações sanitárias tivessem sido atendidas de igual maneira em todos os municípios.

Mas não apenas isso; há países em que a covid-19 causou pouquíssimas mortes graças às medidas preventivas adotadas desde o início da pandemia. Em vez de entender que “não morre pela covid, mas morre de fome” seus governos colocaram as vidas humanas acima dos interesses econômicos de pessoas ou grupos sociais e investiram recursos para garantir a subsistência de todos durante o distanciamento social. As estatísticas deixam claro que nos países capitalistas como Peru, Brasil, Estados Unidos, Bélgica, onde o interesse econômico tem sido priorizado, a quantidade de mortes foi às alturas, enquanto nos países socialistas, que priorizaram o interesse coletivo, a quantidade de mortes foi bem menor ou quase insignificante, como no Vietnã, China, Cuba, Nova Zelândia, Venezuela. Para se ter uma ideia da diferença, enquanto na China morreram 3,36 pessoas por milhão de habitantes, no Peru, o campeão mundial de mortalidade por covid-19, esse número atingiu a inacreditável taxa de 6.343,75 por milhão de habitantes. Uma provação coletiva.

Afirmar que cada uma dessas mortes “aconteceu na hora certa” ou que “só morre quem tem que morrer” é desconsiderar os fatores sociais que podem ocasionar a perda de vidas humanas em situações em que isto poderia ser evitado. Não é sem razão que a literatura médica considera a existência das chamadas “mortes evitáveis” que são aquelas que podem ser evitadas mediante as devidas medidas de prevenção e com o adequado tratamento. Sob essa mesma lógica, muitas mortes podem ser evitadas em se prevenindo adequadamente os acidentes de trânsito, a violência urbana e inúmeras outras causas de mortes. E se elas podem ser evitadas, isso significa que elas não têm que acontecer neste momento.

Vidas que se perdem nessas circunstâncias são existências abreviadas, oportunidades da encarnação prejudicadas, planos existenciais abortados a meio do caminho em virtude dos nossos desacertos na vida social. Quando se trata de mortes de crianças, de jovens, de pessoas em meia-idade, é uma vida que foi ceifada antecipadamente, seja no seu começo, seja na sua fase mais esperançosa ou mesmo na fase já produtiva. Qual o primeiro de todos os direitos? O de viver.

Portanto, é possível, sim, morrer “antes da hora”, seja por suicídio, seja por assassinato, seja pela irresponsabilidade de um motorista embriagado no trânsito, seja pela negligência da própria pessoa ou daqueles que tem sob sua responsabilidade o zelo para com a vida da sociedade. Existem, sim, o crime, a omissão e a negligência. Se há uma espécie de “Lei Divina” que controla esses acontecimentos, então essa lei também prevê o livre-arbítrio dos motoristas, dos assassinos, dos agentes públicos e dos governantes, que podem colocar em risco a vida das pessoas com as suas decisões e o seu modo de agir. Ninguém nasceu condenado a ser um criminoso ou um governante negligente; isso decorre da decisão pessoal do indivíduo, do exercício do seu livre-arbítrio.

Há quem alegue que “Deus não permitiria se não fosse justo”, mas há nessa sentença o entendimento de que Deus interferiria no livre-arbítrio das pessoas evitando que elas fizessem ou deixassem de fazer algo sob sua decisão. O próprio Jesus foi vítima de um crime. Isso não significa que não possa haver um ou outro caso em que os espíritos atuem para evitar uma ou outra morte “antes da hora”, como muitas situações parecem sugerir. Mas essa não é a regra, como o demonstra à saciedade as estatísticas. Como regra, prevalece o livre-arbítrio dos agentes sociais.

Para aqueles que se vão e para aqueles que ficam essas mortes “antes da hora” representam uma trágica interrupção de um plano às vezes minuciosamente traçado no mundo espiritual. Uma expiação, se algo no passado das vítimas as leva a associar o acontecimento a uma forma de “justiça Divina”, mas uma provação ou um desafio moral para quem não traz a consciência culpada, solicitando dos envolvidos um exercício de compreensão, de resignação e até de perdão para com aqueles que, por negligência, incúria ou ação criminosa, interromperam o curso de uma história que poderia ser diferente fossem outras as disposições morais daqueles que tinham nas suas mãos o poder de decidir sobre agir de uma forma ou de outra, defendendo a vida ou negligenciando-a.

1Moraes, Elias. Contextualizando Kardec: do séc. XIX ao XXI, cap. 12 “Quem são os espíritos da codificação?”. Ed. Aephus, 2020.

2Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX item 7. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

3Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 741 a 741. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

4Vide reportagem intitulada “Como Portugal se tornou referência mundial na regulação das drogas”. Disponível em 27/01/2022 em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/02/internacional/1556794358_113193.html

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