O ESPIRITISMO, A MORAL E OS SISTEMAS SOCIAIS


Elias Inácio de Moraes

Este breve artigo vem a propósito de um comentário de um amigo em um grupo de WhatsApp. Em uma mensagem psicografada que foi ali postada ficou evidente a sutil associação - feita pelo médium ou pelo espírito? - do "materialismo" a determinados sistemas sociais. Ante o meu questionamento ele respondeu no grupo que "o problema da humanidade não está nos sistemas, está no homem. Moralize o homem e qualquer sistema será bom."

Esta é uma afirmação que merece uma análise mais cuidadosa, que procuro fazer a seguir:

1 – Quando Kardec pergunta ao espírito se a desigualdade social é resultado de uma “lei natural” o espírito lhe responde: “não; é obra do homem e não de Deus”.1 Nas questões seguintes o diálogo evidencia que essas desigualdades “são fruto do egoísmo humano” e que elas desaparecerão na medida em que o egoísmo deixar de predominar nas nossas relações sociais. Portanto, sistemas sociais não surgem por acaso, eles são coletivamente elaborados; a sociedade os constrói. Cada sistema social reflete uma moralidade que lhe é inerente e que tem a ver com o contexto sócio-histórico no qual ele foi concebido.

2 – Quando os espíritos falam da “influência da matéria” a que todos estamos sujeitos quando encarnados, eles estão se referindo à influência que o ambiente moral, os sistemas sociais, a cultura, exercem sobre o espírito, delimitando o seu comportamento.

De todas as imperfeições humanas, o egoísmo é a mais difícil de desenraizar-se porque deriva da influência da matéria, influência de que o homem, ainda muito próximo de sua origem, não pôde libertar-se e para cujo entretenimento tudo concorre: suas leis, sua organização social, sua educação.2

O meio cultural em que o ser humano está inserido modela em grande parte suas crenças e sua visão de mundo, sua moral, enfim. Libertar-se da “influência da matéria” significa transcender a essas influências e tornar-se capaz de ver e agir para além daquilo que lhe determinam “suas leis, sua organização social, sua educação”, de modo a não permitir que o ambiente cultural em que se acha inserido determine inteiramente as suas ações morais. Foi assim com Jesus, Francisco de Assis e com todos aqueles que Kardec considerava como “reformadores sociais”.

3 – Kardec e os espíritos propõem que “o egoísmo, chaga da Humanidade, tem que desaparecer da Terra, a cujo progresso moral obsta.”3 Derivado do orgulho que decorre da posição social, o egoísmo é o “causador de todas as misérias do mundo terreno. É a negação da caridade e, por conseguinte, o maior obstáculo à felicidade dos homens”. Pessoas “moralizadas” elaboram sistemas sociais solidários em substituição aos antigos sistemas baseados no orgulho e no egoísmo.

Passemos então à segunda reflexão: sobre que bases morais cada sistema social foi constituído e como eles atuam sobre a nossa vida em sociedade?

Como a história demonstra, o capitalismo sucedeu ao feudalismo, consolidando-se com o surgimento de uma nova classe social que emergiu nas cidades, então chamadas de burgos (daí o surgimento da palavra “burgueses”). Até então o poder econômico estava concentrado nas mãos dos senhores feudais, mas, com a enorme expansão da capacidade produtiva decorrente da revolução industrial, o poder econômico migrou para os novos donos das fábricas. Com isso eles passaram a estabelecer as novas regras de vida social. A “revolução francesa” foi o marco divisor desses dois momentos; foi a revolução dos “burgueses”, os donos das indústrias, contra o sistema feudal.

Esse novo modo de organização social, o capitalismo, tinha no capital – bens de valor comercial – a sua referência, e se assentava sobre a valorização do esforço individual, a competição entre os agentes sociais, o desejo de lucrar e a liberdade de acumular riquezas sem ser incomodado pelos senhores feudais ou pelos monarcas. Toda a ideia do liberalismo econômico se assenta, ainda hoje, nestes princípios, sejam quais forem as derivações que disso resultem.

Ocorre que esse novo sistema, o capitalismo, trouxe consigo diversos problemas, que logo foram percebidos pelos filósofos da época, entre eles:

- A exploração da mão de obra dos antigos “servos” pelos donos das fábricas agravou o quadro de miséria. Os empresários estabeleciam jornadas de 14 e até 16 horas diárias para homens, mulheres e “jovens” acima de 11 anos. Crianças de até 10 anos eram colocadas a trabalhar 10 horas por dia. O salário era o mínimo necessário à sobrevivência. A taxa de mortalidade da classe operária foi às alturas e sua expectativa de vida caiu para 35 anos. Sobre isso Kardec pondera que “os que vivem à custa das privações dos outros exploram, em seu proveito, os benefícios da Civilização. Desta têm apenas o verniz, como muitos há que da religião só têm a máscara.”4

- Em vez da “livre concorrência” os industriais se organizavam em cartéis para dominar os mercados e maximizar os seus lucros, em detrimento dos interesses da sociedade. O interesse comercial mobilizou um novo movimento de expansão sobre os países que não haviam desenvolvido uma tecnologia de produção semelhante à europeia, do que resultaram inumeráveis guerras “colonizadoras”. A Guerra do Ópio, mediante a qual a Inglaterra subjugou militarmente a China para vender seus produtos, inclusive drogas, deu-se quando Kardec era vivo, de 1839 a 1860.

- Os industriais da época se constituíram em um poder econômico gigantesco, que passou a influenciar diretamente na estruturação do Estado (daí a expressão Estado burguês), colocando toda a sociedade a serviço dos seus interesses. Eles criam os meios de comunicação de massa através dos quais estabeleciam os costumes e a “moda”, o que seria e o que não seria consumido pelas pessoas. Surge o “marketing” como a arte de criar necessidades e de estimular o consumo do supérfluo. Não sem razão os espíritos advertiam a Kardec que “só o necessário é útil. O supérfluo nunca o é.”5

Com o passar do tempo outros problemas foram surgindo, como a poluição, a destruição do meio ambiente para extrair recursos, o consumismo, a produção exacerbada de lixo, a subjugação dos países com economia mais frágil aos interesses dos países com tecnologia mais desenvolvida.

Foi como reação ao capitalismo que foram retomadas as antigas ideias gregas da societas, ou do sacerdote católico João Crisóstomo, do século IV, ou ainda da Utopia de Thomas Morus, no século XV, originando a palavra “socialismo”. Os socialistas do século XIX propunham que os interesses da sociedade deveriam ser colocados acima dos interesses dos grandes empresários. Era necessário promover mudanças no sistema de modo que a riqueza produzida pelo trabalho coletivo pudesse resultar em benefício de todos, e não apenas de alguns. Suas primeiras lutas exitosas foram pela redução da jornada diária de trabalho e pela proibição do trabalho das crianças.

Muitos dos espíritos que dialogaram com Kardec eram oriundos dos movimentos socialistas e vários deles entendiam que o Espiritismo inauguraria uma era de “transformações sociais” que promoveria mudanças para melhor nas instituições.6 Por instituições entende-se o conjunto de leis e organismos sociais que regem a vida em sociedade, ou seja, o sistema social. Kardec é um liberal, como pode ser visto nos textos com os quais ele elabora O Evangelho Segundo o Espiritismo,7 mas entendia que somente pela aplicação da “lei de justiça, amor e caridade” seria possível estabelecer a felicidade sobre a Terra. Desse modo ela deixaria de ser um “planeta de provas e expiações” e galgaria à condição de “mundo de regeneração”.

Ora, se, aplicando-a parcial e incompletamente, aufere o homem tanto bem, que não conseguirá quando fizer dela a base de todas as suas instituições sociais! Será isso possível? Certo, porquanto, desde que ele já deu dez passos, possível lhe é dar vinte e assim por diante.8

Mas havia quem entendia que o problema era mais complexo, e tinha a ver com o modo como a propriedade havia se estabelecido. Rousseau, um dos mais influentes pensadores do século XVIII, atribuía ao surgimento da propriedade privada a causa de todas as mazelas sociais. Para ele os problemas surgiram quando o primeiro ser humano cercou um terreno e disse “isso é meu”.

Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!9

Essa perspectiva é familiar aos espíritos; um deles sugere que as riquezas sejam constituídas como entre as abelhas, que acumulam coletivamente visando o bem coletivo, e não o individual.10

Em 1834, inspirados no exemplo dos primeiros cristãos e na Casa do Caminho, criou-se a “Liga dos Justos”, que propunha um modelo de sociedade comunal no qual a propriedade e o resultado do trabalho coletivo seriam desfrutados por toda a comunidade, donde surgiu a palavra “comunismo”. Marx e Engels, já em 1848, entenderam que não seria a religião que promoveria a igualdade entre os homens. Assim como no feudalismo a Igreja atribuía à Vontade de Deus a riqueza dos nobres, o que a religião defendia era o interesse dos ricos, aconselhando a resignação aos trabalhadores e aos pobres. Mudou-se então o nome da Liga dos Justos para Liga Comunista; em vez de argumentos religiosos, passou-se ao estudo científico da sociedade capitalista.

Kardec dialoga com todas essas correntes de pensamento social sem fechar um entendimento exclusivo em torno de nenhuma delas. Para ele o Espiritismo descortinava um novo horizonte espiritual, possibilitando uma “renovação social, que abrirá a era do século vinte”.11 Kardec e os espíritos compartilham do sonho de mudança que estava presente naquele final do século XIX.

Atualmente essas diferentes correntes se aglutinam em torno de diferentes partidos políticos, os de Direita defendendo a manutenção do sistema capitalista, representado pelas ideias do livre mercado, do lucro, da propriedade privada e da não intervenção do Estado, e os de Esquerda defendendo o ideário socialista, representado pelas ideias de maior igualdade e justiça social e da garantia de bem-estar para todos. Enquanto o liberalismo pode ser traduzido no lema “cada um por si e Deus por todos”, o socialismo e o comunismo propõem “a cada um segundo as suas necessidades, de cada um segundo as suas possibilidades”, ou “um novo mundo é possível”.

Vincular o Espiritismo a qualquer corrente ideológica demonstra desconhecimento ou má-fé, porquanto Kardec fez questão de constar logo no primeiro parágrafo do estatuto da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas que nela acham-se impedidas “as questões políticas, de controvérsia religiosa e de economia social”. O espírita é livre para situar-se como julgue melhor dentro do espectro político da atualidade, segundo os seus interesses. É compreensível que uma pessoa espírita que seja um empresário ou um rico fazendeiro tenha preferência pelos partidos de Direita, que melhor defendem os seus interesses, como é compreensível que funcionários de empresas ou do poder público manifestem preferência pelos partidos de Esquerda, aos quais se devem todas as conquistas em favor dos trabalhadores e dos pobres até hoje obtidas.

Se alguma relação pode ser estabelecida é com a moral evangélica, que propõe relações humanas com base na solidariedade e no amor ao próximo. Toda a obra kardequiana está ancorada em um desejo de “transformação social” que Kardec e os espíritos entendiam que seria decorrente da “moralização” dos homens. “À medida que os homens se instruem acerca das coisas espirituais, menos valor dão às coisas materiais.” Mas não se trata de aguardar que todos os seres humanos estejam moralizados para que se estabeleça na Terra o reinado da fraternidade; não. “Necessário é que se reformem as instituições humanas que o entretêm e excitam (o egoísmo).” Na medida em que se forma um conjunto de pessoas conscientes capazes de impulsionar as mudanças, estas arrastarão as demais, porquanto o progresso é inevitável e as “leis humanas más” serão gradativamente substituídas por outras leis baseadas na solidariedade e no amor ao próximo.

Quando estas (as leis humanas) se tornam incompatíveis com ele (o progresso), despedaça-as juntamente com os que se esforcem por mantê-las. Assim será, até que o homem tenha posto suas leis em concordância com a justiça divina, que quer que todos participem do bem e não a vigência de leis feitas pelo forte em detrimento do fraco.12

Por isso que a erradicação do egoísmo passa pela mudança dos sistemas sociais.

Procurem-se em todas as partes do organismo social, da família aos povos, da choupana ao palácio, todas as causas, todas as influências que, ostensiva ou ocultamente, excitam, alimentam e desenvolvem o sentimento do egoísmo. Conhecidas as causas, o remédio se apresentará por si mesmo. Só restará então destruí-las, senão totalmente, de uma só vez, ao menos parcialmente, e o veneno pouco a pouco será eliminado.13

Para isso deve concorrer toda a nossa organização social, em especial a educação, orientada para os valores do espírito, para a filosofia, para o livre pensamento, e não para a simples produção de mercadorias de interesse do capital, como ocorre atualmente. “Sirva de base às instituições sociais, às relações legais de povo a povo e de homem a homem o princípio da caridade e da fraternidade e cada um pensará menos na sua pessoa, assim veja que outros nela pensaram”.14

Respondendo, finalmente, ao meu amigo: não faz sentido pensar que moralizando o ser humano qualquer sistema pode ser bom. Não é bem assim. Moralizando-se o ser humano, o ser humano transforma e aprimora os seus sistemas sociais, estabelece leis mais humanas e modos mais solidários de vida e de convivência em sociedade. Em lugar do individualismo, o senso de coletividade; em lugar da competição, solidariedade; em vez de acumulação, desprendimento. Assim, o resultado do trabalho coletivo passa a ser revertido para o bem de todos, em vez de em benefício de alguns. Passa a vigorar na sociedade a “lei de justiça, de amor e de caridade”, constituindo base sólida para o tão sonhado “mundo de regeneração”.

1Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 806.

2Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 917. Grifo do articulista.

3Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XI item 11.

4Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, comentários à questão 717.

5Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 704 a 717.

6Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 573, 818, 914.

7Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI.

8Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 917 e item IV da Conclusão. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

9Rousseau, Jean J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, cap. II

10Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 881.

11Kardec, Allan. Revista Espírita, dez/1863. Ver também 808 a 813 e Viagem Espírita em 1862, Discurso III nas cidades de Lyon e Bordeaux.

12Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 781-a.

13Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, comentários à questão 917.

14Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 917.


Comentários

  1. Raramente vejo pessoas de esquerda radical (anti-capitalistas) que seguem a doutrina espirita. Ficou muito feliz que há pessoas que realmente pensam e não ficam disseminando discursos hegemonicos como se fossem de natureza moralmente boa.

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